terça-feira, 25 de abril de 2023

borboleta sem asas

Nascida e criada
Em uma redoma acolchoada,
Muito cedo
Tive minhas asas amputadas.

Surgida para o entretenimento alheio,
Logo descobri o que já era meu
E tudo o que nunca poderia ser.

Não há liberdade,
Há só o pesar.
Fui dotada de asas,
Mas delas não pude aproveitar...

Cresci vendo meus semelhantes voar
E minha vida requintada
Muitos suspiros roubar.

Estrela de público cativo,
Borboleta sem asas...

Vendo tudo a um canto,
Minha dor eu cultivei.
Hoje sou tão-somente uma sombra;
Primitiva, indigna do palácio do meu rei.

quarta-feira, 19 de abril de 2023

de são miguel paulista à liberdade

Sou livre, escolho meus caminhos. Mas, por onde caminharei?

Desvio da pessoa em situação de rua, desvio do pastor. Desvio de uma prostituta, desvio do amor. Desvio da polícia, por quem tenho verdadeiro pavor... Desvio do garoto que vende balas e do homem que compra ouro. Desvio do pedido de oferta ao final da missa, na qual entrei por engano — procurando paz, fugindo dos meus demônios. Desvio do Senhor.
Desvio, e me sobram poucas opções. Sou livre, mas não tenho onde ir. Fico estática, então.
A constatação traz tormento... como as previsões. De que elas servem, quando acompanhadas por inação?
Dá pra mudar o destino? Um desastre, previsto e evitado, o que impede que aconteça em outro momento, fazendo as mesmas previstas vítimas? Desvio do perigo ao ouvir previsões, e por que não: desvio das predições!
– A inevitabilidade é uma vadia cruel! – de repente meu pensamento toma voz, a qual se mostra alta demais. Todos ficam calados, inclusive o padre, a madre, o raio que me parta! Olham-me, pasmos. Bato na boca três vezes, peço perdão para a multidão. Desvio, sempre que possível, ao ridículo do padrão. Ao insulto cristão! Desvio também do conceito pagão.
Plim, plim, plim! O padre bate seu sininho.
Meu pecado já foi cometido, quando eu nem sabia da existência do pecado. Há salvação para inocente pecador? Arderei no inferno como Judas, o traidor? Minha pele descolará dos ossos, fazendo-me arder em tremor? Afundarei, amaldiçoando o calor!
– Saudai-vos uns aos outros em Cristo Jesus! – ele diz.
Não me toquem os estranhos, ou gritarei até perder a voz. Cairei, convulsa, cavando minha própria cova.
Eles obedecem a todos os comandos e caminham como cordeiros, é realmente embaraçoso. Se Deus está em nós, não é preciso seguir multidões para encontrá-lo! Mas sigo por garantia... e nada encontro. Nada encontro, tampouco, em mim.
Pobre do meu destino! Vazia de Deus, absolutamente nada me espera, faça vida ou faça morte.
Dou asas a sorte, equilibrando-me em alta ponte... sem fios, sem proteção. Estou na Liberdade, mas esta não encontro, não.
O vento bate em meu rosto, me despenteia, e sinto vida, ainda que passageira. 
A vontade de contrariar o destino é grande. Carros passam com fervor e sem cessar. A multidão, apática, espera um escândalo, uma grande notícia, qualquer coisa que transforme esse domingo miserável em algo fantástico, memorável. Mas hesito, me contenho.
O desejo pelo fim não é tão grande, penso, para dar, de graça, tão tolo espetáculo. Respiro fundo, suportando a poluição, retendo em meus pulmões os artifícios da população.
O céu mostra tormenta. Cinza, nebuloso. Olho para cima, olho para baixo: o desatino é não poder cair para cima, eternidade adentro. O desatino, o cruel desalento é não ter asas, ser tão humanamente humana.
O vento bate nas minhas costas, parecendo querer me jogar ponte abaixo. Uma mulher me olha com antipatia, eu devolvo um gesto de rebeldia.
Ela parte com sua criança. Eu fico. 
As bancas clandestinas declaram o fim de um longo dia... os ambulantes recolhem suas coisas, prevendo a força tática... Com desgosto dobram suas mesas e pegam o metrô: destino Corinthians-Itaquera.
.........
Se todos os dias aqui são iguais, cabe apenas a mim fazer a diferença. O vento não bate novamente, mas meu corpo despenca. Na queda, meu caderno de escritos se abre. As folhas voam, e o meu corpo no chão bate. Um carro vem a oitenta quilômetros por hora, passando sobre mim, como se eu fosse nada. Ele não liga, continua em sua rota inalterada.
Parecia, mas ainda não era o fim. Por meus pecados eu teria de pagar, isso não ficaria assim! Meu sangue e meu corpo são engolidos pelo asfalto, me tornando parte da cidade: minha mãe, contra quem tanto lutei, sendo a filha rebelde de tão grande família, me aceita de volta em seu útero infernal. 
Condenada, as pessoas que ali passam ainda ouvem meu padecimento. 
Eu sou livre, mas não tenho por onde andar... Desvio de mim mesma.

Texto de 03 de outubro de 2009.

quinta-feira, 13 de abril de 2023

cinco e meia

Nunca mais bebi. Nunca mais me cortei. Nunca mais fiz nada de ruim e nem de bom contra mim mesma. Mas eu sinto a vontade. Eu sinto essa energia dentro de mim sempre exigindo o estrago.
Estática, assisto cenas monstruosas rodando na minha cabeça. Eu poderia me queimar, como antes. Eu poderia enfiar uma faca no meu coração. Eu poderia me jogar na frente de um trem. 
... Moro ao lado da estação de trem. Cinco e meia já tem trem rodando...
Eu sinto falta das marcas de cortes pelo meu corpo, da lâmina dançando sobre a minha pele, deixando os rastros de sangue. Eu sinto falta do vermelho espesso.
Eu sinto falta de ir ao pronto socorro e ser cuidada por alguns minutos, enquanto me costuram. Sinto falta das mãos em mim e do cheiro de hospital.
Um diazepam, ou dois ou três, tem 10?
Minha psicóloga me disse para conversar com alguém quando eu sentisse vontade de me machucar. Eu disse pra ela: não tem ninguém. Não sobrou ninguém... Ninguém mais aguenta me ouvir chorar a ausência dele.
Ela me disse: "então escreve".
Eu não deveria precisar de incentivo e nem de desculpas para escrever...
Cinco e trinta e cinco.
Olha quantas linhas eu escrevi. Olha quanto sangue.
Eu queria estar dormindo, envolta no nada, como as pessoas saudáveis. Como ele dormia, depois de uma briga.
..........
Tenho um monte de rascunhos de poemas escondidos desde que voltei com ele. Um monte de ideias enchendo minha cabeça. Faz tanto tempo que terminei com ele. Um ano e dois meses. Nunca mais fiz nada de bom por mim mesma...
Nem sequer gozei. Não de verdade. É como uma faísca riscando brevemente o escuro e apagando logo em seguida. Depois as lágrimas caem como uma tempestade e meus soluços ecoam no silêncio da madrugada feito trovões... Eu fico até enjoada de tanto chorar. 3 dramins e um gole de água.
Quando o conheci, não conseguia atingir o orgasmo acompanhada. Agora não consigo gozar nem sozinha. A única coisa molhada em mim são meus olhos, chorando 3 vezes por dia, como se esse fosse o remédio. Um ano e dois meses de lágrimas.
Imagino ele gozando com outra, enfiado entre outras pernas dizendo "eu te amo", como costumava me dizer. E eu acreditava. Eu queria acreditar...
... Quando ele me dizia que só comigo era daquele jeito. Que só eu fazia ele rosnar feito um cachorro. Eu acreditava. Eu queria acreditar.......
Mesmo quando ele se contradizia sem querer 
Me fodendo por trás, ele puxava meus cabelos e perguntava: "você me ama?" e eu respondia sem hesitar: "eu te amo demais".
Agora ele faz isso com ela. Não só com ela, mas com Virgínias e Brunas e Isabelles e Bárbaras e Helenas e com Maysas também. Sempre tem alguém, sempre tem uma substituta para a substituta.
Mais um dramin.
..........
Meus dedos costumavam deslizar tão facilmente, era como se tivesse um pote de mel entre as minhas pernas. Agora é como se eu carregasse o deserto do Saara em mim. É tudo árido.
Minha buceta está seca. Meu útero está secando. Meu corpo está murchando, especialmente meus seios. Minha alma está morrendo...
Cinco e quarenta e nove...
Minha vida gira em torno dele desde o dia em que o conheci, quase 4 anos atrás. Ele entrou em mim pelos meus olhos. Eu o vi e soube que o queria comigo para sempre. Ele chegou como quem não quer nada (o que ele queria era me comer, me disse um dia, depois de já ter comido até enjoar) e foi ocupando todos os espaços em mim. Se instalou no meu cérebro, invadiu meu coração, andou sob a minha pele, de ponta a ponta, correu pelas minhas veias, encheu os meus pulmões: hoje eu respiro ele. Ele rompeu minhas cordas vocais. Ele cegou os olhos que o acolheram. Não sobrou nada pra mim dentro de mim. É tudo dominado por sua vontade (ou falta dela).
Eu tenho tantas ideias na minha cabeça, mas tudo se resume a ele. Então não escrevo como antes. Escrever significa me humilhar um pouco mais, inflar ainda mais o ego dele. Eu busco a aprovação dele em cada linha.
Hoje eu sou como uma boneca esquecida num canto, como uma boneca que não tem mais graça, uma boneca sem vida, porque ele tomou minha vida. Ninguém viu e ninguém sabe. O tempo passa por mim, embranquece meus cabelos, endurece meu olhar ... novamente. Não sinto emoções fora das lembranças de cada momento dele em mim; no começo era tão doce... Ele usava as palavras mais bonitas, com sua voz aveludada. Ele dizia exatamente o que eu queria ouvir. No fim sobraram as palavras mais duras, na voz mais áspera.
Seis e vinte e três.
Não, no fim o que sobrou foi o silêncio.
De dia ou de madrugada, faz um silêncio cruel dentro de mim. 
Eu estou morrendo em silêncio...

quarta-feira, 12 de abril de 2023

a pessoa gorda na academia

23 de abril de 2014. Eu havia começado a praticar boxe recentemente. Ninguém me forçou, foi só um pensamento que eu tive: "eu deveria fazer boxe". No princípio eu nem pensava em emagrecer, só me ocorreu que um esporte como esse poderia me ajudar a liberar a energia negativa, e sim, pensei que seria saudável para o meu corpo. Eu estava *começando* a me enxergar e a me sentir de uma forma diferente.
Comecei bem empolgada, cheia de vontade de aprender, mas desde o princípio foi um desafio. Além de estar acostumada a uma vida sedentária, depois de anos de isolamento, eu ainda tinha muita vergonha do meu corpo ser observado em movimento. Era humilhante, para mim, ser vista correndo e pulando. Eu procurava não ser o centro das atenções. Mas quando você é uma pessoa gorda (especialmente gorda maior) e chega de legging e começa a pular corda no meio das pessoas, você atrai todos os olhares. Um dos garotos da minha turma era realmente paciente e bondoso, mas os outros me olhavam feio, me julgavam e resmungavam porque eu "os atrasava". Esse tipo de reação, por mais esperada que seja, naquela época ainda me abalava, e diante do constrangimento, eu me forçava a ir além do meu limite físico.  Era cobrada e me cobrava a fazer o mesmo que os outros, mesmo sem ter o mesmo preparo. Aquilo era uma espécie de punição, especialmente moral. Depois dos treinos eu ficava muito mal, pelo desgaste físico e pelo excesso de adrenalina. Saia da academia tonta e vomitava na esquina.
Então, aos poucos, foi perdendo o sentido para mim, porque, com o apoio torto de pessoas próximas a mim, o boxe se tornou apenas uma cruzada pelo emagrecimento, na qual o desrespeito ao meu corpo era louvado, e a ansiedade era amplificada. Exercícios por obrigação e como punição não deixam ninguém mais saudável, pelo contrário.
Uma das maiores cobranças sociais sobre o corpo gordo é que não sejamos sedentários (como se a maioria dos magros não o fossem), mas quando tentamos praticar exercícios físicos, primeiro encontramos a barreira de que não existem roupas apropriadas do nosso tamanho, e depois, se de alguma forma superamos isso, somos ridicularizados e aterrorizados em academias. Sofremos abusos físicos quando nos forçam, por meio de pressão psicológica, a ir além dos nossos limites, e sofremos abusos quando nos observam, riem, apontam, fotografam... como se fôssemos bicho! 
Ou seja, para a sociedade, a pessoa gorda nunca será digna de respeito. Se não nos exercitamos, somos repreendidos, se nos exercitamos, somos humilhados, se comemos "besteira", somos irresponsáveis, se comemos coisas saudáveis, estamos querendo nos provar.
HOJE eu entendo que dentro deste cenário, a única coisa que nos cabe é fazermos o que quisermos e zelarmos por nós mesmos, de corpo, mente e alma. Não é fácil se desligar dos olhares e das cobranças, mas precisamos aprender a fazê-lo. Não tem problema só fingir que não ligamos a princípio, até chegar o ponto de tal comportamento se tornar realmente irrelevante para como nos sentimos ao EXISTIR. Porque nós temos o direito de existir, de amar, de gozar, de comer... e de nos movimentarmos. Pela comunhão entre todas as coisas que nos constituem, precisamos ser gentis conosco, e acima de tudo, respeitarmos os nossos limites! Não deixe ninguém ditar o ritmo dos seus movimentos e da sua vida, ou você não encontrará ânimo algum para VIVER.

Texto de 23 de abril de 2019.

segunda-feira, 10 de abril de 2023

e se a shein acabasse hoje?

Recentemente entrei em uma discussão  com uma blogueira de moda GORDA. Ela apareceu OSTENTANDO um look composto por *7 marcas*, afirmando que "a questão de roupas para pessoas gordas está quase resolvida" e que AGORA é hora de lutar por "políticas públicas". Ela estava fazendo praticamente um "arrume-se comigo para ir lutar por políticas públicas yeah fat girl power, porra!"
Quando vi aquilo, eu fiquei transtornada. Eu não conseguia acreditar no esvaziamento de pautas e na ignorância daquela pessoa. Ignorância até sobre os próprios privilégios. Tentei ignorar, fingir que não vi e ficar na minha, mas a raiva foi tomando conta de mim...
"A questão de roupas para pessoas gordas está quase resolvida? 🧐" Eu questionei, e ela respondeu: "você não acha que está quase resolvida? Muita coisa mudou no mercado plus size nos últimos 20 anos".
O que realmente mudou? Mais do que isso, ~para quais~ pessoas gordas as coisas "mudaram"? Para gordas famosinhas e bonitinhas que GANHAM roupas de marcas? Para gordas menores? Para gordas que têm as proporções limitadas contempladas pelo mercado plus size? Para as gordas com carreira e grana num mundo que exclui a pessoa gorda do mercado de trabalho?
Ela jogou a SHEIN na minha cara, afinal, "hoje é possível encontrar vestidos plus size por 40 reais". Como se TODA pessoa gorda estivesse na internet comprando lookinhos da Shein!
Muitas pessoas gordas fora desse contexto ilusório da internet sequer sabem da existência das marcas online NACIONAIS, imagina ter acesso a Shein! As pessoas gordas "comuns" dependem de marcas plus size de bairro, QUANDO tem lojas plus no bairro ou até na cidade delas. Dependem dessas lojas oferecerem seus tamanhos. Até uns 5 anos atrás, eu também dependia totalmente de lojas plus size de bairro. Eu moro numa grande capital, mas vestindo 58/60, eu não tinha minhas necessidades atendidas. Imagina então como é para quem mora em cidade pequena! Ou para quem é maior do que eu.
Eu usava "o que tinha", me apertava em roupas menores do que o meu corpo (e me machucava dentro delas), suava em cabines pequenas demais, chorava e arrancava os cabelos por não achar uma legging para começar a academia, uma calcinha para colocar o absorvente ou uma roupa qualquer que me fizesse sentir bonita ao invés de me sentir um saco de batatas! E pagava mais caro por esse SOFRIMENTO, tendo, assim, pouquíssimas peças de roupa. Usava uma calça jeans por 5 dias seguidos — por anos —, mesmo quando ela desgastava nas coxas e rasgava minha pele no atrito . Mas ainda assim podia cobrir a nudez. 
Menos de 5 anos atrás, assim como ACONTECE para MUITAS pessoas gordas, esse "movimento" de internet não chegava até mim. Mas mesmo quando ele chegou, nada do que eu precisava ou queria era acessível. Eu conheci muitas pessoas gordas "que se amavam", que "tinham estilo" e falavam sobre moda "acessível" e "representatividade", conheci muitas lojas online, conheci feiras plus size, mas ainda não tinha acesso a nada daquilo. Ainda ficava presa em casa sem calcinha para colocar o absorvente. Eu só assistia de longe a vida "colorida" de outras gordas e pensava que o problema era o meu corpo ser tão errado. Assisti a vida "colorida" dessa blogueira, que no meio da discussão me disse que "trabalhou muito para ostentar 7 marcas e até mais se ela quiser".  
...
Não foram as marcas nacionais plus size  que mudaram minha realidade. Até HOJE, 2023, quase nenhuma loja plus size online oferece roupas para o meu tamanho e proporções, e as que oferecem têm preços MUITO acima das minhas possibilidades. Uma calça legging? 150 reais. UMA calcinha? 50 reais. Um vestido? 250 reais. Uma blusinha de tule? 90 reais. Um conjunto de moletom? 480 reais.
E a despeito da propaganda que fazem através de blogueiras, é sempre tudo feito de qualquer jeito. Mesmo pagando caro, o atendimento é sempre sem a menor dignidade e respeito. As tabelas são sempre uma mentira. A qualidade não é boa. Tantas vezes arrumei dinheiro e comprei dessas lojas online, e mesmo pagando valores absurdos, recebi peças de tamanho inadequado e me vi tentando me enfiar em roupas, chorando e suando, odiando meu corpo exatamente como era quando comprava em lojas físicas. A diferença é que agora eu fazia isso no meu quarto e não em uma cabine minúscula.
Mas o que mais me revoltou lendo a afirmação de que "a questão de roupas está quase resolvida", foi pensar em todas as pessoas gordas maiores que me procuram. Pensar na Maria, que 4 anos atrás me procurou contando que vestia 66 e não tinha NENHUMA peça de roupa. Para esconder a nudez, Maria usava um lençol em volta do corpo e não podia sair de casa nem para tomar um sol. Quando chegavam visitas para suas filhas, ela tinha que se trancar no quarto.
Ao longo dos anos ouvi relatos assim inúmeras vezes. Inclusive de pessoas contempladas pelas duas campanhas do agasalho que fiz aqui.
Foi de amargar ler essa fala, quando sofri tanto fazendo esssas campanhas. Eu perdi a saúde que me restava ano passado fazendo essa campanha, e mesmo com dinheiro na mão isso não foi suficiente para oferecer dignidade para pessoas gordas maiores. Mesmo com dinheiro na mão eu NÃO TINHA onde comprar os agasalhos, porque o mercado plus size nacional é insuficiente, anêmico e prefere fazer roupas para quem veste 42, 44 e 46 do que atender os tamanhos acima do 60. Comprar na Shein significaria esperar até um mês para as peças chegarem e ainda correr riscos de ser taxada. Além disso, a Shein não atendia as medidas de todas as pessoas inscritas na campanha.
Uma marca se comprometeu comigo a fazer os agasalhos sob medida por um preço mais acessível. Prometeu fazer quantas peças eu precisasse, sem limite de tamanho. Mas após pegarem o dinheiro, só me entregaram desdém. Foram meses de desgaste. Algumas pessoas só receberam seus agasalhos no fim do inverno. Muitas pessoas receberam trapos furados, manchados, descosturados. Roupas que desbotaram e encolheram na primeira lavagem. Roupas menores do que o corpo. Isso sem contar todos os desaforos que ouvi, do tipo: "não se reclama de PRESENTE".
No fim é isso, as poucas marcas que fazem tamanhos realmente grandes, cobram valores abusivos e nos tratam como se fosse um favor. 
...
É uma questão de esforço, como a nossa querida blogueira afirmou? Quem trabalha MAIS do que ela, mas não tem acesso a metade do que ela tem, não se esforçou o suficiente? E as gordas que ficam peladas em casa e não conseguem trabalho porque "não fazem o perfil" de nenhuma empresa? Não se esforçaram o suficiente. Que fiquem peladas em silêncio! O importante é que uma dúzia de blogueiras gordas agora tem acesso a roupas, a eventos chiques, a dinheiro e ao que mais quiserem ostentar.
A meritocracia da pretensa esquerda é mais fétida do que a da direita. Pelo menos a direita não disfarça seus pensamentos. Eu tenho certeza que ela não me diria isso em público. Mas o mais PODRE nesse discurso, é que o namorado dessa blogueira é gordo MAIOR (68+), e mesmo TENDO dinheiro, ele não encontra uma cueca ou uma jaqueta de frio pra usar no inverno. Eu sei disso, porque ela mesma me contou ano passado, durante minha luta na campanha do agasalho.
O egoísmo é tamanho, que ela consegue ignorar a falta de acesso do próprio namorado. Ela tem acesso, então tudo bem! Por quem essa galera gorda da internet luta, além de si própria?
...
O que mudou no mercado plus size nos últimos 20 anos? Eu era uma pessoa gorda há 20 anos atrás e sou muito mais gorda agora e posso dizer que "pouca" coisa mudou. E isso sendo bem generosa.
Hoje a Shein quebra um galho, mas nem de longe é suficiente e nem deveria ser vista como A solução. A Shein atende a MAIS corpos gordos do que o mercado plus size nacional, tem uma diversidade de peças e de estilos MUITO maior do que o oferecido por aqui, e tem preços acessíveis. Mas a Shein também não atende TODOS os corpos, não atende todas as necessidades e muito menos a todas as realidades. Além disso, a Shein tem suas problemáticas.
Na prática, a falta de acesso continua a mesma para quem é pobre, para quem não acesso a internet (especialmente pessoas gordas mais velhas e/ou não-letradas), para quem não tem cartão de crédito, para quem mora onde os Correios não entram, para quem mora em cidade pequena, para quem não é gorda padrão.
Se a comunidade gorda brasileira depende de UMA marca chinesa para se vestir, não tem nada resolvido. Especialmente quando a própria Shein tem um futuro incerto no Brasil. O que acontece se a Shein acabar ou se tornar ainda menos acessível no Brasil? Pessoas magras voltam para C&A, Riachuelo e Renner. E nós, pessoas gordas? E as pessoas gordas que nem tiveram acesso à Shein?
Enquanto não tiver lojas em qualquer esquina de qualquer cidade, atendendo TODAS as demandas e as mais diversas realidades financeiras de pessoas gordas — assim como existem lojas em qualquer esquina para atender a pluralidade de gente magra — nada estará resolvido.
Não basta "ter". Se a INFORMAÇÃO não chega para a maioria das pessoas que precisam, se a maioria das pessoas não podem pagar, então a questão do acesso não está resolvida. Não está nem mesmo "quase" resolvida.
...
Mas é claro, agora a pauta de "políticas públicas" está rendendo $ mais do que a pauta de moda, já que a Shein deu espaço para que muitas gordas falem de moda, o que antes era reservado apenas para meia dúzia de blogueiras classe média e famosas. Só que mesmo sem acesso à roupas, à moda, a dinheiro ou a visibilidade, muitas pessoas gordas JÁ estão falando sobre políticas públicas há anos. Estão se esfolando e sendo silenciadas no processo, justamente pela falta de glamour do discurso... Até então.
A hora de falar sobre políticas públicas era dez anos atrás. Era quinze anos atrás. Era em todos esses anos que essa e outras blogueiras passaram falando de moda (e veja bem, de MODA, não de acesso a roupas), ganhando visibilidade e enriquecendo, enquanto tantas outras gordas morriam de fome, de frio ou por negligência médica, no anonimato.
Agora é a hora de jogar um glitter sobre as pautas de políticas públicas, ganhar views fingindo que se importa com alguém além de si mesmo e monetizar a pauta.
Esse "movimento" de internet não serve pra NADA. Nojo e cansaço é o que eu sinto dessa gente gorda elitista cujas vidas giram em torno do próprio umbigo.

Pra quem vocês dão visibilidade?

segunda-feira, 3 de abril de 2023

terminal

Esses dias eu ouvi uma menina dizer: "eu não sinto vontade de viver", e sua mãe indagar: "tá, mas POR QUE você não sente vontade de viver? Tem muita gente lutando para viver!"

E esse diálogo me chocou. Bateu forte. Foi além do clássico "tem gente sofrendo mais do que você". Naquele momento eu lembrei que existem pessoas que lutam contra a morte porque amam a vida. Eu pude visualizar pessoas em hospitais e em sarjetas, lutando contra a morte, não por instinto ou por medo, mas porque realmente amam a vida e querem continuar *vivendo*. Eu tinha esquecido que é possível amar viver. Eu tinha esquecido que nem todo mundo apenas sobrevive. Que nem todo mundo pensa que seria melhor morrer.
Imaginando essas pessoas que lutam para viver porque AMAM viver, eu me senti tão INADEQUADA nesse mundo. Eu não sinto vontade de viver. Eu não amo viver. Nunca amei, nem quando criança. Eu sinto desespero ao acordar para mais um dia. Eu penso que essa vida não tem nada para me oferecer. Nenhum prazer momentâneo compensa a agonia que é VIVER.
Mas hoje me ocorreu que embora eu não ame viver ou sequer sinta vontade, eu TAMBÉM estou lutando para continuar viva. Eu também tenho algum apego à vida, e o motivo ficou bem claro com uma frase do Kafka que caiu no meu colo: "ele tem muito medo de morrer porque ainda não viveu".
Eu li essa frase e chorei.
Essa minha luta pela vida é apenas isso. Muitas vezes profissionais de saúde mental me disseram, e eu sempre soube: eu ainda não vivi, eu apenas sobrevivi a toda a violência que me impuseram.
Talvez a minha relação com a vida seja a minha relação mais tóxica. Eu a odeio, mas não consigo largá-la. Eu até tentei, mas falhei, então só me resta seguir com ela.
Por anos eu tenho lutado pela minha sanidade e pela minha vida, escorada na expectativa de que A VIDA pode me trazer algo de bom se eu ficar. Que eu vou perder oportunidades de viver e me sentir feliz se não estiver mais aqui. Eu tenho me apegado a essa promessa de dias melhores.
...
O tempo foi passando e nada do que eu esperava e queria aconteceu. Pelo contrário, a vida me trouxe mais tragédias, mais violência, mais dor do que eu poderia imaginar. Quando eu penso que não pode ficar pior, fica.
Faz muito tempo que eu estou indo de mal a pior. Faz muito tempo que eu tenho sofrido com falta de apetite. Faz muito tempo que eu fico dias seguidos sem conseguir comer. Faz muito tempo que eu tenho perdido peso sem querer, sem tentar. Faz tempo que meus cabelos estão caindo, que me sinto enjoada, que meu corpo está fraco e ferido, que eu sinto dores a ponto de querer gritar. Faz tempo que não me reconheço no espelho. Faz tempo que eu não me toco e nem sou tocada, faz tempo que não sinto prazer em nada que eu gostava. Faz tempo que não consigo dormir, faz tempo que acordo chorando no meio da madrugada. Faz tempo que eu perco o fôlego de tanto chorar ao longo do dia, no meio de multidões. Faz muito tempo que vocês me assistem morrer... Porque a sensação que eu tenho é que estou morrendo, definhando, apagando, murchando. Faz muito tempo também que busco ajuda, que tento melhorar e me esforço todos os dias para recomeçar. Eu tenho lutado. Luto para viver, independente dos meus sentimentos pela minha vida. 
Mas ninguém entende de verdade. Ninguém realmente reconhece meus esforços. Eu vi muita gente fazer chacota da minha dor, da minha falta de apetite, da minha insatisfação por estar perdendo peso e pelo meu corpo estar mudando contra a minha vontade. Eu vejo o olhar das pessoas. Minimizam minhas queixas ou duvidam de tudo que eu digo. Me fazem sentir louca a ponto de eu ficar me medindo e me pesando de maneira neurótica para me validar, para ter certeza de que o que eu vejo é real, porque a balança e a fita métrica não mentem.

Não me acham digna e nem me dão validação. Mas eu, que não amo a vida, estou lutando para VIVER, tanto quanto qualquer pessoa que a ama.

sábado, 1 de abril de 2023

autoestima?

Texto de 1 de abril de 2019

De tempos em tempos surgem pessoas me perguntando: "como ter auto-estima? Como lidar com o ódio da sociedade?"
A verdade é que eu não tenho uma resposta definitiva para dar. Não existe resposta definitiva. Cada pessoa passa por situações diferentes, cada caminho é um caminho, e só uma coisa é certa: não existem atalhos.
Nós crescemos sendo massacradas pela sociedade, internalizando o ódio das pessoas... E é extremamente difícil se livrar disso - especialmente porque SE AMAR não vai fazer com que as pessoas sejam menos escrotas com você! E nós não somos inabaláveis! Ninguém é! Às vezes a escrotidão do mundo vai penetrar o seu auto-amor e te fazer sentir que você realmente não tem o direito de existir, porque as pessoas não te deixam esquecer que é isso que pensam, em cada ato violento, em cada proibição e exclusão social.
Ser abalada por todo esse ódio social não é sinal de fraqueza. O importante é continuar, não desistir. Recomeçar, se for preciso.
Eu não tenho respostas para dar, eu só tenho a minha história. Só posso mostrar como foi que eu cheguei onde estou. E eu não cheguei "no fim". Todos os dias tenho novas coisas para desconstruir e reconstruir de forma mais saudável. Sou meu próprio "projeto em desenvolvimento".
Construção de auto-estima leva TEMPO. É tirar tudo de ruim que colocaram nas nossas cabeças a vida inteira e colocar coisas boas no lugar.
Não tem como plantar uma semente HOJE e esperar que ela  seja uma árvore frutífera AMANHÃ. Você tem que regar a semente, alimentar a semente, conversar com a semente... e protegê-la de fatores externos... Como a praga, por exemplo. O ser humano cheio de ódio é a praga.

Seja gentil consigo mesma. Tão gentil quanto seria com outra pessoa.
Conheça a si mesma melhor do que ninguém.
Humanize-se. Saiba que você tem o direito de  existir e de ser feliz.

E acima de tudo, PERMITA-SE viver o que desejar, desde que não fira ninguém diretamente!