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segunda-feira, 28 de outubro de 2019

ruan, bukowski e cigarros

   Eu esbarrei num poema do Bukowski. Esbarrei no meu maço de cigarros. Esbarrei em você. É sempre assim, lembra?
   "Cíntia, chega de falar de Ruan, Bukowski e Cigarros! Porra!"
   Esbarrei numa garrafa de cachaça, ouvindo a playlist que fiz com músicas que contam nossa história, ou ao menos, a minha versão da nossa história.
   O poema do velho falava sobre partidas e chegadas e partidas. 
   Confesso que olho seu perfil de vez em quando, mas não há nada o que ver, ele está trancado. Você é tão misterioso, ui.
   Eu havia deletado todas suas fotos e todas nossas conversas do meu celular, apaguei seu e-mail dos meus contatos, mesmo sabendo-o de cor, e pensei que estava livre, sem acesso a você, assim eu poderia fingir que nós nunca acontecemos, que eu nunca te amei; aí meu celular quebrou, e eu voltei a utilizar um aparelho antigo. Abrindo a galeria do mesmo: fotos suas. Prints nossos, de momentos mais doces. Dei de cara com o poema que você me escreveu, que me deixou de pernas bambas. Eu tive que me apoiar numa mesa quando li suas palavras naquele dia, Ruan. Depois fiquei com a calcinha molhada no metrô, roçando minhas coxas disfarçadamente, mordiscando meus lábios para tentar represar todas aquelas sensações; o misto de tesão, preocupação e ternura.
   Foi como uma porrada no estômago ver fotos da sua barriga, das suas pintas, dos seus pés calçando coturnos, dos seus pêlos, mas principalmente, do seu pau. Esse pau aí, sobre o qual você se sentia inseguro, e eu endeusei tanto, que você ficou confiante o suficiente para mostrar para outras mulheres, para usar em outras mulheres. Eu até poderia viver com isso, mas o fato de você ter parado de usá-lo para o meu prazer realmente foi demais para mim.
   Te odeio! Todo dia acordo e tento me convencer de que te odeio. Mas não, eu ainda amo seu olhar de tormenta e o tom da sua pele. Ainda amo suas mãos e seus dedos, e seus dedos segurando cigarros e sua boca, e sua boca soltando fumaça de forma ensaiada, te fazendo parecer um bad boy de um filme adolescente qualquer, e não o big shot da sua série de motociclistas favorita.
   Eu te disse adeus, você me disse adeus, eu voltei. Voltei duas vezes, três... voltei tantas vezes, que perdi as contas! Acho que você também perdeu as contas de quantas vezes disse que nunca mais me aceitaria de volta, e aceitou. Perdemos as contas de quantas vezes agimos feito personagens de um romance decadente, apegados a um amor canalha, ou mero desejo destrutivo. Mas da última vez que te disse adeus, você não retribuiu. Você pensou que eu voltaria. Bem, Ruan, eu não voltei. Meu adeus foi sincero, Ruan. E você não retribuiu ao meu adeus, Ruan! Pro inferno, você e seu maldito pau! Esse pau, que para dificultar mais as coisas, tem veias saltadas e uma pinta, bem do jeito que eu gosto.

domingo, 7 de abril de 2019

o testamento do Peixe


fotógrafa: Ana Di Castro

O que será que incomoda mais nessa foto?

Gorda sorrindo? 
Gorda brilhando? 
Gorda sendo sexy? 
Gorda com vida sexual? 
Gorda com gorda? 
GORDAS! 

"É pornografia! Temos que preservar nossas crianças!" 

Em seus quartos, cubículos e banheiros eles gritam, arrancando os próprios cabelos:

Gorda e puta! Mas puta virgem, porque ninguém te quer. Vulgar, histriônica! Se você se ama, por que se corta? Se você se ama, por que precisa da aprovação dos outros? Hein? Responde, aberração! É feliz nada! Faz isso na internet para compensar o que falta na vida! Gorda doente! Doente porque eu sou doente! Infeliz porque eu sou infeliz! Se eu, que fiz bariátrica e emagreci não me aceito, até parece que ela vai se aceitar! Tudo mentira! Se aceita porque não tem coragem de mudar! Preguiçosa! Faz o que da vida?! Eu malho 5 vezes por semana para ter esse corpo! Não como pizza, não tomo refrigerante, você não vai fazer isso na minha frente não! Feminista esquerdista filha da puta! 

O Peixe me olha...

O que incomoda mais é o glitter, que depois vai parar no oceano. A consciência até pesa.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

espetada

   Acho que engoli um palito de dente enquanto comia uma batata recheada. A princípio não parece nada, porém pesquisei no Google, e veio logo o anúncio da catástrofe. Eu sinto o palito enfiado no meu coração, espetando-o, rasgando-o, do epicárdio ao endocárdio. Meu coração sangrento, sangra, sangra... 
   Talvez eu morra.
   Sozinha no escuro, o coração espetado, eu fico em silêncio, aguardando. Silêncio aqui dentro, quero dizer. Lá fora os fogos já estouram, ao longe. Não olho pela janela, só ouço, bem parada, a respiração bastante controlada...
   Falta pouco. Cinco minutos e isso acaba, só para depois começar de novo.
    Não ouço os risos, mas certamente eles também ecoam lá, bem longe do meu coração que descompassa com a ferida e com a angústia.
   Eu os imagino, os vejo — no âmago da minha loucura. Estão lado a lado, as cabeças erguidas, observando os fogos... e quando o relógio anuncia, por fim, a meia-noite, ela, com um sorriso extremamente largo, se joga nos braços dele. Ele se diz solitário, mas não é, não de verdade. Com ela nos braços, ele nunca está sozinho. Beijam-se. Ela sente o calor do abraço dele lhe envolver por completo. Eu sinto o calor da ansiedade subindo pelo meu corpo, se concentrando nas minhas duas bochechas, tão vermelhas quanto o meu coração sangrando, sangrando. 
   Desejam-se feliz ano novo, sorriem com os lábios e os olhos.
   O meu coração está doendo, talvez eu morra. O palito espeta minha alma. Sozinha, talvez eu morra. 

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

a doença

Tem dias que o impulso é
Destruir

Lugares
Coisas
Pessoas

As propriedades
Os Proprietários
O que não tem dono

Destruir o Mundo
Da mesma forma que ele me destruiu

Destruir
-
Me

Eu posso jogar as lâminas fora
Cortar minhas unhas bem curtas
Trocar o álcool por água
Não comprar cigarros
Eu posso me achar bonita
Colocar as melhores roupas

Eu posso sorrir
E gargalhar

Posso inventar novos métodos

E as pessoas ainda vão dizer
Seus olhos são vazios

A Destruição está dentro de mim

Nas relações que eu vivo
No meu jeito errado de amar
Na esperança de ser correspondida
Na bagunça do meu quarto

Lágrimas, olhos vermelhos,
A música tocando

A Doença
Não me deixa
Viver

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

você... ou eu

Comprei um maço de cigarro
Fazia sentido...

tirei o lacre

Talvez um dia alguém sinta conforto em mim
no cheiro 
das minhas roupas
dos meus cabelos

Talvez algum dia eu encontre conforto.

Ontem pouco me bastou
Enquanto garoava na minha cabeça
E as gotas, junto à fumaça, embaçavam meus óculos.

Hoje, nada.

Mas
Eu vou te encontrar
Na ponta de cada cigarro que eu fumar
Vou sentir seu beijo
Em cada tragada que eu der
Vou ver seu rosto
Em cada massa abstrata de fumaça que eu soltar

Minha voz ficará menos suave
E em cada verso que eu declamar
Eu vou lembrar da sua rouquidão...

"If I never see you again..."

Quando eu me tocar
Os meus dedos terão o cheiro dos seus dedos
Vai se misturar ao aroma do meu sexo

Levarei meus-seus dedos aos lábios
Vou fechar meus olhos...
Fingir que são suas, as digitais adocicadamente ásperas na minha língua

Sua existência vai resistir

Nos meus pulmões

Eu vou ficar sem ar
Toda vez que o seu nome vier à tona

E quando eu estiver quase morta
Será você o meu câncer
De alma

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

fumaça

   As coisas invariavelmente começam como se nada estivesse acontecendo. É simples assim. Você não é ninguém pra mim, e eu não sou ninguém para você. Bate até um desconforto, de tanta mensagem chegando, e do impulso de respondê-las. Te vejo como um todo — um amontoado de características. Um homem como qualquer outro. 
    Mas aos poucos... O papo passa do morno para o muito quente — a sensação é, ao mesmo tempo, sufocante e deliciosa, como são as melhores coisas. Palavras bem aplicadas, surge a identificação. Você entra na minha cabeça. Forjamos a conexão... 
   ... Talvez seja por hábito, que nós fazemos essas coisas. Continuamos, porque a opção é o vazio. O nada perde espaço, se torna alguma coisa... Dez minutos já não são o suficiente. Eu quero mais, quero todos os seus minutos e todos os seus pensamentos. 
   Vou isolando suas características, passa a me agradar o que sinto e o que vejo. Pintas, olhos, dedos. Desejo. O jeito que os seus lábios soltam a fumaça... 
   Sozinha na minha cama, fantasio, ao som de Portishead, sobre o seu cheiro. Sobre sua voz, a textura da sua pele... a temperatura do seu abraço. Fico imaginando o tom do seu gemido. Tudo em você é meio encenado...
   Quando noto, você está sob a minha pele. Meu ser anseia por você. A mais inocente lembrança da sua existência eriça todos os meus pelos. O meu coração descompassa, o meu cérebro fica dormente. O seu nome encharca a minha calcinha...
   É tudo muito breve, as coisas são intensas. Mas eu descobri, ao longo da vida, que intensidade é algo que não dura...
    É brutal, a porrada que atinge o meu estômago. O sentimento é um raio atravessando o meu corpo repetidamente. Meu coração ganha mais um remendo. O buraco no qual venho caindo fica mais profundo.
   E de repente, são cinco horas da manhã. Eu fumo meu primeiro cigarro em muitos meses, para me sentir mais perto de você. Olho suas fotos, revivendo as palavras, e penso no absurdo das coisas. Há pouco tempo você nem existia. 
   O fluido transparente escorre pelas minhas coxas, enquanto você dorme com ela.
   Solto a fumaça.



   

domingo, 29 de abril de 2018

o peixe

   Hoje somos eu e esse Peixe, que dança desajeitadamente em seu aquário, cortando a água com sua calda preta e majestosa feito a seda mais cara desse mundo. Ele tem olhos maiores do que os dos peixes de outras espécies, e parece estar sempre nos olhando bem no fundo da alma, mas na verdade é quase cego. 
   Eu e esse Peixe — em ambiente propício poderíamos ser grandes, mas aqui teremos sorte se não sufocarmos com a toxicidade da nossa própria merda.
   Nunca pensei em ter um peixe. Não por não gostar dos mesmos, mas por ter por eles, ao contrário, uma estima acima da média. O suficiente para não querer fazê-los refém. Todos se preocupam com cães e gatos, e todos conseguem se indignar com o destino dos pássaros domesticados... Mas quem entende os peixes? Quem assimila que, assim como qualquer bicho, eles são capazes de sentir dor, amor, gratidão, solidão...? Até alguns "vegetarianos" desconsideram-nos enquanto seres vivos e os comem. Peixes ornamentais! O ultraje! Humanos, como sempre, rebaixando seres a coisas!
    Eu não queria. Não pensava. Mas esse Peixe, ele veio pra mim. Compartilhamos todas as características mais básicas do ser.
   Ele é uma coisinha comilona, comprado como brinquedo para uma criança que logo enjoou do presente, e passava, então, todo seu tempo sozinho, nadando a esmo em sua pequena prisão.
    Acho que sequestrei o Peixe, e não planejo devolvê-lo ou pedir resgate. Agora ficamos nós dois e a borboleta de plástico presa na parede, iluminados por luzes coloridas de LED, ao som de música ultrapassada. Assim vamos tapando os buracos da nossa solidão.
   Às vezes ele fica parado por tempo demais, e num sobressalto eu bato com meu dedo indicador em sua parede de vidro, até que ele recomeça seu nado, olhando, olhando, sem ver nada.
   Esse Peixe sou eu e eu sou esse Peixe, porque também sei o que é ser adquirida como brinquedo e descartada quando o encanto passa. Eu também sei o que é viver em uma prisão de luxo; ser incapaz de fugir, porque a domesticação é mais forte do que a vontade de viver.
   Será que ele sabe que eu o estou usando mais do que o ajudando?
   Algo me diz que os seres vivos sempre sabem. Até os peixes.



sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

inteira

   Quando eu me dou para as pessoas, elas nunca me querem inteira. Me querem fragmentada. Eu sou um ser humano completo, com desejos e sentimentos que por vezes  parecem não caminhar juntos, mas que são os mais sinceros que alguém pode oferecer...
   E isso é inaceitável para elas. Querem apenas o que fica entre o bom e o sofrível, quando, ao contrário, eu ofereço excelência. O mundo que existe dentro de mim — esse solo nunca explorado. Eu ofereço mais do que o suficiente. Ofereço uma viagem completa e louca.
   Mas não. Querem que eu escolha uma só fantasia e nunca me dispa dela. Ser a irmã ou ser a puta. Ser a amiga ou ser a amante. Ser fofa ou ser safada. Eu quero ser tudo, quero ser plena. Nós não precisamos seguir uma linha reta, e por que você está tão assustado?
   Eu acordei e estava contente. Mas o contentamento durou pouco e foi engolido pelo buraco negro que habita minha alma. As lágrimas rolaram sobre o travesseiro ao qual eu durmo agarrada, fingindo que é o seu corpo entre meus braços, seu peito sob a minha cabeça...
   O desejo era latente no espaço mais íntimo do meu ser; o desejo de te adorar e ser adorada na mesma proporção; tocar todos os espaços que existem em você e ser tocada como nunca antes... E que ilusão é essa! Desejo que nunca alcanço...
   Brinquei com a possibilidade de te ligar, eu diria: "te quero! e você? algum pedaço de você me quer?"
   Mas eu quero que você me queira por inteiro também...
   Se não te ligo, se não te pergunto e permaneço esperando, é porque sei o que ouviria.
   Então eu me atiraria em direção a um penhasco ou de outros braços: dá na mesma.



quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

e os namoradinhos?

   Devo admitir que diferente da maioria de vocês, eu não tenho parentaiada para me perguntar "e os namoradinhos?" no natal e no ano novo, porque não comemoro tais datas com parentes.
   Mas logo na curva, em março, tem o aniversário da minha avó, o que sempre gera um churrasco com direito a parentes de até quinto grau que eu nem lembro que tenho no resto do ano (e que muitas vezes só sei que é parente porque alguém me conta durante o churrasco). 
   Sendo minha vó, minha mãe de consideração, eu não tenho escapatória. Fico no meio do evento fervilhando de Liras e Oliveiras e Marcianos e Nascimentos, a maioria com caras, vozes e hábitos muito semelhantes, e vizinhos que se convidam ou vão mesmo entrando sem aviso nenhum.
   Muitos deles, conhecendo meu gênio ruim, evitam, sabiamente, qualquer tipo de aproximação e se limitam a um cumprimento de longe com um aceno de cabeça, ou fingem que não me viram, favor que retribuo.
   Mas tem sempre alguém para forçar amizade. Geralmente pessoas que eu nem sei o nome, mas eles sabem o meu: "Cíntia, como você está bonita. E os namoradinhos?".
   Porque a minha vó tem punho de ferro, procuro não ser rude além do limite e muitas vezes apenas sorrio e espero a pessoa prosseguir com seus assuntos vazios até que eu possa arrumar uma desculpa para me desvencilhar de sua presença.
    Mas essa noite eu tive um flash genial. 
   Eu poderia contratar dois caras e deixá-los conversando a um canto. O primeiro que me perguntasse "e os namoradinhos?", e eu abriria o meu sorriso mais forçado e diria "ah, está ali. Vou te apresentar!" e chamaria, em direção aos dois: "Amor..." e eles viriam até nós. Eu me colocaria entre eles e faria as apresentações: "fulano, sicrano e beltrano" etc. E o parente perguntaria: "ah, e qual dos dois é o seu namorado?", ao que responderia: "os dois!", e daríamos um beijo triplo cheio de língua e saliva e mãos bobas bem no meio do quintal. 
   Haveria silêncio, pratos caindo, crianças chorando, o olhar da minha vó e fim.


    Contrata-se namorado de aluguel
    Pagamento em beijos, cervejas e lágrimas da família tradicional brasileira (plus: todos os meus parentes são evangélicos)

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Chokito

   O meu avô, seu Ciço, diz em alto e bom tom, para quem quiser ouvir, que eu sou sua neta preferida. 
   Essa predileção não é baseada em convivência; não é porque ele me conhece e me acha uma garota incrível e inteligente ou bonita. Não é porque eu sou bem-sucedida e lhe dou mil orgulhos. Não é por eu ter sido publicada em dois livros que ele não compareceu ao lançamento, ou por eu ter sido exposta com minhas pinturas, coisa que ele nunca soube; não é porque eu fui engajada politicamente na escola, quando o único argumento político dele é criticar o PT. Não é porque fui aceita em duas universidades, às quais não levei ao fim. 
   A preferência ocorre pelo simples fato de que eu fui sua primeira neta.
   E de fato, eu fui a primeira filha, a primeira sobrinha, a primeira neta... Eu sou a primogênita, em ambas as famílias Santos (embora não carregue o sobrenome) e Lira (o qual ostento com orgulho), e foda-se se você acha que o verdadeiro primogênito tem que ser um homem. Eu estava nesse mundo seis meses antes do Rodrigo chegar, e um ano antes do Junior chegar e três anos antes do Felipe surgir. Foda-se o patriarcado!
   O meu avô não me conhece. Não diria que somos exatamente distantes, mas também não somos próximos. A última vez que nos vimos tem mais de dois anos, eu ainda tinha cabelo roxo — conto as datas de acordo com a cor do meu cabelo quando um determinado evento ocorreu, o que me deixa um pouco perdida, porque há quase dois anos eu parei de mudar a cor deles quinzenalmente.
   Nos falamos por telefone depois disso, mas se não sou eu ligar, ele não liga. E quando eu ligo, ressentida por este fato, ele logo diz alguma coisa que ativa um gatilho emocional, e eu dou alguma desculpa, me despeço e desligo.
   Ele diz que me ama muito. Não apenas sou sua neta preferida, ele me ama —  afirma. E eu digo "também te amo, vô", e digo com facilidade, não com o embaraço que declaro meu amor aos meus irmãos. Porque no caso dele, não é verdade, embora também não seja mentira.
   Eu tenho muitas lembranças sombrias e mágoas profundas em relação a ele. Quando ele diz que me ama, eu não penso muito no assunto, porque se eu parar para pensar, eu não acredito. 
   Mas às vezes eu fico pensando em alguns momentos, talvez meia dúzia deles, em que eu me senti amada por ele, e nos quais o amei de verdade, sem meios termos.
   Como quando eu cheguei da Igreja uma vez, em 1998, e ele estava assistindo Chiquititas e me deixou assistir com ele, enfrentando a restrição da minha mãe... Isso não era rotineiro. O meu vô gosta de ter as coisas dele só para ele. A TV, o rádio, a coleção de vinil, o gosto musical, o programa, o filme, o momento, o espaço, o chão que ele sentava para assistir Chiquititas. Mas naquele dia ele dividiu o chão comigo, e nós assistimos Chiquititas juntos.
   Ou outra vez, que eu nem tenho muita certeza de que aconteceu de verdade, porque faz tanto tempo e foi tão incomum... Ele estava sentado numa cadeira, e eu estava deitada nas pernas dele, de bruços, as minhas pernas penduradas no ar, e ele acariciava minhas costas e meus cabelos com gentileza, com mãos de vô, em silêncio. Um momento tão atípico, que eu fiquei torcendo para que durasse uma eternidade ou duas. Mas talvez eu tenha inventado este momento.
   E teve aquela vez, eu tinha 16 para 17 anos, era o meio da tarde e eu ainda estava dormindo. Me acordaram dizendo: "o seu vô está aqui", e, atordoada, eu não acreditei no que ouvi e perguntei: "quem?", "seu vô", "meu vô...? o Cemar?". Como se eu tivesse outro avô! Mas aquela foi a primeira e única vez que ele me visitou, então não estranhem muito minha reação sonolenta. 
   Eu levantei da cama, e tudo que lembro daquela tarde é que eu não escovei os dentes nem alinhei os cabelos antes de ir encontrá-lo na sala; que o admirei como quem vê uma miragem; e que quando lhe contei que estava aprendendo a tocar violão (e por aprendendo, leia-se, eu estava dedilhando o violão a esmo), ele, que toca muito decentemente, pediu meu violão emprestado e tocou alguma música dos Beatles. 
   Alguns dias mais tarde, quando eu o visitei, ele me mostrou, mas não me deu, uma revistinha com cifras de músicas dos Beatles. 
   E eu comecei a ouvir os Beatles para ter algo em comum com ele, na esperança de que um dia pudéssemos ouvir The Beatles juntos. Eu comecei a ouvir Carpenters porque pensei que poderíamos ouvir juntos, e comecei a ouvir Bob Dylan e Rolling Stones porque pensei que poderíamos ouvir juntos! Até decorei músicas e títulos, pensando em impressioná-lo caso ele testasse meus conhecimentos. Ele nunca o fez.
   Uma das memórias mais marcantes que tenho do meu vô é dele sentado no chão de sua sala ouvindo "I Should Have Known Better", do Jim Diamond, no último volume. A casa chegava a tremer. Ele estava de pernas cruzadas e tinha os braços ao redor delas; os olhos fechados e expressão cheia de tormenta, balançando a cabeça e o corpo para a frente e para trás, ignorando completamente o resto do mundo. Ele parecia possuído. Essa visão ficou na minha cabeça por muitos anos antes de eu criar coragem e lhe perguntar o nome da música (e não sabendo falar inglês à época, eu só sabia cantar a parte do "I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I")...
   Nós nunca ouvimos música juntos em um de seus estéreos potentes (toda semana ele arrumava um novo, roleiro que é), no chão de sua sala. Eu propus algumas vezes, e ele concordava, mas quando eu chegava à sua casa ele já havia esquecido tais planos, e passávamos a tarde, eu, ele e minha vó, sentados à mesa falando de coisas e pessoas que não me interessavam; vez por outra um dos dois me pedia um bisneto e eu respondia com silêncio indignado ou sorriso amarelo, e ali eu não sentia amor fluindo em nenhuma direção.
vó, Cíntia, seu Ciço
   Mas com tudo isso, quando o meu avô diz que me ama, e a minha mãe me garante que eu sou a paixão da vida do seu Ciço, e se eu estou propensa a acreditar na hora, o que me vem em mente mesmo é ele chegando da rua com um chokito para mim. Enterneço pelo fato de que ele sabia que chokito era o meu chocolate preferido, e o fato de que eu, mesmo muito nova, sabia que chokito não era barato; Por ele ter passado por algum lugar — uma padaria ou um bar —, ter visto um chokito e ter pensado em mim, sua neta preferida. O fato de ele ter vários netos e trazer chokito só pra mim. Ele fazia isso às vezes.
   Ontem eu comprei um monte de chocolate, porque estava triste. Comprei dois prestígios e uma caixa de um genérico de bis, que é bem gostosinho. Comprei um chokito. Acordei hoje e comi todos, menos o chokito, e agora o meu estômago está doendo. Eu olho para o chokito e sinto um nó nas tripas. Um nó na garganta.
   Eu acho que vou guardar esse chokito na minha lata de lembranças, com todas as fotos da minha infância, e comê-lo daqui uns dez anos, quando o seu Ciço tiver morrido, e só me restar a culpa por todas as vezes que não fui visitá-lo, mesmo querendo, porque ele não conseguia atingir minhas expectativas. Só porque ele nunca quis ouvir Beatles comigo, sentado no chão da sala. Ele, que me ama apesar de eu ser a primogênita e não o primogênito. Apesar de eu não ser bem-sucedida, apesar de não lhe dar mil orgulhos. Apesar de eu não ser incrível, nem inteligente, nem bonita como suas outras netas. Apesar de não carregar seu sobrenome. Apesar de não ter me formado, apesar de nunca ter aprendido a tocar violão, apesar de não ter lhe dado um bisneto, apesar de nunca ter tido um namorado para lhe apresentar, apesar de ter os braços cheios de cicatrizes que ele não entende, apesar de não ser normal. Ele, que me ama, apesar de não me conhecer.
   Vai sobrar apenas a culpa e o chokito.
   Eu vou esperar, e vou cometer suicídio com uma barra de chokito, nestlé! Essa barra aqui, que carrega o seu nome!

sábado, 7 de outubro de 2017

lucky strike

   Eu tenho asma, sabe...
   Quando eu era criança, enrolava um pedaço de folha de caderno, acendia e tragava, imitando as pessoas que eu via fumando nos filmes — e ao meu redor. Muita gente fumava nos anos 90, não é como hoje em dia que todo mundo se preocupa tanto.
  Quando eu não acendia, porque o papel queimava muito rápido e a fumaça era literalmente intragável, eu ficava com o cigarro de mentira entre os dedos. Sentava, levava à boca, imaginava minhas tragadas. Fingia que estava em um restaurante chique, com uma taça de vinho francês e um prato de macarronada à minha frente.
   Alguns anos antes, quando eu ainda frequentava a igreja, participei de uma peça de teatro com o Francis, na qual éramos adolescentes rebeldes e sem futuro que fumavam cigarros e falavam palavrões, e outros jovens nos salvavam da perdição com o evangelho. Mas ali, naquela época, fumando cigarros de mentirinha, eu era livre da igreja, era livre da condenação.
   Hoje é um desses dias em que eu me perguntei constantemente o que exatamente eu estou fazendo no mundo. Eu fico vivendo um dia de cada vez, esperando que o próximo seja melhor. Fico imaginando cenários, imaginando pessoas, que fora da minha imaginação são completamente ordinárias, mas dentro, como elas são incríveis...
   Lavei meus cabelos. Estava chovendo e eu pensava que a energia elétrica iria cair, como é de costume no meu bairro, e eu não teria como secá-los. Afora isso, meus pensamentos estavam povoados com dinheiro; com a quantia que preciso para comprar meus cosméticos e pagar meus óculos, colocar crédito no bilhete, comer alguma besteira para não passar vontade, tomar uma cerveja de vez em quando e agora eu tenho que pagar a geladeira também, e pensava como nunca tem dinheiro suficiente para que eu faça o curso que quero fazer — para dar continuidade à minha vida e ganhar dinheiro de verdade para ter planos maiores do que comprar meus cosméticos e pagar meus óculos e contar os centavos para inteirar a condução e pagar a geladeira que ninguém me consultou ao comprar, e que ficam tirando da posição que eu coloquei — para que a porta não bata no móvel que fica em frente a ela. 
   Ir embora da casa da minha avó. Levar todos os meus livros, meus DVDS, meus pôsteres (especialmente o do Adrien Brody), meu computador, meus cosméticos, e deixar o resto. Embora a minha atual cama seja muito boa. Ela sustenta o meu peso sem reclamar, e também não reclama quando há companhia somada ao meu peso. Talvez eu levasse a cama. Eu poderia comprar um guarda-roupas sem gavetas. Eu odeio gavetas. 
   Pois eu estava secando os cabelos, porque a chuva parou e a energia não caiu, ainda bem, e estava  pensando que preciso de aproximadamente três potes de creme de pentear por mês e 4 desodorantes, e duas caixas de lenço de papel para limpar meus óculos, e que tenho creme hidratante o suficiente para alguns meses, e que só vou ter dinheiro no fim do mês, e nem sei quanto. Pensava em tudo isso, e numa certa pessoa, quando, para secar uma área específica do cabelo, eu virei minha cabeça, olhei para a minha estante magnificamente abarrotada e vi o maço de lucky strike, que eu guardei embaixo de um livro do Nick Hornby, como souvenir de uns meses atrás, quando eu fumei por algum tempo feito uma chaminé, mesmo tendo asma. Cigarro me deixa tonta, mas a sensação não é das piores. 
   Eu sempre odiei o cheiro de cigarro aceso, o cheiro de cigarro quando as pessoas estão fumando, mas algo no cheiro de cigarro impregnado nas roupas das pessoas que fumam há muito tempo me causa conforto. Eu gosto de abraçar fumantes. É como... encontrar aquilo que eu posso chamar de lar. Não importa quem seja. Eu posso fechar meus olhos abraçando um fumante e vou me sentir em casa. Se a pessoa estiver usando uma jaqueta jeans, então...
   Desliguei o secador. Eu tentei diversas marcas de cigarro quando comecei a fumar, em março desse ano, quando eu não sabia o que fazer comigo mesma. Fumei primeiro o camel, que comprei solto num bar que só tinha homem e eles ficavam olhando com estranhamento enquanto eu bebia minha cerveja, como se eu estivesse invadindo um espaço sagrado. 
   Em 2009 eu havia tentado fumar derby, que roubei do meu tio e pensei tudo bem eu roubar os cigarros dele, ele roubou minha inocência, e não gostei nada, nada. Minha língua ficou pastosa, eu odiei o gosto, o cheiro e a forma como entrava nos meus pulmões. Acabei apagando-o no meu pulso, e que dor foi aquela!... 
   Então, após tal experiência, comprei apenas 2 cigarros, 50 centavos cada, e pensei que nem iria fumá-los. Contei para o Danillo e ele me disse que eu sou uma otária, com o que eu fui obrigada a concordar. Mas dessa vez foi diferente. Me senti diferente. Gostei de fumar. Me senti adulta. Mesmo assim, queimei meus braços com a brasa, porque eu sou assim. 
   Com a nova reação, comprei um maço de White. É um cigarro muito gostosinho de fumar. Leve, macio, entra com sutileza. Só depois de fumar quase o maço inteiro eu notei que ele estava vencido, e perguntei ao Danillo o que aconteceria se uma pessoa fumasse cigarro vencido, ao que ele me respondeu: "o que acontece com quem toma veneno de rato vencido?"... e eu ri, mas pensando bem, acho que depende da sorte de quem toma o veneno. 
   Acabado este, e não conseguindo achá-lo mais (a bem da verdade, eu só fiquei com preguiça de ir onde havia comprado antes, e fui em outro lugar mais perto), comprei o Minister, que não é um bom cigarro. Ele é forte e fedorento e as tragadas são estranhas. Então eu decidi que não iria mais fumar. Mas numa noite de euforia, agitadíssima e sem saber o que fazer comigo mesma, fumei 5 cigarros, acendendo um no final do outro, até que passei mal, e vale dizer que eu não tenho mais bombinha de salbutamol, então foi um momento delicado.
   Quando o Minister acabou, eu comprei o Winston blue, que também é muito bom. Eu estava sempre jurando que não precisava de cigarro, mas quando um maço acabava e eu ficava sem, batia uma certa angústia... 
   No dia em que eu fui internada, em abril, comprei quatro camel, e senti o quanto são horríveis enquanto os fumava, um atrás do outro, com um coquetel de maracujá enojante para acompanhar, sentada nos degraus do cemitério, me aquecendo para dar início ao show enquanto lia O Lobo da Estepe no escuro e tinha minha cabeça explodida das mais variadas maneiras.
   E no hospital, internada, os pacientes podiam fumar — em algumas horas do dia. Depois do almoço e depois do jantar, mas alguns enfermeiros mais legais deixavam a qualquer hora do dia, especialmente quando eles próprios queriam fumar. Era o momento de socialização, quando todos os loucos se reuniam numa área de fumante toda pichada com palavras incompreensíveis e profecias e versículos e desenhos de pintos e bancos quebrados e cinza de cigarro no ar. Quem não tinha cigarro aparecia para implorar um trago, quem não fumava aparecia só pela conversa, que fatalmente acabava com alguém surtando e saindo na porrada com outro alguém, e umas vezes eu tentava apartar. Noutras eu só assistia, tragando meu cigarro.
   Dentro do hospital, ao menos na ala psiquiátrica, o cigarro era a base de troca. Quem não fumava, mas tinha cigarros, os dava em troca de comida e outras coisas. Eu sempre conseguia cigarros, mesmo quando não tinha vontade de fumar, pois fiz amizade com muitas pessoas. Entre os loucos eu estava no meu lugar. Estava confortável. E devo dizer, que talvez pela medicação na cabeça, três caras me queriam, e para provar a devoção, me ofereciam cigarros, beijos roubados e chocolates contrabandeados.
   Lá nós fumávamos, em geral, eight, que é o cigarro mais nojento e pesado que já fumei na vida. Mas era barato, e os enfermeiros mais legais até levavam um maço para distribuir aos pacientes. Quando recebi alta, eu, que cheguei sem nada além do meu exemplar de O Lobo da Estepe e um desodorante, havia ganhado tantos cigarros, que tinha um maço cheio e outro pela metade; do eight ao winston blue. Deixei para um louco consciente, sob o olhar reprovador da minha avó.
   Fora do hospital, eu disse para mim mesma que estava farta de cigarros, mas comprei um maço de lucky strike, porque é a marca que sempre associei ao requinte dos fumantes abastados. E afinal, é a marca que o Thiago Mattos cita no meu poema preferido de sua autoria (não, da autoria do Paco Bernardo). Mas, devo dizer, deixou a desejar. É um cigarro muito forte para o meu gosto asmático, e não conseguia sequer fumar um inteiro, porque ficava de saco cheio na metade.
   Pensei em dar para alguém, mas quis guardar porque é o lucky strike e o Thiago Mattos o citou no meu poema preferido. 
  Até que hoje eu virei a cabeça enquanto secava os cabelos, e sentindo um vazio incontrolável e não sabendo o que fazer comigo mesma, logo quando eu estava tão empolgada, e nas tantas preocupações financeiras, é claro, eu o tirei de sob o livro do Nick Hornby, peguei um e decidi fumar lá no quintal, porque não quero impregnar meu quarto com cheiro de cigarro novamente.
   Sentei num dos bancos do quintal, olhando para o abacateiro picotado, com ódio e tristeza ao mesmo tempo, e para a ausência de estrelas e ausência da Lua. Hoje eu fui abandonada por todos. E pensei que é justamente nos dias em que preciso de conforto que as pessoas e as coisas me abandonam. Pensei na ala psiquiátrica enquanto apagava o cigarro, que continua muito forte para o meu gosto, mas que fumei até o fim, com certo prazer pelo estrago.
   Subi para o meu quarto. Sentei à minha mesa, respirando alto, pausada e intensamente, sentindo meu rosto ficar vermelho e ardente. Eu fico assim quando me bate uma raiva desmedida. A raiva era das pessoas, mas acima de tudo, de mim mesma. Eu não consigo me libertar! Eu sempre serei o lixo descartado das pessoas! Encarei as cartelas de remédios à minha frente e pensei em tomar todos, especialmente o diazepam. Me imaginei o fazendo. E aquela velha voz interior disse, em alto e bom tom: "a resposta para este pensamento está no seu último post, sua imbecil".
   Me contive. Eu não sei o que fazer comigo mesma. Por dentro eu quero gritar e socar tudo e todos até que as minhas juntas sangrem e minha visão fique embaçada pelo suor. Eu quero destruir o meu quarto e depois a minha casa e depois o abacateiro, porque agora ele está arruinado, e quero destruir o mundo e todos que o habitam, porque estão todos mais arruinados ainda! Todas as coisas são inúteis! Eu queria destruir todo e qualquer traço de sentimento que existe dentro de mim!
   Mas por fora, eu fiquei paralisada, o olhar fixo no nada, só imaginando como seria destruir todos e depois destruir a mim mesma.
   Peguei mais um cigarro, fui para o quintal. Havia passado um tempo, e agora a Lua se mostrava, embora fosse ofuscada por umas nuvens espessas. Um avião passava, lá no alto. Eu odeio aviões, barulho de aviões e sua capacidade de cair em cima das coisas. Mas não liguei. Eu fumei, tragando e olhando para o cigarro queimando, pensando em apagá-lo na minha própria cara. Uma formiga escalou minha perna e eu a joguei para longe. Eu odeio formigas.
  Hoje eu odeio todas as coisas e todas as coisas me odeiam. Pensei no conforto de abraçar fumantes, enquanto fumava meu cigarro, e quando terminei, senti o cheiro, o mesmo cheiro que me causa conforto, nos meus cabelos. Eu queria que alguém sentisse conforto em me abraçar e sentir o cheiro dos meus cabelos. Joguei o cigarro, finalizado, no chão.

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Não era esse tipo de conversa que o poetinha tinha, deitado nu com seu amigo, mas acho que ele aprovaria

   Estávamos em duas pontas opostas do quarto; eu, escondida atrás de um livro, como de costume, e você eu não sei o que fazia para dizimar o seu nervosismo. Agora, atraídos feito ímãs, estamos no centro, nos encarando. Sou tomada por um impulso ou por seus braços, não sei, mas te beijo e você me beija, primeiro muito lentamente e sem saber o que fazer com as mãos, e depois com mais intensidade e meus braços ao redor de você. Assim começa a conversa. Sua barba por fazer arranhando suavemente o meu rosto, meu batom desmanchando na sua boca, seu lábio inferior entre os meus lábios canibais, duas línguas trabalhando sem premeditação, porque essas coisas acontecem de forma natural, mesmo se pensadas muitas vezes antes. Meus óculos ficam embaçados, marcados pela oleosidade natural da sua pele.
   Paramos para respirar. Tento limpar as manchas de batom de mim, em vão. A sua boca e o seu rosto também estão ligeiramente vermelhos, pelo batom, ou não, mas eu não ligo, apenas o admiro através das minhas lentes borradas. O livro, que eu ainda segurava durante o ato, tal qual uma criança com seu cobertor da sorte, jaz atrás de você.
   A primeira coisa que você despe do meu corpo são os meus óculos. Os coloca, cuidadosamente — pernas fechadas e lentes para cima —, sobre uma mesinha ou uma estante ou o que estiver disponível, não sei em que quarto tudo se dá, mas eles ficam em segurança.
   Eu vou ter que chegar muito, muito perto de você para conseguir te enxergar bem. É a miopia. Analiso seu rosto. Passo meus dedos pelos seus olhos cansados, beijo-os, esperando que sempre tenham esse ar inocente.
   Nossos corpos colados, suas mãos se precipitam sob a minha saia azul, subindo  por minhas pernas com firmeza, e parando por um momento na cinta-liga preta, mas por fim encontrando seu caminho para a calcinha de renda e o que ela esconde. Você fala comigo através dos seus dedos, me toca, mãos de trabalho escravo, me aperta, mostrando que os anos de peão valeram de alguma coisa. E eu reajo com um olhar tímido ou uma mão entre as suas pernas, provavelmente os dois, encontrando ali, no volume pulsante ou na ausência do mesmo, a resposta para a minha dúvida. A saia cai aos meus pés.
  Te guio para a cama, não pisamos no livro — por instinto. Você cai sentado, desajeitadamente, e com menos graça ainda me coloco no seu colo, mãos nos seus ombros, e te beijo, me esfregando em você, já sem pudor. Suas mãos encontram os cadarços das minhas botas novas, tiram-as, e às minhas meias. Você gosta de pés, eu tenho dois.
   Arranco sua camiseta, não sem antes sentir o seu cheiro, memorizando-o de forma abstrata, e você tira a minha blusa e meu sutiã e lambe os meus piercings; nossas peles roçando uma na outra iniciam seu próprio diálogo. 
   Deitamos na cama, conversando através de nossos seis sentidos: Visão, Olfato, Paladar, Audição, Tato e Poética.
   A cinta-liga vai pelos ares, a calcinha de renda também. Nos lemos em braile, cegos de tesão. Minhas cicatrizes provocam interesse, você se demora nelas, e com saliva eu rabisco mil poemas que sabem que são efêmeros e insistem em sê-lo, na sua pele quente. Desço os lábios cada vez mais, olhando nos seus olhos vez por outra. Seus dedos agora se enroscam nos meus cachos, que também caem sobre o seu corpo, provocando-lhe cócegas.
   Abro o botão da sua calça, desço o zíper. Te liberto de uma só vez dela e da sua cueca. Observo, ajoelhada, com uma de suas pernas entre as minhas. Demoro minha mão direita no seu peito, na sua barriga, desço com as unhas longas e pretas para as suas coxas, suas pernas, e delicadamente me curvo, meu rosto acima de você, respirando mais rápido do que o normal, te provocando um arrepio na espinha, e por fim mergulho, te ouvindo com o meu paladar. Sua respiração perde a calma, sons descontrolados escapam por entre os seus lábios; seu diafragma se contrai e expande, apoiado sobre as suas vísceras, enquanto você pousa uma mão no topo da minha cabeça. A sua porra tem gosto de amora. 
   Deito ao seu lado e compartilho contigo o gosto, beijando sua boca calculadamente. Seus dedos apertam meu rosto e sua boca devora a minha. Aprendemos novos idiomas no corpo um do outro, e mesmo exaustos não desistimos da preleção.
   Eu escalo o seu corpo e te insiro dentro de mim, camisinha não, só pele e mãos e olho no olho e suor e peças de dois corpos se encaixando num vai-e-vem ritmado, como um quebra-cabeças dinâmico que faz circular eletricidade, de mim para você, e o oposto também, culminando em uma explosão violenta que estoura fogos de artifício nos nossos cérebros.
   Agora a exaustão é paralisante. Anestesiados, dormimos; não agarrados, mas sinto seu braço tocar o meu. Há conforto.
   Acordo, não sei quantas horas ou quantos dias depois, deitada de bruços. Algumas partes de mim ainda estão vibrando. Você paira sobre mim, consigo sentir a concentração enquanto a ponta de uma caneta corre nas minhas costas. Você está nu. Suas ideias chegam em cascata, com clareza e energia. E eu sinto, dentro de mim, cada vírgula da sua genialidade.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Danillo, eu não odeio tudo!

   Estava andando de ônibus hoje, sentada à janela, quando passou ao meu lado um fusca lindo, conservadíssimo, vermelho. Com o coração cheio de amor, pensei: "eu gosto tanto de fuscas!".
   E lembrei do Danillo, que vive zombando do meu ódio por todas as coisas. Ah, é mais fácil dizer o que você não odeia! Ah, novidade você odiar alguma coisa! 
   Comecei a pensar nas coisas que eu gosto. Às vezes até eu me convenço que odeio tudo e todos, e de repente, vem o fusca.
 Eu gosto de fuscas. Gosto de fuscas vermelhos. Batom vermelho, roupa vermelha, esmalte vermelho, gosto de sangue. Gosto de mãos, gosto de veias, gosto de quando não faz nem frio e nem calor. Gosto do cheiro de dama-da-noite trazido por uma brisa suave quando eu estou deitada sob a minha janela. Eu gosto de deitar sob a minha janela. Gosto de ver o céu, mesmo quando faz sol. Mas gosto ainda mais do céu estrelado. Gosto muito da Lua. Gosto de dormir à tarde, gosto do canto dos pássaros à tarde, do som de crianças brincando, ao longe, à tarde. Gosto do pôr-do-sol. Nunca vi o pôr-do-sol do alto de uma montanha, mas sei que gosto de ver o pôr-do-sol do alto de uma montanha. Gosto de ver o pôr-do-sol acompanhada. Gosto da ideia de que agora mesmo, em outro ponto da linha do tempo, eu estou vendo o pôr-do-sol no alto de uma montanha, acompanhada. Gosto do silêncio da madrugada. Gosto de ficar em silêncio. Gosto de ficar em silêncio acompanhada, nesses momentos em que um invade o pensamento do outro. Gosto de beijo na testa, beijo nos olhos, beijo no rosto. Gosto de lamber dedos. Gosto de selinho. Gosto de beijo lento e de beijo apaixonado, desde que eu goste de quem está com a boca na minha. Gosto de deixar marca de batom. Gosto de pintas e cicatrizes. Gosto de marcas de nascença. Gosto que me leiam em braile. Gosto que me entendam profundamente, ou se esforcem muito para entender. Gosto daquele primeiro momento da paixão, em que tudo o que a pessoa faz é incrível, mesmo o que normalmente eu odiaria. Gosto que respondam minhas mensagens de prontidão, não por obrigação, mas porque estavam pensando em mim. Gosto de mensagens longas, mesmo que o assunto seja bobo. Gosto de conversar sobre coisas complexas que não fazem sentido nenhum. Gosto de gente que me faz rir até perder o fôlego, e que me deixa sorrindo tanto que a minha mandíbula começa a doer. Gosto quando riem até perder o fôlego comigo. Gosto quando a pessoa saca que eu tenho mais de um tipo de risada, e o que cada uma delas significa. Gosto de ser chamada de princesa. Gosto quando escrevem o meu nome com o seu devido acento. Gosto de gostar de uma pessoa a ponto de chamá-la de "meu bem". Gosto de conversar com plantas. Gosto de gente inteligente que não acredita que é inteligente (de verdade). Gosto de ouvir pessoas inteligentes falando sobre coisas inteligentes, mas sem pretensão alguma, só por uma necessidade genuína de compartilhar informações. Gosto dos mais variados tipos de inteligência. Gosto de quem escreve certinho, mas gosto de quem respeita quem não consegue escrever certinho. Gosto quando eu estou falando com alguém e a pessoa me olha como se eu fosse o centro de seu universo, mesmo achando isso intimidador. Gosto quando eu dou uma recomendação de algo que gosto e a pessoa aceita a recomendação. Gosto de cheiro de terra molhada, gosto de tomar banho de chuva, gosto de sentir grama molhada sob os meus pés. Gosto de gota de orvalho. Gosto de estátuas. Gosto de ir ao museu sozinha, em dias menos movimentados. Gosto de colecionar panfletos de exposições. Gosto de colar pôsteres e cartazes nas minhas paredes. Gosto de ouvir a voz de algumas pessoas assim que elas acordam. Gosto de ouvir a voz de algumas pessoas assim que eu acordo. Gosto quando as pessoas se deixam ficar vulneráveis comigo. Gosto de quando conseguem quebrar minhas barreiras. Gosto de cheiro de tinta, de cheiro de leite quente e do cheiro do vapor que sobe do ferro de passar roupa. Gosto de cheiro de roupa nova e tênis novo, e de pessoas que acabaram de chegar. Gosto do conforto de roupas velhas e tênis velhos e pessoas que estão há muito tempo. Gosto de ter uma caneta na bolsa para não ter que sair correndo, esbaforida, antes que a ideia desapareça completamente. Gosto de correr esbaforida, com a cabeça cheia de ideias. Gosto de não ter papel na bolsa, e escrever minhas ideias nos meus braços ou atrás de cupons fiscais. Gosto de flores e de galhos que caíram sozinhos. Gosto de frutos tirados do pé. Gosto que me deem plantas vivas. Gosto de chokito. Gosto de chocolate branco com cookies. Gosto de bis. Gosto de pizza, não importa o sabor e nem o dia da semana. Gosto de comida amanhecida. Gosto de sorvete com sucrilhos e bolacha wafer. Gosto de batata! Gosto de gente sem requinte e sem frescura. Gosto de cerveja estupidamente gelada num dia de muito calor.  Gosto de beber cerveja acompanhada. Gosto de gente que faz o que quer. Gosto de quem não se intromete no que faz o outro feliz, especialmente quando isso não lhes afeta em nada. Gosto de drogas: diazepam, amor. Gosto de quando o whisky deixa o meu nariz dormente. Gosto do barulhinho da máquina de tatuagem, e de sua vibração, especialmente no peito, pescoço e garganta. Gosto das bolinhas de sol que passam pelos buraquinhos do meu telhado de barro e se instalam na minha parede. Gosto de pintar as unhas de preto. Gosto de chupar gelo. Gosto de água. Gosto das minhas pernas e das minhas coxas, e gosto quando quem eu gosto gosta das minhas pernas e das minhas coxas. Gosto da maciez das minhas pernas quando eu as depilo. E gosto de puxar os pelos das pernas dos outros. Gosto da cor dos meus olhos. Gosto dos meus cabelos. Gosto quando memorizam as minhas pintas. Gosto de olhos pretos e olhos castanhos, de olhos de crianças, de olheiras. Gosto de bebês. Do cheiro de bebês, da inocência de bebês, da bagunça de bebês. Gosto de pés de bebês. Gosto do ato da amamentação. Gosto de entrar num sebo ou livraria sem hora de sair, e ficar passeando com meus dedos pelos livros das prateleiras, lendo os títulos, um a um, e de retirar esse ou aquele para ler a sinope. Gosto do susto de encontrar algum autor que gosto muito no meio das prateleiras, e da satisfação de ver que o preço do exemplar cabe no meu bolso. Gosto de cheiro de livros, novos ou usados. Gosto de sentir a textura dos livros. Gosto de livros com dedicatória de décadas atrás, e de imaginar como era a vida daquelas pessoas e como elas puderam se desfazer de um livro que ganharam. Gosto de não dar nada por um livro, e acabar arrebatada por ele. Gosto de ler os meus livros preferidos de tempos em tempos e ver como eu mudei. Ou que eu continuo a mesma. Gosto de ir a cemitérios. Gosto de ir a enterro de estranhos e analisar a reação das pessoas. Gosto de pessoas que dizem exatamente o que pensam. Gosto de pessoas que agem de acordo com o que dizem. Gosto de pessoas que chegam na hora. Gosto mais ainda das que chegam adiantadas, porque eu quase sempre chego também. Gosto de pessoas que se preocupam com os sentimentos dos outros. Gosto de all star. Gosto de conhecer novas músicas que vão direto para a alma. Gosto de recomendar músicas e que elas acabem dentro da alma das pessoas também. Gosto de ouvir música bem alto, e cantar bem alto. Gosto de Caravaggio. Gosto de lavar os cabelos. Gosto de lepidópteros. Gosto de quando borboletas pousam em mim. Gosto de estudar o que eu gosto. Gosto da empolgação que me domina quando eu crio um interesse novo. Gosto de judeus. Gosto de inglês. Gosto de português. Gosto de palavras. Gosto quando alguém me mostra algo que escreveu e o texto é bom. Gosto quando leem as coisas que eu escrevo e comentam algo além de "muito bom". Gosto de acordar tarde. Gosto de Liga da Justiça, Tarzan e X-Men. Gosto de assistir filmes que explodam minha cabeça. E de filmes ruins. Gosto de séries antigas, e algumas novas. Gosto de lápis de cor faber-castell. Gosto quando me desenham. Gosto de quando quem eu gosto diz que eu sou linda. Gosto de quando quem eu gosto me chama de gostosa. Gosto de relembrar meus dias de glória na escola Benedito Calixto. Gosto quando a coca-cola rasga a minha garganta. Gosto de Augusto dos Anjos, Fernando Pessoa e Florbela Espanca. Gosto de poetas que ainda não foram publicados. Gosto de fazer bolinhas de sabão. Gosto de glitter. Gosto de algodão doce. Gosto de ver coisas nas nuvens e nos azulejos. Gosto de homem com barba por fazer. Gosto de homem com camiseta regata. Gosto do som de mulher gozando. Gosto de montar árvore de natal. Gosto de suco de cenoura, laranja e gengibre. Gosto das crianças que são subestimadas pelos pais, professores ou sociedade. Gosto de abraços demorados e apertados, de sentir o corpo das pessoas contra o meu. Gosto de ficar só de camiseta e calcinha. Gosto de andar descalça. Gosto de sair na rua de pantufa. Gosto do Batman. Do David Bowie, do Albinoni e do Eminem. Gosto de demonstrações públicas de afeto. Gosto quando as pessoas mudam para melhor. Gosto de festas juninas. Gosto de animais livres e selvagens. Gosto de buracos negros. Gosto do Gary Oldman, do Adrien Brody e do Christian Bale. Gosto de Buffy e Angel. Gosto de pessoas que não usam perfume. Gosto de armações de óculos diferentes. Gosto de árvores. Gosto de abraçar árvores, embora só o faça quando não tem ninguém olhando. Gosto de elogios sinceros. Gosto de pessoas verdadeiras. Gosto de morder quem eu gosto. Gosto de ler prontuários médicos. Gosto de ver a bondade em suas formas mais puras, porque ela aparece de forma tão rara... Gosto de paredes pichadas com frases contestadoras. Gosto de quem questiona tudo. Gosto de trilha sonora. Gosto de fotografias antigas. E post-mortem. Gosto de guardar coisas na minha lata de lembranças. Gosto do meio do mato. Gosto de ventania. Gosto de pessoas bizarras. Às vezes, eu gosto de mim. Gosto de uma série de coisas que ainda nem sei... 
   Ah, e eu gosto de você, Danillo! Seu malk chato!

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

intocável

   Toda madrugada, antes de dormir, eu fico na minha cama, em meio ao escuro e o silêncio, fingindo que não estou sozinha. Fingindo que tem dois braços me aninhando; um coração batendo ao alcance do meu ouvido, meu rosto colado na pele nua e morna. O cheiro de vida emanando dela. Uma respiração tranquila pairando sobre mim... Nossas pernas estão sempre entrelaçadas. Eu o abraço com força, como um náufrago se agarrando a uma boia.
   E de tanto imaginar, chego a sentir a pressão desse corpo contra o meu. Ele dorme, eu me contento em ficar ali parada entre braços que me querem.
   Às vezes acordo desse delírio auto-induzido e choro de solidão. Lágrimas tão grossas que mal parecem líquidas, e soluços altos, convulsos, que ecoam pelo meu quarto, pela casa inteira, que talvez ouçam até da rua (...) mas ninguém se manifesta.
   Já fui menos piegas. (Será?). É a idade (alguns diriam). As necessidades passam a ser diferentes (interrogação). 
  Não, eu sempre tive necessidades, mesmo negando tê-las. Elas se manifestavam nas vezes em que eu tinha que me forçar a não tocar a pele exposta de pessoas com os braços erguidos no metrô. Em todas as vezes que eu de fato forcei contato físico com desconhecidos, deixando minha mão escorregar no ferro do ônibus para tocar a de alguém, quando abri mais as pernas no assento, para encostá-la na da pessoa ao lado, nas vezes que coloquei o braço mais para a direita para ultrapassar a linha entre o meu espaço e o espaço do meu colega de sala... E poder dizer, foi sem querer. Dessa forma eu não tinha que admitir para ninguém que precisava de coisas que não podia ter, coisas que sou incapaz de me permitir sem abandonar o nível mínimo de conforto que mantenho. Assim eu podia continuar sendo a pessoa durona que muitos imaginavam. Sozinha por escolha. Ligeiramente autista.
  Nos meus piores momentos, quando duas forças dentro de mim se atraem e se repelem ao mesmo tempo, fazendo-me sentir como se estivessem rasgando a minha alma, eu penso em correr para esses braços que me aninham todas as noites, chorar nesse peito cujas pintas e pêlos eu conheço de cor, deixar que o cheiro de vida que vem desse corpo anestesie o processo magnético que destroça as minhas entranhas. 
   Mas a fantasia não é suficiente. De dia, especialmente, é tudo brutalmente real.
  Eu corro, buscando quem entenda, quem se importe, e não encontro ninguém. Não encontro nada além da fidelidade dos objetos cortantes.  Meu ser implora por contato físico, por um toque. O que está ao meu alcance, porém, é a sensação da pele se abrindo sob a pressão afiada da lâmina. 
  

sexta-feira, 24 de março de 2017

amor³

  You're no good for me 
But baby I want you, I want you

  Eu fui, por muitos e muitos anos, viciada em me apaixonar. Até os 22 anos eu simplesmente não consigo me lembrar de uma fase na qual não estivesse apaixonada por alguém.
  A primeira vez que eu me apaixonei por um garoto eu devia ter uns 7 anos. O nome dele era Francis. A mãe dele cuidava de mim e dos meus irmãos às vezes. Lembro que a minha mãe nos acordava muito cedo para nos levar até a casa deles, que ficava na igreja que frequentávamos... Quase posso tocar as manhãs frias, o vapor saindo das nossas bocas durante a caminhada, o sono. E sinto o cheiro de xixi — eu fiz xixi na cama com frequência até os 8 ou 9 anos. Disfarçava enfiando as cobertas no meio das pernas na esperança de que elas absorvessemaquela coisa molhada e fria e minha mãe não notasse. Mas fazer o quê com o cheiro? Na maior parte do tempo, eu acho que as pessoas fingiam não perceber, por pena.
  O Francis era um bom garoto. Educado, não falava palavrão, e só uma vez mostrou o dedo, mas não o do meio, o indicador. Aquele ato foi, porém, digno da reprovação de sua mãe. O que vale, concordaram minha mãe e a dele, é a intenção. Ele era mais velho, como sempre. Se fecho os olhos ainda lembro do seu rosto.
  Ele me ensinou a fazer bolinhas de chiclete. Quando eu cresci mais um pouco, a aposta de todos era que seríamos namorados um dia. Ele corava quando eu entrava na igreja. Olhava atentamente quando eu cantava (se eu pudesse ser uma flor no jardim de Deus...♫), e uma vez ele sentou no banco bem atrás de mim e passou o culto todo mexendo nos meus cabelos. A sensação era tão boa que eu acabei dormindo.
  Um dia eu estava pendurando umas calcinhas no varal e minha mãe disse: "sabia que o Francis está namorando com a Débora?". Derrubei a calcinha, magoada e surpresa, porque a Débora era a minha melhor amiga. Ela também tinha cabelos cacheadinhos, e também cantava um hino na igreja (Deus não gosta de moleque malcrioso ♫), seria tão típico que até eu, então com 10 anos, teria entendido a probabilidade! Mas era mentira. Era mentira.
  Até que eu fui embora do bairro. Será que continuou sendo mentira?
  Mesmo com o coração povoado, o Francis era o Senhor supremo deste. Mas fui obrigada a seguir em frente, porque lhe escrevi uma carta após mudar para a casa do meu pai, e não sei se ele recebeu, se ele leu, só sei que não respondeu. 
  Depois teve o Tony. Toni. ToNYYYYY! Antonio Ricardo Pongeluppi!, a quem amei com loucura por boa parte da minha adolescência. O conheci aos 9 anos, ele era filho do então sócio do meu pai. Tinha 17 anos, fora do meu alcance em todos os sentidos. 
  O Tony não era um bom garoto. Ele flertava com todas as meninas e mulheres — inclusive com a minha melhor amiga à época, que nunca me deixa esquecer — e dizia coisas grosseiras com frequência. Ele gostava de jogar paciência no computador, ouvia Jorge Aragão (dizem que os dedos sentem sabor, quem vai saber? ♫) e odiava que eu escrevesse seu nome com y. Uma vez eu escrevi repetidamente em um caderno: TONY EU TE AMO TONY EU TE AMO TONY EU TE AMO TONY.... TONY! E lhe entreguei o caderno. Deixei apenas a última folha disponível para resposta. E a resposta veio: "Toni é com I, sua burra!" 
  Eu corri, melodramática como a personagem de um filme, e me joguei no chão, numa sala cheia de manequins pelados e sacos de roupas. Chorei, chorei, chorei calculadamente, até que ele apareceu, comendo uma coxinha, e se agachou ao meu lado. Riu um pouco, pediu desculpa embaraçado; seguimos em frente.
  Uma vez eu roubei o boné do Tony e o lavei, utilizando meia caixa de sabão em pó e um litro de amaciante, para que ficasse perfeito. No dia seguinte lhe entreguei o boné. Um dia depois ele chegou com o boné imundo, todo gotejado de tinta. Foi uma afronta direta. Chorei de novo! Ele não pediu desculpa.
  O pai do Tony me chamava de nora, e apesar dos desaforos, a coisa se estendeu por muitos anos. Uma vez, quando eu tinha uns 11 anos, estava subindo as escadas e a sainha que eu usava subiu pelas minhas coxas. Quando olhei pra trás o Tony estava lá embaixo, olhando de forma muito interessada. Ele disfarçou só um pouco. Eu arrumei a sainha só um pouco. Ficamos calados por um momento, e ele subiu atrás de mim. Gostei, e ainda gosto, de saber que a minha bunda e minhas coxas lhe causaram, naquele momento, interesse.
  Porém, certa vez o ouvi dizer: "ela é bonita — se fosse magra eu pegava!". Vem me pegar, Tony. Não, brincadeira, não vem não. Vi sua foto recentemente, e você está feio. Feio, Tony, você está feio, apesar de ser magro! Eu não te pegaria, Tony!
  Uma eternidade se passou, muitos caras passaram, e surgiu o Marcelo. A mais perfeita miragem. O Marcelo, o enigma. Marcelo, eu nem sei se você era um bom menino ou não, porque quando te conheci você já era homem.
  De abraços demorados e pernas roçando sob a mesa e poemas e viagens e idiomas e  carreira e Caetano Veloso (caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento ♫), o Marcelo era como o meu xixi: quente na hora, mas frio, muito frio após alguns minutos. O Marcelo, que me analisou e me diagnosticou e faturou com a minha dor e o meu amor. Manipulador, certamente. Homem, quando eu era uma menina perdida. Homens, lá dentro do coração, são piores do que garotos. São mais calculistas. Meninos fazem sem querer, homens pensam e fazem mesmo assim.
  Muitos caras passaram pelo meu coração e pela minha mente e pelas minhas pernas em dias e noites de febre constante, de insônia, de ansiedade. Francis, William, Johnny, Tony, Leonardo, Bruno, Israel, Felipe, Thiago, Rafael, Leandro, Daniel, Evandro, Wanderlei, Diego, Miguel, Caetano, Robson, Anderson, Alexandre, ... e tantos outros. Namorados de amigas, colegas de escola, professores, médicos, amigos meus, alguns maduros o suficiente, outros não... Pego meus diários e eles gotejam lágrimas, sangue e nomes, nomes, histórias semi-falsificadas, lembranças que escorregaram da minha memória para os meus olhos para os meus dedos, para a minha ...........
  E de tantos rostos e tantos nomes, são dois os caras que se destacam. Dois sonhos de uma noite de verão, um até mesmo sem nome. O que sonhei, o que ainda sonho.
  Eu estava em uma época selvagem e decidi fazer uma visita à minha amiga Adore, levar-lhe comida, pois ela alegava que estava passando fome. O problema: não me ocorreu que o metrô fechava a meia-noite, e fui expulsa da estação no meio do trajeto, indo parar em um dos lugares mais sujos e perigosos de São Paulo... a Luz.
  Sentei ali na calçada, esperando que desse o horário da porra reabrir, e um cara sentou ao meu lado, disse que era perigoso eu ficar sozinha, que ele me faria companhia (e veio a calhar quando uma barata me atacou).
  Não lembro de sua aparência. Não exatamente. Fica um registro abstrato na memória. Ele também havia sido expulso do metrô, me informou, e logo perguntou o que eu tinha nas sacolas. Lhe disse que tinha comida, perguntei se ele queria. Recusou o pão porque não tinha nada para colocar no meio. Não era um sem teto, apenas um corinthiano de corpo e alma, desses que conseguem falar sobre qualquer coisa, em qualquer lugar, fazer o que quiserem sem inibição.
  Por algum motivo ele foi parar no meu colo. Deitado nas minhas pernas, os braços sob a cabeça, exigindo carinho com sua fala mansa. E foi tão fácil oferecer-lhe afagos, que eu cedi. Toquei seu rosto, milímetro por milímetro, e pousei uma mão sobre o seu coração, sentindo-o palpitar, sentindo seu ritmo. Ele abraçou minha cintura, ainda deitado sobre mim, falando, falando, muito perto da minha buceta.
  Dormiu um pouco e eu o observei dormindo como se nos conhecêssemos, como se estivéssemos apaixonados. Ele quis me deixar dormir também, mas eu, vítima da insônia e da desconfiança, não precisava.
  E quando o metrô reabriu, simplesmente seguimos rumos separados sem ao menos um beijo. Qual era seu nome?! Não me lembro! Queria lembrar. Queria ter repetido o ritual. Queria tê-lo conhecido. Queria ter sentido seu coração mais vezes. Mas talvez ele só esteja na minha cabeça agora, 6 anos depois,  sendo digno de nota nesta pequena divagação sobre meus amores, porque permaneceu um desconhecido.
  E, por fim, teve o Jonathan. O meu amor bandido, o cara que me apresentou à cocaína.
  A faculdade estava insuportável. A sala inteira me odiava, e eu odiava a sala inteira. Cabulei aula e desci antes do meu ponto, indo parar no Cemitério da Saudade. Era uma das primeiras, da série de visitas que prestaria ao local... Estava sentada ali, ao lado do portão dos fundos, pensando na vida, quando o Jonathan chegou e perguntou se podia sentar por ali. Respondi que sim, claro. O observei... Ele tirou um pino de cocaína do bolso, cheirou um pouco. Olhou para mim e perguntou, com naturalidade: "quer?". Frustrada, deprimida, curiosa, respondi que sim. Ele ficou de joelhos e se aproximou de mim, assim, engatinhando. Colocou um pouco do pó na lateral da própria mão e a estendeu para mim. Eu, sem ter certeza de como, fiquei também de joelhos e mandei o pózinho amarelado pra dentro do meu sistema pela primeira vez na vida. Agora mesmo posso sentir a sensação da porra no meu cérebro fodido pela depressão e pelos remédios psiquiátricos! A calmaria, ao contrário do que a maioria das pessoas sentem. Meu corpo ficando dormente nos lugares certos.
  Repetimos o ritual. Logo fiquei dependente do Jonathan e do pó na mesma proporção.
  Ele era um bom garoto. Voz baixa, rejeitado pela família, carinhoso. Me deixava ficar encostada nele por horas, enquanto eu mal sentia meu corpo, dopada por quetiapina, whisky e pó.
  Ele me roubou uma vez. Pediu meu MP3 emprestado, disse que levaria na boca para arrumar pó pra gente, que no dia seguinte arrumaria dinheiro para resgatar o aparelho. Ele foi — com o meu bilhete — e não voltou. Eu fiquei sem pó, sem MP3, sem bilhete e sem Jonathan. Fiquei foi com um olho roxo e inchado. Liguei para a casa dele, fiz cena, fui chamada de vagabunda por sua irmã. Mas eu até que gostava do título de vagabunda.
  Alguns dias depois ele apareceu no cemitério. Eu estava tomando black stone com gelo quase derretido, que havia carregado em uma lata de leite, da minha casa até o cemitério. Eu, puta da vida, ele, sorridente e tranquilo como sempre. Safado. Disse que eu estava bonita. Me derreti. Disse que eu era muito chique, tomando whisky enquanto ele não tinha dinheiro nem para tomar pinga. Lhe ofereci meu whisky. Ele aceitou... Ele aceitou a garrafa toda. Disse que levaria a garrafa na boca para conseguir pó pra gente, e que dessa vez voltaria. Eu cedi. Leva. Leva a minha garrafa de whisky, leva a minha mochila também, leva o meu coração, toma aqui!
  Mas dessa vez ele voltou. E me disse: "eu falei que ia voltar!". Informou que conseguira dois pinos, mas eu sabia que ele tinha mais escondido. Não me importava, dois pinos estava de bom tamanho, e dessa vez ele havia voltado. Fiquei tão comovida com o fato de ele ter voltado, que o segurei pelo queixo, guiei o olhar dele para mim e beijei sua boca, com carinho e ardência ao mesmo tempo. E aquele... Ah, aquele é o beijo que eu vou levar para sempre na memória como o meu primeiro beijo, mesmo não tendo sido o primeiro nem o segundo nem o terceiro. 
  Nos beijamos e cheiramos, cheiramos e nos beijamos. Ele pediu para eu chupá-lo, eu me neguei.
  Mas o Jonathan estava mais propenso a ir do que a ficar. E um dia foi. Não o vi mais, não de verdade, apenas em um delírio de alucinógeno. Ei, Jonathan! Me espera! Ei! Opa, desculpa, pensei que fosse outra pessoa. E não era ninguém.
  Se eu pudesse ter uma pessoa, com todos os dramas e pequenos abusos e delinquência, seria o Jonathan. Porque de todos os caras que eu amei, o Jonathan é o mais EU que já existiu. Fodido como eu. Auto-destrutivo como eu. Tão morto quanto eu. Eu só queria ficar encostada nele por horas. Cheirar com ele por horas. Beijá-lo por horas. Repetir tudo por horas. Até morrermos.


Ei, Jonathan. Cadê você, porra? Foda-se a sua família de merda! EU te amo!