quarta-feira, 19 de abril de 2023

de são miguel paulista à liberdade

Sou livre, escolho meus caminhos. Mas, por onde caminharei?

Desvio da pessoa em situação de rua, desvio do pastor. Desvio de uma prostituta, desvio do amor. Desvio da polícia, por quem tenho verdadeiro pavor... Desvio do garoto que vende balas e do homem que compra ouro. Desvio do pedido de oferta ao final da missa, na qual entrei por engano — procurando paz, fugindo dos meus demônios. Desvio do Senhor.
Desvio, e me sobram poucas opções. Sou livre, mas não tenho onde ir. Fico estática, então.
A constatação traz tormento... como as previsões. De que elas servem, quando acompanhadas por inação?
Dá pra mudar o destino? Um desastre, previsto e evitado, o que impede que aconteça em outro momento, fazendo as mesmas previstas vítimas? Desvio do perigo ao ouvir previsões, e por que não: desvio das predições!
– A inevitabilidade é uma vadia cruel! – de repente meu pensamento toma voz, a qual se mostra alta demais. Todos ficam calados, inclusive o padre, a madre, o raio que me parta! Olham-me, pasmos. Bato na boca três vezes, peço perdão para a multidão. Desvio, sempre que possível, ao ridículo do padrão. Ao insulto cristão! Desvio também do conceito pagão.
Plim, plim, plim! O padre bate seu sininho.
Meu pecado já foi cometido, quando eu nem sabia da existência do pecado. Há salvação para inocente pecador? Arderei no inferno como Judas, o traidor? Minha pele descolará dos ossos, fazendo-me arder em tremor? Afundarei, amaldiçoando o calor!
– Saudai-vos uns aos outros em Cristo Jesus! – ele diz.
Não me toquem os estranhos, ou gritarei até perder a voz. Cairei, convulsa, cavando minha própria cova.
Eles obedecem a todos os comandos e caminham como cordeiros, é realmente embaraçoso. Se Deus está em nós, não é preciso seguir multidões para encontrá-lo! Mas sigo por garantia... e nada encontro. Nada encontro, tampouco, em mim.
Pobre do meu destino! Vazia de Deus, absolutamente nada me espera, faça vida ou faça morte.
Dou asas a sorte, equilibrando-me em alta ponte... sem fios, sem proteção. Estou na Liberdade, mas esta não encontro, não.
O vento bate em meu rosto, me despenteia, e sinto vida, ainda que passageira. 
A vontade de contrariar o destino é grande. Carros passam com fervor e sem cessar. A multidão, apática, espera um escândalo, uma grande notícia, qualquer coisa que transforme esse domingo miserável em algo fantástico, memorável. Mas hesito, me contenho.
O desejo pelo fim não é tão grande, penso, para dar, de graça, tão tolo espetáculo. Respiro fundo, suportando a poluição, retendo em meus pulmões os artifícios da população.
O céu mostra tormenta. Cinza, nebuloso. Olho para cima, olho para baixo: o desatino é não poder cair para cima, eternidade adentro. O desatino, o cruel desalento é não ter asas, ser tão humanamente humana.
O vento bate nas minhas costas, parecendo querer me jogar ponte abaixo. Uma mulher me olha com antipatia, eu devolvo um gesto de rebeldia.
Ela parte com sua criança. Eu fico. 
As bancas clandestinas declaram o fim de um longo dia... os ambulantes recolhem suas coisas, prevendo a força tática... Com desgosto dobram suas mesas e pegam o metrô: destino Corinthians-Itaquera.
.........
Se todos os dias aqui são iguais, cabe apenas a mim fazer a diferença. O vento não bate novamente, mas meu corpo despenca. Na queda, meu caderno de escritos se abre. As folhas voam, e o meu corpo no chão bate. Um carro vem a oitenta quilômetros por hora, passando sobre mim, como se eu fosse nada. Ele não liga, continua em sua rota inalterada.
Parecia, mas ainda não era o fim. Por meus pecados eu teria de pagar, isso não ficaria assim! Meu sangue e meu corpo são engolidos pelo asfalto, me tornando parte da cidade: minha mãe, contra quem tanto lutei, sendo a filha rebelde de tão grande família, me aceita de volta em seu útero infernal. 
Condenada, as pessoas que ali passam ainda ouvem meu padecimento. 
Eu sou livre, mas não tenho por onde andar... Desvio de mim mesma.

Texto de 03 de outubro de 2009.