segunda-feira, 17 de junho de 2019

parece amor, mas é doença

Noite passada eu não sonhei com ele
Foi a primeira vez em alguns meses
Tive, entretanto, uma terrível dor de garganta
No meio de sonhos entrecortados
Sobre coisa nenhuma
Ouvi uma voz robótica

É câncer

Pensei, culpada,
Em todos os cigarros que fumei
No último ano
Em cada tragada dedicada
A Ele

Em todas as pontas
E as cinzas
Transbordando
Numa caixa
Esperando para virar arte
Contemporânea

É câncer

Prometi ao Universo
"Se não for câncer
Nunca mais acendo um cigarro"

Nunca mais acendo dois, três
Madrugada adentro
Ao som de Jeff Buckley e Vanilla Fudge
Sempre as mesmas canções
E a voz dele recitando Bukowski
Numa rebeldia ensaiada
E um inglês mediano

Ele é bom demais para ler Bukowski em português
E eu gosto disso nele

I will never see it again

Acordei, atrasada 
E mole
Atrasada e sem pressa
Atrasada e de garganta mais arranhada do que um disco velho

Acordei e permaneci de olhos fechados

O pensamento foi logo nele

Meus dedos tatearam
Alcançaram o maço
de cigarros
Instintivamente, sacaram um
Levaram-no à minha boca
E o acenderam com o
Isqueiro vermelho

Meus lábios semicerrados tragaram com fúria teatral
Aprendi com ele

Jeff Buckley começou a gemer

Don't fool yourself

No quarto fechado
Janelas fechadas
Cortinas fechadas
A fumaça se instalou, primeiro na minha garganta dolorida
Então
Invadiu meus pulmões
Meus cabelos
Minhas roupas
E meus livros
Como ele

É câncer.