sexta-feira, 15 de setembro de 2017

intocável

   Toda madrugada, antes de dormir, eu fico na minha cama, em meio ao escuro e o silêncio, fingindo que não estou sozinha. Fingindo que tem dois braços me aninhando; um coração batendo ao alcance do meu ouvido, meu rosto colado na pele nua e morna. O cheiro de vida emanando dela. Uma respiração tranquila pairando sobre mim... Nossas pernas estão sempre entrelaçadas. Eu o abraço com força, como um náufrago se agarrando a uma boia.
   E de tanto imaginar, chego a sentir a pressão desse corpo contra o meu. Ele dorme, eu me contento em ficar ali parada entre braços que me querem.
   Às vezes acordo desse delírio auto-induzido e choro de solidão. Lágrimas tão grossas que mal parecem líquidas, e soluços altos, convulsos, que ecoam pelo meu quarto, pela casa inteira, que talvez ouçam até da rua (...) mas ninguém se manifesta.
   Já fui menos piegas. (Será?). É a idade (alguns diriam). As necessidades passam a ser diferentes (interrogação). 
  Não, eu sempre tive necessidades, mesmo negando tê-las. Elas se manifestavam nas vezes em que eu tinha que me forçar a não tocar a pele exposta de pessoas com os braços erguidos no metrô. Em todas as vezes que eu de fato forcei contato físico com desconhecidos, deixando minha mão escorregar no ferro do ônibus para tocar a de alguém, quando abri mais as pernas no assento, para encostá-la na da pessoa ao lado, nas vezes que coloquei o braço mais para a direita para ultrapassar a linha entre o meu espaço e o espaço do meu colega de sala... E poder dizer, foi sem querer. Dessa forma eu não tinha que admitir para ninguém que precisava de coisas que não podia ter, coisas que sou incapaz de me permitir sem abandonar o nível mínimo de conforto que mantenho. Assim eu podia continuar sendo a pessoa durona que muitos imaginavam. Sozinha por escolha. Ligeiramente autista.
  Nos meus piores momentos, quando duas forças dentro de mim se atraem e se repelem ao mesmo tempo, fazendo-me sentir como se estivessem rasgando a minha alma, eu penso em correr para esses braços que me aninham todas as noites, chorar nesse peito cujas pintas e pêlos eu conheço de cor, deixar que o cheiro de vida que vem desse corpo anestesie o processo magnético que destroça as minhas entranhas. 
   Mas a fantasia não é suficiente. De dia, especialmente, é tudo brutalmente real.
  Eu corro, buscando quem entenda, quem se importe, e não encontro ninguém. Não encontro nada além da fidelidade dos objetos cortantes.  Meu ser implora por contato físico, por um toque. O que está ao meu alcance, porém, é a sensação da pele se abrindo sob a pressão afiada da lâmina.