Noite passada eu não sonhei com ele
Foi a primeira vez em alguns meses
Tive, entretanto, uma terrível dor de garganta
No meio de sonhos entrecortados
Sobre coisa nenhuma
Ouvi uma voz robótica
É câncer
Pensei, culpada,
Em todos os cigarros que fumei
No último ano
Em cada tragada dedicada
A Ele
Em todas as pontas
E as cinzas
Transbordando
Numa caixa
Esperando para virar arte
Contemporânea
É câncer
Prometi ao Universo
"Se não for câncer
Nunca mais acendo um cigarro"
Nunca mais acendo dois, três
Madrugada adentro
Ao som de Jeff Buckley e Vanilla Fudge
Sempre as mesmas canções
E a voz dele recitando Bukowski
Numa rebeldia ensaiada
E um inglês mediano
Ele é bom demais para ler Bukowski em português
E eu gosto disso nele
I will never see it again
Acordei, atrasada
E mole
Atrasada e sem pressa
Atrasada e de garganta mais arranhada do que um disco velho
Acordei e permaneci de olhos fechados
O pensamento foi logo nele
Meus dedos tatearam
Alcançaram o maço
de cigarros
Instintivamente, sacaram um
Levaram-no à minha boca
E o acenderam com o
Isqueiro vermelho
Meus lábios semicerrados tragaram com fúria teatral
Aprendi com ele
Jeff Buckley começou a gemer
Don't fool yourself
No quarto fechado
Janelas fechadas
Cortinas fechadas
A fumaça se instalou, primeiro na minha garganta dolorida
Então
Invadiu meus pulmões
Meus cabelos
Minhas roupas
E meus livros
Como ele
É câncer.
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segunda-feira, 17 de junho de 2019
quarta-feira, 5 de dezembro de 2018
humana
Eu sei que você não deve mais pensar em mim, mas eu penso em você todos os dias que estou acordada. Fico parada no escuro, no silêncio, a pele eriçada pelo pensamento do abraço que você me prometeu. E nos dias que escolho não despertar, eu sonho com você. Nós dois juntos na cama, lendo poemas entre um beijo e outro. Lábios explorando pintas.
Ainda fico tentando imaginar seu cheiro e a textura da sua pele. A imagino quente e macia, e chego a sentir, de um jeito muito abstrato, o conforto do seu corpo no meu.
Ouço músicas que me fazem pensar em você, mesmo sabendo que você não gostaria delas, e penso em todas as coisas que poderiam ter sido e nunca serão...
Vejo você surgindo um dia, mesmo que leve muitos anos, e dizendo que agora é diferente. Eu sei que é bobo, e eu sei que você nunca vai surgir dizendo isso, mesmo que as coisas sejam diferentes! Imagino você racionalizando e escolhendo me ignorar.
Toda vez que acendo um cigarro eu lembro da sua voz e dos seus lábios se movendo, ... e agora foram muitos cigarros.
Às vezes eu estou na rua, na fila do ônibus ou numa livraria e vejo mãos parecidas com as suas... Minhas pernas fraquejam. Sinto um nó na garganta. Lembro dos seus dedos segurando cigarros e os tragando, daquele jeito encenado que me cativou. As lágrimas surgem e ficam presas nos meus olhos até que eu inevitavelmente pisque, então elas escorrem, um filete de cada lado, inundando meu rosto e indo parar no meu peito.
E às vezes eu lembro da sua risada, ao lado da sua namorada, e novamente sinto aquela sensação. Minha pele sendo arrancada do meu corpo.
Eu só queria que você soubesse.
quinta-feira, 5 de outubro de 2017
a morte do intelecto
Eu estive lá.
Eu sofri
um pouco.
Eu sentei em cadeiras desconfortáveis.
Eu sou uma lágrima do sol.
Sou uma colina pela qual
os poetas correm.
Inventei o alfabeto
depois de observar o vôo das garças
que fizeram letras com suas pernas.
Sou um lago na planície.
Uma palavra
numa árvore.
Sou uma montanha de poesia.
Sou uma blitz
no inarticulado.
Eu sonhei
que todos os meus dentes caíram
mas a língua sobreviveu
para contar a história.
Porque sou um silêncio
poético.
(Autobiografia - Lawrence Ferlinghetti)
A noite passada eu tive um sonho, a princípio triste. O conteúdo principal não interessa. Mas eu chorava, e tinha alguma coisa prendendo minha fala. Eu puxava minha língua para fora, ela era gigantesca, e eu estava a ponto de cortá-la com uma tesoura. Impedia a mim mesma. Acordei. Voltei a dormir. Sonhei que tinha uma gosma preta e enorme, feito chiclete, no céu da minha boca. Eu puxava, puxava e ela não saia por completo nunca. Me angustiava, me sufocava, me impedia de falar. Eu estava na escola Benedito Calixto, e abandonava a aula na metade, puxando a gosma, mas quanto mais eu puxava, mais ela vinha.
Estava na rua. Tinha um monte de terreno baldio e gente suspeita. Tentava esconder o celular dentro da calcinha, mas não conseguia, e o colocava no bolso da minha mochila. Caminhava desconfiada, olhando para os lados, ainda puxando a gosma e tentando encontrar o meu caminho. Alguns homens me seguiam. Ouvia um deles perguntar para um grupo de outros homens se eu era dali, diziam que não. Dois deles me paravam num corredor estreito, anunciavam o assalto, e eu protegia minha mochila, tornando óbvio que o que interessava estava ali dentro. Tentava lidar com a gosma e com a situação.
Eu dizia: "por favor, me deixem ir! eu sou apenas uma estudante!". Esperava pelo momento em que eles sacariam suas armas, mas o que eles tiraram dos bolsos foram mesmo adagas, prontos para me picotar se eu não lhes entregasse alguma coisa. Mas eu teimava, não lhes daria nada.
Me atiraram ao chão. Eu protegia minha mochila. Eles pairavam acima de mim com suas adagas e eu implorava: "não me matem, eu sou apenas uma estudante! não me matem, por favor! sou apenas uma estudante!". Implorava, mas não cedia.
Eles me achavam patética, implorando ridiculamente no chão, com gosma grudenta saindo da boca, e sangue, que viera de algum lugar. Então eles jogaram as adagas ao meu lado e foram embora, enojados com a minha covardia.
Eu ainda estava no chão, recolhendo as coisas que haviam caído da minha bolsa, quando surgiu outro homem, com outras intenções, e com arma em punho. Eu peguei a adaga e o matei antes que ele tivesse chance de qualquer coisa. Corri, temendo que seus companheiros chegassem para me matar.
Quando penso na morte, de forma natural, num acidente ou num assassinato, eu penso que não quero morrer. E quando eu penso na existência, eu penso em suicídio. Tem uma grande diferença entre morrer e se matar. Entre existir e viver.
A última vez que eu tentei suicídio, não tive medo. Eu tive certeza. Depois de uma festa familiar — acho que o aniversário da minha avó —, eu subi para o meu quarto com algumas latinhas de cerveja e tomei cartelas dos mais variados medicamentos, que tinha à minha disposição graças aos meus meses de rato de laboratório no HC, sob a supervisão do meu manipulador, mas querido doutor Marcelo (que por sinal, eu acredito que deveria tomar tantos remédios quanto eu, para tratar de sua sociopatia. É apenas o meu diagnóstico, você pode procurar uma segunda opinião, querido).
Entre o repertório: Topiramato, bupropiona, lítio, quetiapina, abilify, gabapentina e o temido heimer, que serve para tratar, como o nome sugere, alzheimer, mas estava sendo testado em mim, "simples" paciente portadora de transtorno mental. Àquela altura eu tinha uma sacola de supermercado cheia de medicamentos que sobravam entre uma consulta e outra. Todos eles não caberiam em mim, escolhi, portanto, quase que aleatoriamente.
Coloquei dois colchões no chão, um ao lado do outro, para que eu não fosse ouvida me debatendo caso tivesse uma convulsão. Tranquei a porta do meu quarto, mas sabia que ninguém entraria, a não ser que eu passasse muitos dias sem dar o ar da minha graça na cozinha. Coloquei música para tocar on repeat no celular: o álbum era o Meteora, do Linkin Park. E por fim deitei, coloquei os fones e dormi quase que de imediato. Não sei se os remédios já faziam algum efeito ou se eu simplesmente fui capaz, por uma vez na vida, de desligar o meu cérebro. Não chorei. Eu estava certa do que queria e estava certa de que aquela vez era para valer; não pediria ajuda no último momento, não acordaria nunca mais.
Ledo engano. Dormi, descobri depois, por aproximadamente 30 horas, e acordei, ah, sim, eu acordei, ao som de Linkin Park. Estava atordoada. Não é figura de linguagem, eu estava atordoada. Era como se eu estivesse bêbada, só que muito pior. Minha cabeça girava insanamente, feito um pião, e ao me levantar, com esforço, cambaleei pelo meu quarto, tentando me segurar à alguma coisa, mas nada parecia estar ao meu alcance. Não conseguia focar minha visão em lugar algum; quando eu olhava para as coisas era como se estivesse vendo-as multiplicadas por mil. Minha pele ardia, como se eu tivesse ficado exposta ao sol por todo o tempo que dormi. A despeito disso, tremia loucamente, morrendo de frio. Meu coração vibrava rapidamente, desconfortável dentro da minha caixa torácica. Não havia o menor traço de estabilidade no meu corpo, por dentro ou por fora, e menos ainda na minha mente. Eu estava confusa, não sabia quanto tempo havia se passado. Não sabia se estava viva ou morta. Tentava respirar fundo, fazer todas aquelas sensações passarem, mas era inútil. Comecei a chorar. Por estar tão fodida, pela agonia de tudo que estava acontecendo ao meu corpo.
Consegui, com alguma dificuldade, destrancar e abrir a porta, e chamei minha madrasta, que estava no quarto ao fim do corredor do meu. Ela veio, e eu, deitada, porque não conseguia mais me manter de pé, expliquei, voz pastosa e difícil de sair pela garganta, o que havia feito e que precisava de ajuda. Meu irmão caçula, à época com uns 4 ou 5 anos, me assistia, e eu sentia vergonha e pesar por fazê-lo me ver daquela forma. Ela disse "ai meu Deus", e me explicou que eu não havia saído do meu quarto por mais de um dia. Foi chamar meu pai, que surgiu em seguida, nervoso, dizendo coisas como "eu não acredito que vou ter que passar por isso de novo", e outros despautérios que não cabiam na boca de um pai vendo sua filha naquela situação, e que de forma geral não ajudaria em nada. A muito custo, minha madrasta o convenceu a me levar ao hospital. Ele relutava com a ideia, desgostoso de ter que perder seu tempo dirigindo seu estorvo de filha, que não estava morrendo.
Minha vó estava no andar abaixo, aflita. Entramos no carro, eu, meu pai e minha madrasta. Meu pai dizia palavras duras, brigava comigo, mas aquela era a menor de minhas aflições. Os efeitos físicos eram muito mais devastadores.
Chegamos ao hospital. Meu pai avisou que não ficaria ali. Entramos, ele apresentou a situação, deu meus dados, me deixou sentada numa cadeira esperando pelo atendimento do cardiologista, e foi embora. Me buscaria mais tarde.
Eu mal conseguia ficar sentada, pois meu corpo estava pesado e cambaleava. Para a frente, para os lados. Eu tentava segurar minha onda.
Passadas algumas horas, fui atendida. O médico me perguntou o que eu havia tomado. Confusa, respondi alguns dos nomes que lembrava. O heimer me preocupava mais, por seus efeitos neurológicos. Ele me disse que era impossível eu ter tomado todos os remédios que alegava, pois se o tivesse feito, estaria morta. Além do mais, já era tarde para lavagem estomacal, então não havia nada a ser feito. Pois, doutor, eu tomei, e talvez eu esteja mesmo morta, porque esse mundo se encaixa perfeitamente na minha visão de inferno.
O médico descrente fez o exame cardiológico, não sei dizer o nome. Analisou o que viu e me dispensou. Eu fui até o balcão de atendimento e expliquei que recebera alta, mas que não tinha condições de voltar sozinha para casa. Me disseram alguns sinto-muitos, não levamos pacientes às suas casas, e na falta de escolha, fui caminhando, em zigue-zague, para a rua. Estava em frente ao hospital, desnorteada, quando chegou o meu pai com seu carro, e dessa vez, em silêncio, dirigiu. Chegamos em casa. Eu subi para o meu quarto. Os efeitos duraram por meses.
Meus olhos ficaram fundos e negros, minha pele estava laranja, meu corpo não parava quieto nem mesmo por um segundo; eu era incapaz de ficar sentada por mais do que alguns minutos. Meu coração não desacelerava. Minha mente era incapaz de seguir uma linha de raciocínio. Eu não conseguia dormir, falava pouco, minha visão estava sempre turva. O pânico de que nunca mais voltaria ao normal era o que mais me afligia.
Em casa ninguém falou nada sobre nada. Aos poucos, muito lentamente, em meio à solidão, a maioria dos efeitos foram se dissipando. Não estive completamente só, é verdade, porque tive Charles Chaplin. Quando minha visão deixou de ser borrada e minha cabeça parou de girar, aproveitei que tinha baixado, uns meses antes, todos os curtas de Chaplin, e os assisti. Com a inquietação de um corpo que não parava de tremer e se sacudir, mas assisti. E aqueles curtas fizeram bem ao meu espírito. O meu preferido é One A.M.
Após muitos meses, minhas pernas foram aquietando. Meu corpo foi parando de tremer. Meu coração desacelerou. Eu voltei a conseguir sentar e assistir coisas mais longas do que 10 minutos. Mas nem tudo voltou ao normal. Minha mente não é tão rápida quanto já foi, eu mantenho problemas severos de concentração, que me afetam intelectualmente, e minha fala se tornou lenta e confusa; eu esqueço as palavras, repito pensamentos e gaguejo. Se já não gostava de falar antes, hoje em dia tal ato me provoca maior apreensão. Eu tentei matar meu corpo, e matei parte do meu intelecto. Esse corpo resiste, ele teima em continuar.
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