sábado, 29 de julho de 2023

a não-monogamia para corpos marginalizados

 

O tweet acima pode ser uma piada para muitas pessoas, inclusive para quem o escreveu, mas eu levo essa lógica bem a sério. Não é por isso que EU sou monogâmica, mas as coisas são por aí quando falamos em não-monogamia para corpos dissidentes. Enquanto a galera não-monogâmica luta pelo direito sagrado de ter vários parceiros (afetivos e/ou sexuais), pessoas como eu, que vivem na sarjeta afetiva gerada pela desumanização de determinados corpos, queriam a possibilidade de ter ao menos UMA pessoa.
Apesar de eu entender e validar a luta pela não-monogamia enquanto um direito civil (com todas as suas repercussões morais e legais), no que diz respeito ao acesso à afetividade e liberdade sexual, não-monogâmicos e eu não falamos nem a mesma língua. Tenho completa aversão à imposição desse formato de relação como algo moralmente e espiritualmente "elevado", "evoluído", "superior", "moderno", e por fim, a solução para sentimentos e comportamentos que levam à violência de gênero e "crimes passionais", como ciúmes e possessividade. Na prática, a não-monogamia pode ser uma ferramenta de manutenção do patriarcado e da violência contra a mulher (especialmente violência psicológica) tanto quanto a monogamia. Muitas são as pessoas não-monogâmicas, especialmente homens cis (mas não apenas eles!), que usam a "filosofia" da não-monogamia para seduzir, manipular e prender emocionalmente pessoas fragilizadas, especialmente mulheres fora do padrão, usando ainda um discurso pró-feminista e liberal. Como se a não-monogamia fosse a evolução natural do ser humano. Como se só mudar o formato de relacionamento, sem conscientizar e curar pessoas, fosse eliminar todo um conjunto de pensamentos coletivos e opressões que se arrastam ao longo da história da humanidade. O maior problema disso é que por se acharem "evoluídos" e "puros de sentimentos", pessoas não-monogâmicas colocam a culpa de todos os problemas das relações humanas na monogamia, se isentando dos processos de opressões que eles também praticam (especialmente contra membros de minorias).
Quando aponto a manipulação, mau-caratismo e a falta de responsabilidade afetiva costumeira de pessoas não-monogâmicas que se julgam tão superiores e desapegadas, muitas pessoas não-monogâmicas alegam: "mas essas pessoas (com comportamentos questionáveis) não são não-monogâmicas de verdade". O que isso significa? Se uma pessoa se rotula como não-monogâmica, usa discursos não-monogâmicos e vive uma vida não-monogâmica, se relacionando abertamente com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, então ela é não-monogâmica, mesmo que ainda carregue traços da monogamia em suas relações. Não é possível validar apenas não-monogâmicos com comportamento "ético" e dizer que os não-monogâmicos tóxicos (que na minha experiência são uma grande maioria) "não são não-monogâmicos de verdade". Sim, essas pessoas fazem parte da mesma comunidade que "você"! A comunidade não-monogâmica não é um paraíso relacional!
Sendo bem sincera, eu não acredito que exista um só não-monogâmico completamente ético e que haja de acordo com seus discursos o tempo todo, porque não é possível se relacionar em cima de racionalidade e códigos sociais o tempo todo. Nós somos humanos e temos sentimentos que falam mais alto do que nossas intenções, do que a nossa razão e às vezes até mais alto do que nossos princípios teóricos. Novamente, fica fácil se esquivar de responsabilidade quando a pessoa acha que já pratica o máximo de ética, empatia e que está acima do bem e do mal! Acima não apenas de monogâmicos, mas também de outros não-monogâmicos que são "a vergonha do rolê".
Voltando ao foco desse texto: ser totalmente fora do padrão, sem nenhuma passabilidade, e experimentar uma não-monogamia real e que não destroça a mente, é bem raro. Diria que são coisas incompatíveis. A maioria das pessoas gordas maiores, travestis, negras retintas e/ou com deficiência (grupos que são as "as minorias das minorias", que têm menos visibilidade até dentro das militâncias), passam A VIDA sem conseguir acessar o afeto. Quanto maior o número de características rejeitadas pela sociedade uma pessoa possuir, menor o acesso ao afeto, ao amor e até ao sexo COM DIGNIDADE. Uma pessoa gorda branca e cisgênero vai sofrer opressão e ter afeto negado, mas uma travesti gorda e negra vai sofrer muito mais (e assim por diante).
Como já expus muitas vezes ao longo dos anos, muitas pessoas gordas (que sempre foram gordas) chegam à vida adulta sem nunca ter beijado na boca. Muitas de nós entram na terceira idade sozinhas, no vazio afetivo de nunca ter vivido um amor correspondido, sem nunca ter namorado, ou sequer transado.
Outras tiveram e têm seus corpos usados para sexo das formas mais estereotipadas e animalizadas possíveis, mas nunca receberam afeto. Quando muito, foram alimentadas com migalhas de afeto. Com ilusões de afetividade. Podem ter recebido um pouco de carinho entre um ato sexual e outro, mas nunca experimentaram isso de forma plena. Nunca foram levadas a um lugar legal, para um encontro de verdade. Sempre ficaram confinadas em quartos de motéis, ouvindo que são "maravilhosas" entre 4 paredes. Nunca foram assumidas, apresentadas para amigos e família. Nunca receberam flores, uma declaração. Nunca tiveram ninguém para dividir as dores e as delícias da vida. Nunca puderam fazer planos conjuntos e pensar em construir uma família.
A não-monogamia me soa como estar faminta e colocarem um prato vazio na minha frente. Quando eu olho pra mesa ao lado, vejo uma pessoa diante de um banquete, berrando: TRAGAM MAIS!
Eu evito abordar esse assunto, porque confesso que sinto um amargo na minha boca e na minha alma, e sei que depois de expor minhas feridas (que são na verdade feridas coletivas), eu vou ser silenciada.
Uma vez, tempos atrás, falei sobre as MINHAS experiências com a não-monogamia e sobre o quanto ela pode ser prejudicial e impraticável para corpos marginalizados (focando no corpo gordo) e uma pessoa gorda e trans soltou os cachorros em mim para defender a não-monogamia. Atacou e maltratou uma pessoa gorda, com feridas reais, para proteger um SISTEMA (relacional). Não fica muito longe do fanatismo religioso. Até então, essa pessoa dizia me adorar e que eu era necessária, mas quando fiz essa crítica, me tornei a inimiga dos não-monogâmicos que se acham o suprassumo da evolução e desconstrução humana. Diante do meu desabafo, o qual fiz logo após sair de uma relação não-monogâmica que acabou com a minha vida (e da qual ainda não me curei, após um ano e meio), essa pessoa disse que eu estava falando um monte de bosta, que não tenho empatia por pessoas não-monogâmicas (risos), que só tenho empatia pelo que me convém (pessoas gordas) e que eu deveria "estudar". A carteirada academicista foi o que mais me incomodou! É muito elitista querer invalidar discursos sobre sentimentos HUMANOS só porque eles não foram publicados por uma editora e nem aprovados pelo meio acadêmico. Quando se trata de vivências, as reflexões de quem sofre com uma questão são muito mais relevantes do que teorias academicistas. Tudo que eu falo sobre gordofobia, tem por base minhas experiências pessoais e a forma como eu observo o mundo (conversando com outras pessoas gordas em diferentes contextos e analisando situações que compartilhamos e assim sendo, são coletivas). Não são teorias acadêmicas, são reflexões minhas, desabafos meus! Eu falo porque preciso falar, e na esperança de que as pessoas magras absorvam vivências gordas e nos tratem com mais empatia e humanidade. Sendo vivências e opiniões minhas, as pessoas podem concordar ou não com a forma que eu vejo e exponho as coisas, mas não podem me invalidar. EU QUE VIVI E VIVO ISSO. Discordarem de mim e me atacarem não vai mudar os fatos (o que eu vivi e vivo). Da mesma forma que eu não vou em perfis que lutam pela normalização ou que até ROMANTIZAM a não-monogamia para forçar minha visão. Quando eu vejo um perfil desses ou pessoas que sigo começam a falar da não-monogamia como uma evolução da alma, sem fazer recorte algum, eu silencio ou até bloqueio para que não fique aparecendo para mim, pois é algo que me faz mal. Eu falo sobre a MINHA visão da não-monogamia aqui no MEU espaço!
E acima de qualquer coisa, MINHA identidade é gorda! O que mais ME atravessa é a gordofobia! Mesmo que eu fosse não-monogâmica, primeiro eu seria GORDA, primeiro eu seria atravessada pela gordofobia e primeiro viria a luta anti-gordofobia. Meu corpo é a primeira coisa que enxergam em mim e é o que determina como vou ser tratada na sociedade! Determinou como fui tratada dentro de experiências não-monogâmicas também. Se você se acha uma pessoa gorda, mas não é atravessada pela gordofobia em todos os aspectos da sua vida, ou você não é uma pessoa gorda de verdade, ou goza de fortes privilégios (estéticos, de status ou financeiros). Você ser uma pessoa gorda e não passar por uma questão que outras pessoas gordas estão apontando, não vai significar que nenhuma pessoa gorda passa por isso, e sim que você é uma exceção à regra.
As pessoas podem odiar, inclusive membros de outras militâncias, mas minhas vivências e minha luta sempre vão ter um recorte sobre corpos gordos. Tudo que eu for falar, eu vou trazer a diferença de como é passar por isso sendo uma pessoa magra e sendo uma pessoa gorda. E nesse contexto, assim como no meio LGBT+, a gordofobia é presente na comunidade não-monogâmica.
Muitas vezes falo de mim, mas com a certeza de que não sou a única vivendo essas coisas, porque recebo relatos diários de pessoas gordas e membros de outras minorias que se identificam com as minhas vivências e minha fala. Sobre a não-monogamia, posso dizer que além das minhas próprias experiências, já conheci muitas pessoas gordas (inclusive maiores) que viveram e vivem a não-monogamia, seja porque se sentiram forçadas a isso, seja porque acreditavam nesse modelo de relação e queriam viver isso. E mais vezes sim do que não, eu acompanhei o sofrimento de muitas dessas pessoas. Sofreram em silêncio, aguentando coisas que nenhuma pessoa padrão aguentaria, para manterem a pose de DESAPEGADAS.
O que se tornou muito evidente para mim, tanto nas experiências dessas pessoas quanto nas minhas próprias experiências, é que uma coisa é viver a não-monogamia na teoria - estar aberto para amores "livres" e à possibilidade de se envolver com mais de uma pessoa ao mesmo tempo; e outra coisa bem diferente é viver isso na prática: ter a possibilidade de ser amado por mais de uma pessoa ou ser possibilidade sexual para múltiplas pessoas.
Explico: conheci várias pessoas gordas maiores (homens, mulheres e não-binárias, tanto hetero quanto não-hetero) que tinham relacionamentos não-monogâmicos com pessoas magras ou mais próximas do padrão do que elas e TINHAM a LIBERDADE para se envolver com outras pessoas, mas não tinham outras pessoas interessadas nelas. Enquanto seus parceiros ou parceiras com maior passabilidade e aceitação estética tinham pessoas interessadas por eles e se relacionavam com múltiplas pessoas, vivendo a não-monogamia de fato, essas pessoas gordas maiores ficavam chupando o dedo. Elas só carregavam o rótulo e as responsabilidades de ter que lidar com essas relações, sem poder viver isso. Assistiam seus pares sendo cortejados, se envolvendo com outras pessoas, e lidavam com ciúmes, insegurança e a sensação de estarem sendo deixadas de lado. Com o plus da sensação crescente de rejeição e a frustração, porque não eram possibilidade para ninguém, mesmo estando abertas para isso. Logo, uma coisa é ter a LIBERDADE, outra é ter a POSSIBILIDADE.
Acompanhei (em off) uma mina gorda maior que era casada, o relacionamento era não-monogâmico. Ela e o marido iniciaram um trisal com uma mulher magra e com o tempo ela começou a se sentir colocada de lado por ambos. Eles transavam na cama dela, ao lado dela, enquanto ela chorava sem que eles percebessem.
Outra mulher gorda entrou em um relacionamento a três com seu parceiro e no fim foi TROCADA. Terminaram com ela e ficaram juntos. Ela foi "expulsa" da relação na qual entrou com seu parceiro.
Foram muitas as pessoas gordas (maiores) que vieram debafar suas dores comigo. Elas não estavam felizes, mas em 100% dos casos, mantinham a imagem pública de desapego e satisfação com esse tipo de relação. Estavam enganando a si mesmas e aos outros, reforçando um imaginário de não-monogamia perfeita e inclusiva para todos os corpos. A não-monogamia não é automaticamente inclusiva a todos os corpos. Pessoas não-monogâmicas não são automaticamente não-gordofóbicas. Na monogamia ou na não-monogamia, as pessoas escolhem quais corpos elas vão amar, quais corpos elas vão comer, e quais corpos elas vão rejeitar. O que muda entre a monogamia e a não-monogamia, é a cobrança de aguentar ou aprender a lidar com situações que a grande maioria das pessoas gordas não têm condições de bancar, depois de uma vida de rejeição e preterimento.
Eu (monogâmica convicta) já aceitei o formato não-monogâmico de relação para não perder a pessoa (não-monogâmica), e só eu sei o que eu passei. Eu "poderia" ter me negado a embarcar nessa e abrir mão da pessoa, mas além de estar apaixonada, como eu poderia fazer isso, quando esperei pelo AMOR a minha vida toda? Sabendo que poderia passar muito tempo até surgir outra pessoa que tivesse interesse em se relacionar comigo? Sabendo que posso nunca mais ter isso? Diferente de pessoas padrão, ao terminar uma relação, eu não vivo com a certeza e com o consolo de que "vai surgir outra pessoa" futuramente. Ao fim de uma relação, eu tenho em mente que pode levar anos até me tocarem novamente. Que pode nunca mais acontecer. Abrir mão de um amor que você sonhou a vida inteira é muito mais difícil quando você ouviu desde criança que "ninguém iria te querer", fala sustentada pela rejeição crônica ao longo de toda uma vida. Eu aceitei essa relação num formato no qual eu não acredito e que não faz bem para mim, pensando que eu conseguiria lidar, e que aquilo seria "menos pior" do que não ter a pessoa. Depois de anos e anos de solidão e expectativa, ter uma pessoa pela metade soou "menos pior" do que não ter pessoa nenhuma.  Eu pensei que pudesse conviver com as repercussões de um relação não-exclusiva. E eu descobri que a agonia de ter alguém pela metade é igual ou até pior do que a agonia de não ter ninguém. Só eu sei o quanto essa experiência minou minha autoestima e criou novas camadas de insegurança e infelicidade na minha vida. Me deixou de fato traumatizada. Não sei se eu vou poder confiar em mim mesma ou em alguém novamente. Eu tenho a parcela de culpa de ter aceitado isso. Mas a pessoa não-monogâmica não ligou para os meus gatilhos, para a minha história, para o recorte ao qual estou inserida. Pelo contrário, alimentou minhas inseguranças, ativou meus gatilhos. Não teve cuidado e nem conseguiu me fazer sentir importante em sua vida "apesar" de não ser a única. Pessoas monogâmicas também brincaram com os meus sentimentos e agiram sem cuidado ao se relacionar comigo, mas soa muito mais hipócrita quando esse tipo de comportamento parte de não-monogâmicos que se colocam como espiritualmente superiores e que falam tanto sobre "amor livre", "sagrado feminino", ética e empatia.
O que eu sei, é que eu nunca mais quero ASSISTIR alguém que eu amo, amando outra pessoa. Nunca mais quero compartilhar alguém que eu amo com ninguém. Eu não quero ver quem eu amo se declarando para outra pessoa e depois passar a madrugada inteira stalkeando uma outra mulher, olhando suas fotos, chorando e me comparando, pensando em todas as formas que eu sou INSUFICIENTE e menos do que ela.
Isso me faz menos evoluída? Me faz antiquada? Me faz possessiva?
Todos os dias eu lembro dessa experiência e sinto novamente a dor e a vergonha que senti naquela madrugada, desejando ardentemente ser outra pessoa e receber o amor que ela recebia. Foi o fim de uma relação, mas acima de tudo, foi o fim do meu senso de dignidade e da autoestima que construí a duras penas.
Como eu posso ter segurança para viver um relacionamento não-exclusivo, quando passei a vida inteira ouvindo que não sou suficiente? Que ninguém vai me querer e me amar de verdade? Quando passei a vida sendo comparada a outras mulheres, sendo colocada como menos do que elas e sendo trocada pelo que é mais "socialmente aceito"? Como eu vou dividir o tempo e a atenção de quem eu amo com outra pessoa, quando nunca fui prioridade de ninguém? Como não vou sentir ciúmes vendo quem eu amo beijando outra pessoa, fazendo declarações, construindo intimidade? Construindo uma vida! Quando eu nunca atingi o nível de intimidade de verdade com ninguém, porque nunca tive oportunidade! Nunca me deram oportunidade.
Depois de uma vida de afeto negado, de rejeição, de solidão e preterimento, não tem como eu ter segurança para bancar isso sem me esfolar inteira. Pessoas padrão (ou com passabilidade) querem "desconstruir o amor romântico", mas quem vive à margem da sociedade não conseguiu nem construir o amor tradicional em suas vidas ainda!
Ser não-monogâmico não é sobre maturidade ou evolução, é sobre privilégio. Pessoas que passaram a vida inteira sendo rejeitadas e maltratadas, dificilmente vão ter as ferramentas para desconstruir as inseguranças e o ciúmes que esse formato de relação gera. Pessoas padrão, de forma geral, têm a certeza de si. Certeza proporcionada por uma vida de abundância afetiva.
Ter a possibilidade de ser desejado e amado, ainda mais por mais de uma pessoa simultaneamente, é privilégio de gente padrão.