terça-feira, 7 de agosto de 2018

pai


Nós não temos que ser fortes sempre. E chorar não é demonstração de fraqueza.
Eu cresci num impasse. Por um lado sabendo que meu pai é, no mínimo, um pai ruim, mas por outro, consciente de que poderia ser pior. O pai de uma amiga minha, policial, a estuprava à mira de arma de fogo. Perto do pai dela, o meu pai é um amor de pessoa. Mas analisado sozinho, o meu pai continua sendo um pai de merda. E eu nunca me senti no direito de falar muito sobre isso, porque poderia ser pior. Certo?
Se você visse o Facebook do meu pai, ou o conhecesse pessoalmente, teria a imagem de um cara bacana. Ele fala de forma baixa e suave quando conversa com as pessoas de fora. Conhece palavras bonitas, sabe se expressar, é antenado, e de certa forma culto... Politizado e basicamente militante de esquerda, "apoiador" de todas as minorias. Nos bastidores, entretanto, ele mesmo zomba de tanta demagogia. Zomba do gay, humilha o "servente", ameaça esquartejar a própria esposa, acha que os sentimentos das pessoas têm valor monetário, e acima de tudo, ele não tem um pingo de amor para oferecer a quem quer que seja.
Aprendi a não confiar nos homens, tendo-o como pai. Vendo-o agredir meu irmão, física e verbalmente, de forma consistente, enquanto crescíamos. Não o tapinha "disciplinatório". Porrada. Meu irmão sendo seu saco de pancada particular. Foi uma vida ouvindo-o dizer que toda mulher é vagabunda, enquanto traía suas ex-parceiras e gritava com a própria mãe. Tudo na encolha. Tudo sem projetar para o mundo essa realidade. É muito difícil ter auto-estima, crescendo com pais abusivos, e isso não me faltou.
Eu tento manter a paz, apesar das mágoas. As coisas estavam indo bem: mal nos falávamos desde o último incidente, o qual terminou com ele trancando minha madrasta e meu irmão de 9 anos num quarto, sob ameaças. Quando acontecia de nos vermos, conseguíamos manter a cordialidade. Deliberadamente, eu passo muito tempo no meu quarto e evito aparecer na frente dele. Essa noite isso não foi possível. Eu saí do meu quarto ao mesmo tempo que ele saía de sua casa (moramos no mesmo quintal), e quando nos vimos, através de um portão, eu percebi na hora que ele estava virado no capeta, e pronto para descontar em alguém. Geralmente, quando ele entra nesses transes, vai para o seu carro e fica lá. Hoje eu estava no lugar errado, na hora errada, entre ele e o carro, e fui o alvo perfeito. A coisa toda foi surreal. Ele entrou na casa da minha vó - onde moro - e começou a gritar comigo sobre louças que eu não lavo. Eu disse para ele parar de gritar comigo e descontar a raiva em outro, ao passo que ele começou a gritar mais ainda, se aproximando ameaçadoramente. Eu não sou o tipo de pessoa que abaixa a cabeça, então sustentei o olhar, ainda pedindo que ele parasse de gritar. Os pedidos o fizeram gritar mais ainda, histérico como sempre. Quebrei um prato. Eu odeio gritos. Odeio que gritem comigo, especialmente se eu não fiz nada para merecer tais gritos. Gritos ativam em mim, ao mesmo tempo, fúria e medo. O enfrentei. Ele veio pra cima. Ameacei denunciá-lo, ele veio MAIS pra cima.
Enquanto gritava NA MINHA CARA, a saliva atingindo meu rosto, eu via o quão feio ele é. Quão frágil. Quão grande ele se acha. Vi, na mesma proporção, ódio e vazio nos olhos dele. Vi o que eu sempre tentei não ser, o que eu não quero me tornar, apesar da vida me jogar nessa direção!
Quando a mão dele atingiu meu braço, a minha mão atingiu o braço dele, e ali, eu era novamente a adolescente de 14, tendo que sair na mão com o próprio pai para se defender, mais moralmente do que fisicamente. Mas eu não tenho mais 14 anos, tenho 28. E eu definitivamente aguento porrada. Os tapas e socos vieram. As pancadas em si não significam nada. O impacto de verdade, a maior porrada que ele pode me dar, ele já deu tantas vezes, em forma de palavras e ações, que me agredir fisicamente agora, depois de todos esses anos, não representa muita coisa.
Não tenho hematomas para deliciar essa rede social. Ele só bateu o suficiente para se firmar enquanto macho. Se os hematomas vierem, não vão chegar perto do hematoma emocional permanente que ser filha dele me causou.
Aí as pessoas me perguntam "por que ele te bateu?", e eu lembro que quando eu tinha 13 anos, ao descobrir que eu me cortava, ele me deu uma dessas surras épicas, com direito a socos na cara e boa parte do meu corpo coberto de HEMATOMAS. Porque ele sempre quis passar a ideia de que eu pertenço a ele, como um objeto comprado. Eu cheguei na escola roxa, com um pulso enfaixado, e me perguntaram "porque ele tinha me batido". Disseram, como dirão agora, que "alguma coisa eu fiz". Quando um homem bate em uma mulher, seja ela adolescente ou adulta, seja o homem seu pai, namorado, marido ou irmão, e mesmo quando eles estão completamente sozinhos, a sociedade inteira está sendo cúmplice. Porque homens e mulheres são criados para achar que esse tipo de coisa é normal, e dependendo da situação, completamente justificável.
Essa noite eu tive mil gatilhos ativados, fui exposta às minhas inseguranças, procurei as pessoas "mais próximas" e não encontrei ninguém. Chorei e me expus ao ridículo. Eu quis MUITO me cortar, eu quis bater a cabeça na parede de tanta raiva, eu quis sair e beber até cair, ou arrumar alguém para transar e me sentir tão imunda quanto meu pai acha que eu sou... lembrei que nada nessa vida realmente importa. Eu pensei em me matar. Essa noite eu resisti aos meus instintos.