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segunda-feira, 17 de junho de 2019

parece amor, mas é doença

Noite passada eu não sonhei com ele
Foi a primeira vez em alguns meses
Tive, entretanto, uma terrível dor de garganta
No meio de sonhos entrecortados
Sobre coisa nenhuma
Ouvi uma voz robótica

É câncer

Pensei, culpada,
Em todos os cigarros que fumei
No último ano
Em cada tragada dedicada
A Ele

Em todas as pontas
E as cinzas
Transbordando
Numa caixa
Esperando para virar arte
Contemporânea

É câncer

Prometi ao Universo
"Se não for câncer
Nunca mais acendo um cigarro"

Nunca mais acendo dois, três
Madrugada adentro
Ao som de Jeff Buckley e Vanilla Fudge
Sempre as mesmas canções
E a voz dele recitando Bukowski
Numa rebeldia ensaiada
E um inglês mediano

Ele é bom demais para ler Bukowski em português
E eu gosto disso nele

I will never see it again

Acordei, atrasada 
E mole
Atrasada e sem pressa
Atrasada e de garganta mais arranhada do que um disco velho

Acordei e permaneci de olhos fechados

O pensamento foi logo nele

Meus dedos tatearam
Alcançaram o maço
de cigarros
Instintivamente, sacaram um
Levaram-no à minha boca
E o acenderam com o
Isqueiro vermelho

Meus lábios semicerrados tragaram com fúria teatral
Aprendi com ele

Jeff Buckley começou a gemer

Don't fool yourself

No quarto fechado
Janelas fechadas
Cortinas fechadas
A fumaça se instalou, primeiro na minha garganta dolorida
Então
Invadiu meus pulmões
Meus cabelos
Minhas roupas
E meus livros
Como ele

É câncer.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

humana

   Eu sei que você não deve mais pensar em mim, mas eu penso em você todos os dias que estou acordada. Fico parada no escuro, no silêncio, a pele eriçada pelo pensamento do abraço que você me prometeu. E nos dias que escolho não despertar, eu sonho com você. Nós dois juntos na cama, lendo poemas entre um beijo e outro. Lábios explorando pintas.
   Ainda fico tentando imaginar seu cheiro e a textura da sua pele. A imagino quente e macia, e chego a sentir, de um jeito muito abstrato, o conforto do seu corpo no meu.

   Ouço músicas que me fazem pensar em você, mesmo sabendo que você não gostaria delas, e penso em todas as coisas que poderiam ter sido e nunca serão...
   Vejo você surgindo um dia, mesmo que leve muitos anos, e dizendo que agora é diferente. Eu sei que é bobo, e eu sei que você nunca vai surgir dizendo isso, mesmo que as coisas sejam diferentes! Imagino você racionalizando e escolhendo me ignorar.
   Toda vez que acendo um cigarro eu lembro da sua voz e dos seus lábios se movendo, ... e agora foram muitos cigarros.
   Às vezes eu estou na rua, na fila do ônibus ou numa livraria e vejo mãos parecidas com as suas... Minhas pernas fraquejam. Sinto um nó na garganta. Lembro dos seus dedos segurando cigarros e os tragando, daquele jeito encenado que me cativou. As lágrimas surgem e ficam presas nos meus olhos até que eu inevitavelmente pisque, então elas escorrem, um filete de cada lado, inundando meu rosto e indo parar no meu peito. 
   E às vezes eu lembro da sua risada, ao lado da sua namorada, e novamente sinto aquela sensação. Minha pele sendo arrancada do meu corpo.
   Eu só queria que você soubesse.


segunda-feira, 29 de outubro de 2018

auto-conhecimento

   Não dormi, mas comecei o dia gargalhando. Seis horas da manhã e minha risada alta preenchia meu quarto, provavelmente se fazendo ouvir fora dele. Ri tanto, que a minha barriga começou a doer, enquanto as lágrimas escorriam pelas minhas bochechas e embaçavam meus óculos. Eu tentava não rir, porque o motivo do riso desenfreado era a desgraça de algumas pessoas que caíram com a freada violenta de um ônibus. Parava por alguns minutos, segurando o riso com a consciência pesada, mas depois não aguentava, e o ritual descontrolado recomeçava.
   Ouvi os passos em frente à janela do meu quarto. Ouvi minha avó na cozinha, senti o cheiro do café. Eu não tomo café, mas devo admitir que o cheiro de café, especialmente pela manhã, aguça alguma coisa boa dentro de mim.
   Entre o riso e o silêncio culpado, ouvi o barulho das xícaras na cozinha, e o som de pessoas cochichando. Tentei ouvir o que diziam, mas não deu.
   Eu ainda estava indecisa se deveria ir à consulta com a psiquiatra ou não, mas pensei: "ainda tenho bastante tempo", e depois me ocorreu que é justamente quando eu tenho tempo de sobra que me atraso. Eu me conheço, estou sempre certa. Me atrasei, depois de colocar uma roupa qualquer e sair correndo, de cara lavada, na chuva que tornava o chão escorregadio sob o meu all star velho demais para ter algum efeito anti-derrapante. Quase escorreguei algumas vezes. Teria sido um belo castigo, ser filmada escorregando para abastecer o riso de alguém depois, na internet.
   Mas não caí. 
   Cheguei ao posto de saúde, tirei os óculos escuros respingados da chuva, e peguei a senha eletrônica. Agora tem isso lá, e eu me sinto de alguma forma traída por esse avanço tecnológico. Tira o aspecto familiar da coisa. 
   Mais traída ainda me senti quando minha senha foi chamada, e a recepcionista não lembrou meu nome. Ela me olhou, olhou para a tela do computador por uns segundos, e me olhou de novo, soltando um odioso: "esqueci seu nome...". Ela me conhece há dez anos. Eu sei o nome dela e de todas as pessoas no posto de saúde. Aos poucos, eles esquecem o meu. 
   "Cíntia, prontuário 19-119".
   Enquanto esperava, irritadiça pela noite não dormida, observei as pessoas passando. Auxiliares de enfermagem, as moças da limpeza, o pessoal da administração, e as agentes de saúde. Recebi dois abraços genuínos, fortes, e muitos sorrisos amarelos: "você anda sumida!". Eu sempre busco amor nos lugares mais improváveis.
   O posto está cheio de enfeites florais feitos de papel crepom; dois tons de rosa e um branco, para a campanha de prevenção de câncer de mama. Fiquei com vontade de roubar alguns dos enfeites, colar na parede do meu quarto. Eu sou assim. Uns anos atrás roubei um dos enfeites da já precária árvore de natal do posto de saúde, porque eu preciso ter esses souvenirs para me lembrar dos momentos. Para tornar as minhas memórias tangíveis. Ou para manter a ilusão ativa.
   Pensei em todos os anos esperando por aqueles corredores, vendo as pessoas passando e preocupando-se comigo. Pensei nos meus professores do ensino fundamental. O meu sentimento era o mesmo por ambos os ambientes e seus habitantes. O mesmo amor por pessoas que são pagas para notar a minha existência, e que esquecem do meu nome assim que o meu caso deixa de ser prioridade em suas mesas.
   Comecei a andar de um lado para o outro, inquieta com a demora. Apertei o aparelho de álcool gel, mas não saiu nada, como sempre. Tem uma mesa no corredor, ao alcance dos pacientes, e eu sempre me perguntei o que tinha naquelas gavetas, sem coragem de abrir para ver. Olhei para os dois lados do corredor cheio de pacientes cuidando de suas próprias dores. Abri a primeira gaveta, e, adivinha só, não tinha merda nenhuma. Foi o suficiente para acabar com qualquer traço de tesão detetivesco.
   Me pus a ler os cartazes de prevenção de câncer de mama, e depois o mural cheio de post-its com mensagens "motivacionais". Cuide-se!, dizia um dos post-its. Ame-se! A vida importa! AUTO-CONHECIMENTO! Eu nunca fiz o auto-exame. Pensei em roubar um ou dois, quem sabe três post-its rosa choque. Mas talvez a mensagem fizesse falta para outras pessoas. Eu sou hipocondríaca. Quando eu penso em fazer o auto-exame, penso na possibilidade de encontrar um nódulo, e começo a surtar. A bem da verdade, se eu procurasse eu provavelmente encontraria mil nódulos, a minha ansiedade os colocaria ali.
   Eu me conheço, mas às vezes não quero conhecer demais. Pensei nas minhas seguidoras.
   A psiquiatra me chamou. Ela não lembrava exatamente sobre o meu caso, ficou lendo por cima as páginas do meu prontuário, me fazendo as mesmas perguntas mil vezes, e eu as respondia, sentindo a exasperação crescer. É como se ela não ficasse contente com as minhas respostas, então continuasse perguntando para ver se eu as mudava. Você está pensando em suicídio, ou está planejando suicídio? Qual é a merda da diferença? Perdi a calma com ela, e me arrependi em seguida, porque apenas parte da minha exasperação era pela condescendência dela, a outra parte era pela noite não dormida. Eu sou como uma criança que vai ficando rabugenta à medida que o sono chega, e que precisa deitar e pegar no sono assim que esses momentos batem.
   Ela continuou fazendo as mesmas perguntas e as mesmas propostas. Eu parei de responder, adotando a tática de simplesmente encará-la. Ela continuou na expectativa de uma resposta, e eu continuei oferecendo silêncio, sabendo que meus olhos estavam tão vazios quanto às vezes me acusam.
   Foi uma consulta absurdamente longa, em que nada foi abordado. A minha impaciência crescente, louca para sair dali. Comecei a concordar com ela, era o único passaporte para a saída daquele lugar. Funcionou. Até mais, Cíntia. Obrigada. Tchau.
   Peguei meus remédios, não tinha todos. Estava exausta. Passara horas ali, e a consulta com a psiquiatra no fim me deixou pior do que quando eu cheguei. Com os bolsos da jaqueta jeans molhada cheios de remédios, coloquei os óculos escuros e saí. Eu não suporto claridade, especialmente quando não durmo.
   Ia chegar em casa, tirar toda a roupa e me jogar na cama ao som de Florence + the Machine. Isso não aconteceu. Enrolei o dia inteiro, cansada, sem fazer nada, sem ter noção de como as horas passaram. Dava tempo de ir pro curso ainda, mas eu simplesmente não teria energia física ou intelectual para acompanhar a aula.
   No fim da tarde eu tirei as roupas ainda molhadas, e deitei, cobrindo a cabeça. Meu corpo começou a pesar, minha mente começou a desligar, e o celular apitou. Relutei por alguns momentos, mas descobri a cabeça e estiquei o braço, pegando o aparelho.
   Era ele. Meu coração acelerou. Ele gostou da minha foto de 4. Instigada, minha mente acendeu, voltou a funcionar a todo vapor. Minha buceta a acompanhou. Em alguns minutos ele conseguiu me fazer esquecer da mágoa de situações anteriores, do sono, do cansaço, da exasperação, e tudo isso deu lugar a um tesão violento, que provocava ondas de prazer pelo meu corpo sem que eu ao menos me tocasse. 
   Eu te quero. Você me faz sentir um tesão desmedido. Seu pau está pulsando? Quero me esfregar em você. Imagina, imagina, imagine! Imaginei o coturno dele pressionando meu corpo, me imobilizando contra a parede, deixando as marcas da sola na minha pele. Estava molhada novamente, mas dessa vez não era culpa da chuva, que ainda batia  contra a minha janela.
   E as mensagens começaram a ficar mais espaçadas... 
   Ocupado.
   Ok...
   Abri as pernas, coloquei os dedos para trabalhar, imaginando. AUTO-CONHECIMENTO!
    Os dedos deslizando com facilidade. AUTO-CONHECIMENTO!
   Me esparramei na cama, me desfazendo entre os lençóis e cobertas. AUTO-CONHECIMENTO!
   Soltei gemidos e suspiros... AUTO-CONHECIMENTO!
   A atenção dele nunca é só minha. Eu sempre tenho que dividi-la com outras pessoas, com outras coisas.... AME-SE!
   É só sobre ele. O prazer dele, o sentimento dele, o momento dele, a vida dele. Ame-se ame-se ame-se ame-se ame-se ame-se ame-se, AME-SE, porra!
   Tomada pelo tesão e pela tristeza de uma só vez, comecei a chorar enquanto me tocava, enquanto os dedos entravam em saíam, e o tesão começava a ser vencido pela tristeza. O som do meu choro preencheu meu quarto, talvez se fizesse ouvir lá fora. Chorei tanto, que a minha garganta começou a doer, as lágrimas escorrendo em abundância pelas laterais do meu rosto. Parava por alguns segundos, mas depois não aguentava, e os soluços convulsos recomeçavam. No escuro, no silêncio.
   Os dedos desistiram. Fechei as pernas, deitei em posição fetal e cobri a cabeçaEu sempre busco amor nos lugares mais improváveis. Chorei tanto, que dormi. Por dois dias.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

fumaça

   As coisas invariavelmente começam como se nada estivesse acontecendo. É simples assim. Você não é ninguém pra mim, e eu não sou ninguém para você. Bate até um desconforto, de tanta mensagem chegando, e do impulso de respondê-las. Te vejo como um todo — um amontoado de características. Um homem como qualquer outro. 
    Mas aos poucos... O papo passa do morno para o muito quente — a sensação é, ao mesmo tempo, sufocante e deliciosa, como são as melhores coisas. Palavras bem aplicadas, surge a identificação. Você entra na minha cabeça. Forjamos a conexão... 
   ... Talvez seja por hábito, que nós fazemos essas coisas. Continuamos, porque a opção é o vazio. O nada perde espaço, se torna alguma coisa... Dez minutos já não são o suficiente. Eu quero mais, quero todos os seus minutos e todos os seus pensamentos. 
   Vou isolando suas características, passa a me agradar o que sinto e o que vejo. Pintas, olhos, dedos. Desejo. O jeito que os seus lábios soltam a fumaça... 
   Sozinha na minha cama, fantasio, ao som de Portishead, sobre o seu cheiro. Sobre sua voz, a textura da sua pele... a temperatura do seu abraço. Fico imaginando o tom do seu gemido. Tudo em você é meio encenado...
   Quando noto, você está sob a minha pele. Meu ser anseia por você. A mais inocente lembrança da sua existência eriça todos os meus pelos. O meu coração descompassa, o meu cérebro fica dormente. O seu nome encharca a minha calcinha...
   É tudo muito breve, as coisas são intensas. Mas eu descobri, ao longo da vida, que intensidade é algo que não dura...
    É brutal, a porrada que atinge o meu estômago. O sentimento é um raio atravessando o meu corpo repetidamente. Meu coração ganha mais um remendo. O buraco no qual venho caindo fica mais profundo.
   E de repente, são cinco horas da manhã. Eu fumo meu primeiro cigarro em muitos meses, para me sentir mais perto de você. Olho suas fotos, revivendo as palavras, e penso no absurdo das coisas. Há pouco tempo você nem existia. 
   O fluido transparente escorre pelas minhas coxas, enquanto você dorme com ela.
   Solto a fumaça.



   

domingo, 31 de dezembro de 2017

Quando acaba

   Tem algumas coisas que não importa quantas vezes nos digam, nós não iremos entender, a menos que estejamos dentro da situação. Esse ano eu consegui compreender uma coisa que sempre me disseram, e que se eu tivesse assimilado antes, não teria sofrido tanto quanto sofri: homens gostam do que não podem ter. É a chamada "cultura do estupro".
   Quando eu transei pela primeira vez, aos 21 anos, eu não estava pronta. Era de se esperar que eu estivesse, na época em que vivemos. Mas eu não estava, e tampouco estava o meu parceiro apto a entender minhas necessidades e personalidade esquiva.
   O Alexandre não foi o pior cara com quem fiquei. Em retrospecto, ele provavelmente foi o melhor (ou o menos pior?).
   Na época, porém, eu não sabia lidar com os meus desejos nem com os desejos do outro; não sabia lidar com o meu corpo, com a minha imagem perante um homem, mesmo um cujo desejo se mostrava de forma inegável. Se na primeira vez ele foi fofo, justamente por saber que era a primeira vez, o resto do que tivemos foi um jogo que eu não sabia jogar.
   Ele queria que eu me soltasse, queria que eu fosse safada, queria me dominar... Mas eu não conseguia ser dominada, tanto por orgulho quanto por não  levar um cara de um metro e sessenta e cinco tão a sério.
   Eu ia à casa dele e ficávamos ali, um diante do outro, ele esperando que eu dissesse o que eu queria dele, esperando que eu agisse. Eu queria e ele queria, ambos sabíamos, mas essa era a regra dele, a iniciativa teria que ser minha dali em diante. 
   As palavras "me fode" nunca sairiam da minha boca, então não havia foda nenhuma na maioria das vezes. Ele era capaz de abdicar dos próprios desejos para continuar seu jogo. 
   Ele achava, e me disse, que eu não era louca o suficiente, e essa afirmação foi pior para o meu ego do que ele me chamar de gorda, palavra até então pejorativa.
   Tem essa trava em mim. Eu posso dizer qualquer coisa através de palavras escritas, mas quando elas saem em forma de som, um abismo se abre abaixo de mim e eu caio de forma violenta e contínua.
   Era questão de tempo, entretanto, até ele se cansar do nosso jogo de gato e rato, e um dia ele encontrou uma nova jogadora, provavelmente uma que sabia como jogar o jogo da maneira certa. Foi simples, ele foi direto ao ponto e me disse com todas as letras: "o tesão acabou". Foi isso. Engoli seco. Por um tempo sofri, confesso. Não por gostar dele, não porque ele fosse bom de cama, mas porque a minha substituta era tudo que eu queria ser e não era.
   No começo desse ano eu estava me sentindo diferente. Minha vaidade estava voltando, depois de longos anos. A confiança na minha auto-imagem estava sendo reconstruída. E a necessidade de um corpo colado no meu era latente. Eu estava no meio do deserto, sedenta por paixão... e conheci o Emanuel.
   Um cara inteligente e carismático, que sempre sabia o que dizer e que priorizava a minha inteligência acima da minha aparência. Um cara que dizia sentir tesão pelo meu cérebro. Era o meu intelecto que o deixava de pau duro, ele afirmava.
   E muito rapidamente, deslumbrada, eu acreditei em sua sinceridade. Tão rápido quanto, nós saímos dos papos intelectuais e caímos em papos meramente sexuais. Nesse ponto eu recuei com todas as forças que tive. Eu era, novamente, um ratinho assustado diante de suas palavras ardentes. Um misto de tesão e medo tomava conta de mim e o meu cérebro exigia que eu me afastasse imediatamente. O meu coração queria que eu ficasse. 
   O cérebro a princípio ganhou e eu lhe disse que não poderíamos continuar conversando. Ele se recusou a aceitar isso. Não queria — não iria —, me disse, abrir mão de uma mulher como eu.
   Tudo era demais e assustador para mim, mas a minha mente, certamente entorpecida pelo meu coração, me garantia que se eu fosse adiante e o bloqueasse, coisa que fiz (e depois desfiz), eu iria me arrepender futuramente. Infelizmente muitas vezes me falta sensatez.
   Na dança inicial, ele evadindo e eu recuando, muitas vezes chocada e arrebatada pela lascividade de sua abordagem, eu era, ainda assim, ingênua e moldável. E ele um escultor talentoso. Eu dizia não, e quanto mais o dizia, mais ele queria o meu sim. Com sagacidade ele foi conquistando sim após sim, tudo muito rápido.
   O Emanuel é um homem que sabe o que quer e como conseguir. Ele é o dominador que o Alexandre nunca conseguirá ser. Seus jogos mentais são muito efetivos. Ele nunca forçou um "me fode", os tirou de forma graciosa da minha boca... não, do meu corpo inteiro.
   E então eu era completamente dele, e o queria completamente. Descobri que aquele jogo era prazeroso e que eu era boa nele. Ledo engano: estávamos jogando jogos similares, mas com regras ligeiramente diferentes.
   Eu sabia que não iria durar pra sempre. Sabia que era questão de tempo, mas imaginei que fosse durar mais. Eu era tudo o que ele queria que eu fosse, sempre havia sido, mas até então me faltara a pessoa certa para trazer tudo isso à tona... Mas homens querem apenas aquilo que não podem ter. Quando conseguem o que querem, o brinquedo deixa de ser interessante.
   Eu o coloquei em um altar e não escondi nem dele e nem de ninguém. Todo mundo me dizia: "Cíntia, isso não se faz... ele vai pisar em você". Mas eu queria acreditar na palavra dele de que ele "não era um babaca". Eu queria acreditar em alguma coisa, em alguém...
   As coisas logo começaram a escapar entre os meus dedos. A atenção que ele me dispensava começou a ser dosada. Eu sabia que estávamos em um novo nível do jogo, e aquele não me agradava em nada. Não era um jogo que proporcionava prazer, era um jogo mental e doentio, que também me deixava doentia.
   Então ficou óbvio que as coisas estavam caminhando para o fim porque eu alimentei demais o ego dele. E eu pensava nas palavras do Alexandre: "o tesão acabou", e imaginava o que o Emanuel me diria quando estivesse definitivamente farto. O que eu não esperava era o que veio.
   Eu posso ter jogado a parte sexual muito bem, mas falhei miseravelmente em aderir aos métodos sociais, os quais sempre repudiei. Nós vivemos em uma sociedade na qual você não pode expressar seus sentimentos verdadeiros. É necessário sempre fingir que gostamos menos do que realmente gostamos, senão corremos o risco de ficar sem nada. Excesso de querer causa repulsa.
   Com rejeição eu consigo lidar. A vida inteira eu fui rejeitada: pela minha família, por meus amigos, por colegas de escola, pela sociedade inteira e por mim mesma. O que eu não consigo encarar é o silêncio, a ausência, a omissão, ainda mais partindo de uma pessoa que tem total domínio sobre as palavras e que poderia, se quisesse, aliviar meu sofrimento. Não sei me frear diante de incertezas, eu vou indo até ouvir um não definitivo.
   O Emanuel nunca me disse não. Ele nunca disse que o tesão acabou. Ele me deu "talvez" e "um dia"... nunca colocou um ponto final. Pelo contrário, ele alimentou as minhas esperanças até o fim, me deixando de joelhos calejados diante de si, servindo o objetivo único de satisfazer seu ego e mostrar que no jogo, ele é o mestre. Já eu, nunca tive muita sorte no jogo. Eu sempre perco.
   Quando acaba, ouvir que o tesão se esgotou faz sentido. Negar um "não" é pura crueldade.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

sabiás

   Você ainda estava aqui, as coisas estavam só começando, mas eu já sabia qual era o gosto do seu descaso. Você se demorava. Eu te esperava, mergulhada em ansiedade. 
   A espera crescia e se transformava em angústia, a qual acabava sempre em revolta. Algo dentro de mim se contorcia com violência, querendo me rasgar, se expulsar de mim com a urgência de uma criança prematura. 
   Eu colocava as músicas mais tristes que conheço para tocar, tirava minha camiseta; a pele eriçada e a garganta pulsando loucamente pelo que estava por vir. Então o cabo USB, dobrado em dois, estralava nas minhas costas. Eu me açoitava com a máxima força que um ser humano é capaz de açoitar a si mesmo, uma vez, duas, três, outras tantas, até cair curvada sobre a cama, sobre mim mesma, a dor latente e a respiração ofegante pelo esforço. Carrasca de mim mesma. 
  Depois permanecia inerte por longos minutos, a respiração ficando suave até quase se extinguir. As costas em chamas e as lágrimas fartas entrando nas minhas narinas e boca. Eu me perguntava o que havia de errado comigo... Como eu podia fazer aquilo? Como eu pude desperdiçar a minha vida inteira ferindo o meu próprio corpo para demonstrar o quanto as pessoas estavam me ferindo por dentro?
   Tudo o que eu conheço desse mundo é a dor que ele produz. Respirar me machuca.
   Você riu e disse que eu deveria te chamar quando sentisse vontade de me açoitar, que você o faria por mim.
   Agora, quando eu penso nas suas palavras vazias, eu penso em toda a violência que existe dentro de mim. Penso em te ferir, te fazer sangrar, em me ferir, em me fazer sangrar. Mas a bagunça seria tão grande, que deixo o tumor da sua existência ferver e crescer dentro de mim... Por enquanto. 
   São três horas da manhã. Não há nada para me distrair dessa agonia de existir. Eu fumo um cigarro a cada vez que penso em você. São muitos cigarros. Tomo algumas doses de conhaque para acompanhá-los, para passar o tempo, para conseguir dormir.
   Os sábias paulistanos também estão acordados.
   E você, anda dormindo bem?
   O problema são as pessoas. O ser humano só sabe fazer zona no mundo, na cabeça uns dos outros.
   Eu queria reunir todos os sabiás dessa cidade e propôr uma fuga em bando. Voaríamos bem alto, para muito longe. Para algum lugar em que nada mais existisse — um lugar onde pudéssemos dormir como os membros sadios de nossas espécies.

domingo, 5 de setembro de 2010

Eu não sei como consegui não matar você

Você. Cíntia Cristina de Oliveira Lira. Eu não sei como consigo não te matar.
Se todo mundo gosta tanto de mim, por que eu não sinto esse carinho? Por que é tão difícil o simples fato de existir?
Eu quero deixar de existir. Eu quero morrer. De forma breve... Mas dolorida. Eu quero dor.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Doçura

.

Eu apanho da vida. Mas eu gosto de apanhar.
Um portal se abriu
Canalizando a raiva em singela doçura.
Cada mordida, tapa,
arranhão, cada chicotada...
Tudo tão doce!
Até o gozo se tornou mais suave.

Amar é esplendido.

O sarcasmo diante da vida é crucial.