segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

leitura: paciência



Título: Paciência
Autor: Daniel Clowes
Editora: Nemo
Ano de lançamento: 2017
Número de páginas: 181
Lido em: 31-12-23 a 01-01-24

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"Ela é a última pessoa em quem vou encostar. Pode ser que ainda tenha algum pedacinho, alguma célula
dela na minha pele."

Paciência, de Daniel Clowes, foi um presente que ganhei de aniversário e que me acompanhou nessa virada de ano solitária. Já li algumas obras do Clowes, sendo "Ghost World" uma das minhas graphic novels preferidas da vida. Além disso, sou apaixonada por enredos que envolvem viagem no tempo e paradoxos, e essa é a premissa dessa graphic novel, então eu já esperava que seria uma leitura do meu agrado. Eu tento não criar tanta expectativa sobre histórias com viagem no tempo, porque é algo muito difícil de conduzir sem deixar furos ou se tornar algo altamente previsível, mas sendo Clowes, não consegui evitar criar expectativas, porém posso dizer que mesmo com a expectativa elevada, ela ainda conseguiu me surpreender positivamente.
A história começa no ano de 2012, quando Jack Barlow e sua esposa, Paciência, descobrem que terão um filho. Eles ficam muito felizes com a notícia, mas por outro lado, sendo bastante pobres e vivendo num momento de crise financeira nacional, eles começam a entrar em desespero por todas as demandas financeiras que ter um bebê exige. Paciência está desempregada e Jack encara um trabalho com salário ínfimo e sem perspectiva de conseguir algo melhor, já que não concluiu os estudos. Ele tenta manter uma fachada de esperança para não preocupar a esposa, mas as preocupações financeiras fazem com que eles fiquem introspectivos, mantendo seus pensamentos de insuficiência para si mesmos, ao invés de tentarem resolver os problemas juntos. Eles vivem nessa dualidade: enquanto Jack se acha pouco para Paciência, Paciência se acha pouco para Jack. 
Aliás, comunicação não é o forte do casal. Paciência dá sinais de ter um passado tenebroso e que ainda lhe assombra, mas nas poucas vezes em que ela tenta se abrir, Jack não quer falar sobre, achando que é melhorar deixar o passado no passado, para que ela não fique mais chateada.
Um dia, ao voltar do serviço, Jack encontra Paciência morta. A polícia logo o coloca como o principal e único suspeito do crime e ele é jogado na cadeia, onde fica por 10 meses, passando pelas mãos de advogados públicos incompetentes. Até que um dia o libertam e informam que encontraram fibras e DNA de outra pessoa na cena do crime. Com o tempo que passou, o caso esfriou e é arquivado.
Jack decide investigar por conta própria e viaja até a cidade de onde Paciência veio, seis anos antes, para tentar descobrir mais sobre sua vida e talvez encontrar suspeitos ou a pessoa que a assassinou. Paciência não tinha família viva além de uma irmã de criação que é uma viciada em drogas e tem pouco de concreto para oferecer para Jack além do nome de um ex-namorado, "Andy". Jack procura muito por esse ex-namorado, mas não encontra rastros dele.
Então somos levados para o ano de 2029, num mundo futurístico, onde Jack, agora na casa dos 50 anos, foi incapaz de superar a morte de sua esposa e filho, continua amargurado e buscando pistas para solucionar o crime. Toda a vida de Jack gira em torno do que aconteceu. A única coisa na qual ele pensa além do passado com Paciência e em seu assassinato, é na vida que poderia ter tido ao lado dela e do filho. Ele não tem amigos e não se envolveu novamente com nenhuma mulher. Ao longo dos anos ele apenas nutriu sua obsessão e rancor pelo que aconteceu.
Até que ele conhece uma prostituta e lhe conta sua história. Ela então lhe conta sobre Bernie, um cara que é tão obcecado quanto ele pela morte de alguém do passado e que vive falando sobre viagem no tempo. Isso entra na mente de Jack, e como todas suas tentativas de investigação deram em nada, ele decide ir atrás de Bernie para tentar voltar no tempo e impedir a morte de Paciência e seu filho.
Após vigiar e seguir Bernie, Jack descobre que o homem construiu um dispositivo e fez um elixir capaz de enviá-lo ao passado. Ele então rouba tal tecnologia de Bernie e embarca em sua jornada para salvar sua esposa e seu filho. Sua primeira parada é em 2006, seis anos antes do crime. Jack vai para a cidade onde Paciência cresceu e começa a observar sua vida, tentando descobrir mais sobre ela e sobre as pessoas com quem ela convive, tentando descobrir quem a assassinou.
Nessa busca, ele acaba descobrindo coisas sobre sua esposa que nunca havia imaginado, e apesar de tentar não interagir com ninguém do passado e deixar as coisas seguirem o curso natural para que eles se encontrem e se casem, Jack acaba se envolvendo mais do que deveria nos eventos, o que pode gerar consequências no futuro que ele conheceu ao lado de Paciência...
Como disse, criar uma história sobre viagem no tempo não é uma tarefa fácil. Muitas pessoas que tentaram, no cinema ou na literatura, esbarraram em clichês ou meteram os pés pelas mãos, criando  roteiros cheios de furos e confusão. Daniel Clowes, no entanto, conseguiu conduzir e amarrar a história muito bem. Apesar da complexidade do tema, ele produziu uma narrativa clara, envolvente e sagaz, que aborda a dor do luto, a revolta pelas desigualdades sociais e, claro, a dificuldade de viajar para o passado sem criar uma profecia autorealizável. Além disso, também explora os impactos da viagem no tempo para o corpo humano, uma vez que somos sacos de células. Nesse sentido, é especialmente interessante acompanhar uma história do gênero por quadrinhos, já que nessa mídia não existe limitação nenhuma para efeitos especiais, desde que a pessoa responsável pela arte tenha talento e imaginação, e esse é o caso em  "Paciência". As artes são muito bonitas e detalhadas (até nos planos de fundo), com cores vibrantes na era mais futurística e com ambientação saudosista quando o personagem viaja mais para o passado. Nos momentos em que fica evidente os danos físicos da viagem no tempo, temos uma explosão psicodélica de formas e cores que tomam conta das páginas de forma extraordinária.
Como era de se esperar de Daniel Clowes também, apesar da crueldade explícita e do tom sombrio dos personagens, temos diversos momentos de humor ácido e linguagem muito desbocada. No entanto, vale ressaltar que em muitos momentos há uma apelação contra o corpo gordo. São muitos os momentos de estigamatização do corpo gordo e gordofobia recreativa. Tem vários personagens gordos e Jack ataca a aparência de todos eles.

Tirando isso, foi uma leitura muito interessante e divertida, que também me gerou alguma reflexão: será que se esse crime não tivesse acontecido, Jack e Paciência teriam realmente ficado juntos e sido "felizes para sempre" como ele fantasiou por anos? A conexão deles me parecia tão fraca. Eles eram claramente codependentes, mas ao mesmo tempo não se abriam muito um para o outro. Não se conheciam profundamente. É possível realmente amar alguém que não conhecemos? Acredito que esse é um clássico caso onde os sentimentos são amplificados pela perda, e que beira mais obsessão do que amor. Não que seja uma obsessão injustificada, afinal, ele perdeu a esposa e o filho, independente do que viesse a acontrecer entre eles no futuro. Mas no fim das contas, o Jack do futuro conheceu mais de Paciência do que o Jack que a perdeu no começo da história algum dia conheceria.
Por fim, o motivo do crime não foi super elaborado e nem o final que eu esperava, mas me agradou. Fez sentido para a história. E o final do personagem Jack também foi muito legal e fechou bem a história.

Leitura recomendada! 

* Uma pequena crítica que eu tenho, é para a tradução e revisão de texto, que em determinados momentos deixou a desejar, especialmente quando li um "ciclano" ao invés de "sicrano". Em escrita informal, amadora ou em tradução gratuita, eu não ligo para como as pessoas escrevem e considero que o importante é se fazer entender. Mas uma tradução e publicação desse porte merecia mais atenção e cuidado.

Vou dizer o final que eu esperava abaixo e isso pode ser um tipo de spoiler, então leia por sua conta e risco!
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Pensei que o prório Jack mais velho (que viajou no tempo) poderia acabar sendo o assassino por algum motivo. O próprio personagem levanta esse receio em determinado ponto da história

domingo, 31 de dezembro de 2023

mudança

No começo do ano eu disse que meu espírito estava pedindo por mudança. Mas como mudar? De tantas formas, mudança nunca foi algo fácil para mim. Eu já fui bem impulsiva, até mesmo destemida diante do perigo, mas essa impulsividade nunca produziu nenhuma mudança real na minha vida. Em questões práticas e necessárias para viver em sociedade, sempre me vi travada.
Hoje eu me vejo como uma pessoa muito mais cautelosa. Os anos e as pessoas me fizeram alguém medrosa. Até na minha autodestruição eu fiquei mais contida. E de repente, nada daquilo fazia sentido. A autodestruição, que antes me dava algum alívio, já não surtia efeito.
Eu precisava de uma mudança, meu espírito estava pedindo por isso, mas eu não sei como mudar. Qual direção tomar? Quais medidas? Quais ações? E eu caí num abismo, que foi desconhecer a mim mesma. Comecei a perceber que as coisas que eu gostava, já não gosto mais. Que o que antes era meta, deixou de ser. Que muito do que eu acreditava, já não acredito. Que as coisas com as quais me identicava, já não me identifico. Que muitas vezes digo que gosto de algo que gostava antes, só por hábito. Hoje eu conheço mais quem eu fui, do que quem eu sou.
E ninguém me conhece também. Não de verdade. As pessoas conhecem e buscam quem eu fui, não quem eu sou.
Do que eu gosto agora? Quem eu sou agora?
Como mudar, quando não sabemos quem somos e o que queremos?
Até que o universo impulsionou esse processo de mudança pra mim. De certa forma, as coisas foram se encaixando e funcionando a meu favor. Não estou dizendo que esse ano foi fácil, pelo contrário. Eu senti muita dor, física e emocional. Senti muita solidão. Mais do que eu pensei que pudesse suportar. Mas também ganhei algumas ferramentas e armas para tentar navegar pelo caos que sempre foi minha vida.
Primeiro, a natação, que é algo que eu gosto desde criança e não tinha acesso. Voltar para a natação depois de tantos anos, foi como reencontrar a Cíntia de 10 anos. Em alguns aspectos, eu me vi muito similar a ela, mas em outros, muito diferente. Eu achei que ela sentiria orgulho de saber que nós não temos vergonha do nosso corpo mais e que estamos finalmente construindo uma relação mais saudável com comida. Apesar dos muitos desafios envolvidos em fazer aulas de natação, tive muitos momentos de paz e contentamento dentro da água esse ano. E espero levar isso para 2024.
Depois consegui uma psicóloga muito boa e empática, com a ajuda de um amigo, e na sequência uma psiquiatra especialista em neurodiversidade, com a ajuda de uma seguidora gorda e autista, e embarquei num processo de olhar pro meu passado e pros meus diagnósticos até aquele momento de uma forma diferente. Há muito tempo eu sentia que meus diagnósticos dos último 10 anos não contemplavam minhas vivências e minhas dificuldades diante do mundo. Eu sentia que não era o suficiente para explicar minhas necessidades de suporte. A psiquiatria vai avançando, e com isso mudam definições e conceitos. Aos poucos, quem não era visto e nem validado, começa a ser. Poucas vezes tive um acolhimento psicológico e psiquiátrico realmente humano. Poucas vezes me senti vista em consultórios de saúde mental. Com essas duas profissionais atuais, eu senti que fui vista e validada. Viram além da tristeza, além das cicatrizes, além até mesmo dos abusos. Olharam e me ajudaram a olhar pra minha vida toda, desde quando eu era bebê. Eu descobri coisas (com a ajuda da minha mãe, que respondeu questionários) sobre a minha primeira infância que não fazia idéia e que elucidaram muitas questões do passado e do presente. Que levaram a novos diagnósticos, que podem me garantir o suporte que eu preciso para talvez conseguir mudar de forma mais substancial.
Receber diagnósticos corretos depois de tantos anos de luta pela minha saúde mental foi positivo, mas não posso dizer que foi fácil desapegar de diagnósticos que carreguei por mais de 10 anos, mesmo que com eles eu carregasse muita marginalização e negligência. Era o que eu sabia. Eu passei anos lendo e estudando sobre aquilo. Agora eu estou num campo semi-desconhecido. Ainda estou digerindo tudo que está atrelado a isso, inclusive as possibilidades que me foram negadas com um diagnóstico errado por boa parte da minha vida. Eu poderia ser outra pessoa se tivesse tido o tratamento adequado. O que ainda é possível salvar disso?
Esse ano eu fiquei bem introspectiva, mais do que o normal, e guardei muito de mim para mim mesma.  Eu sempre olhei muito para o meu passado, o expus, mas sempre com rancor, às vezes até de mim mesma. Nunca consegui me acolher muito bem. Com a minha psicóloga atual, eu estou conseguindo olhar para o passado, para as diversas Cíntias que fui, com acolhimento. Quando não sou capaz de dar esse acolhimento, minha psicóloga acolhe as Cíntias do passado e a Cíntia do presente, sentada ali na sua frente.
Acho que nunca estive tão aberta para o tratamento psiquiátrico e psicológico como estou nesse momento, e minha cabeça também está mais clara com as medicações e as intervenções terapêuticas agora que não consumo nenhum tipo de droga (nem mesmo álcool) e não estou sendo dopada com remédios ineficientes para o meu caso. É algo totalmente diferente do que vivenciei até aqui, fazendo tratamento desde os meus 15 anos. Isso é mudança, certo?
Depois de receber os novos diagnósticos, sobre os quais ainda não me sinto confortável para aprofundar muito, fui conversar com a minha psiquiatra anterior à atual, que me acompanhou antes da pandemia. Eu gostava muito dela e nos tornamos amigas quando o sistema nos separou enquanto paciente e profissional. Falei para ela sobre esses novos diagnósticos e pedi a opinião informal dela, como alguém que sabe da minha história e me acompanhou, mesmo que por pouco tempo. Ela deu sua opinião, mas o que me marcou foi quando ela disse que tudo que eu passei na infância foi enlouquecedor. E que eu enlouqueci, mas os livros me salvaram, de alguma forma, e a minha loucura ficou contida dentro de uma intelectualidade. Eu senti essas palavras. Acho que foi um misto dessa reflexão com o efeito dos remédios, mas depois disso eu recuperei o apetite pela leitura de uma forma que não conseguia há anos. Consegui ler diversos livros depois desse processo e dessa conversa. Voltei a me envolver com as histórias que leio, voltei a sentir aquela ansiedade boa para saber o que acontece a cada virada de página, voltei a ficar tão imersa nas páginas, que os problemas somem. Comecei até a me desesperar um pouco por todo o tempo que perdi, que deixei de ler. Eu fiquei e estou muito contente por voltar a me sentir assim sobre livros.
Por fim, no último minuto do segundo tempo, veio a maior mudança desse ano: a mudança forçada de casa. Fui despejada injustamente de onde morava e em menos de 20 dias, completamente sozinha, tive que encontrar uma nova casa, encaixotar tudo, encontrar prestadores de serviço, limpar tudo,  fazer a mudança e agora termino 2023 tentando finalizar essa mudança. Tentando colocar tudo no lugar, zerar as caixas.
Quando eu recebi o despejo, tentei não me desesperar. Eu já queria mudar de lá, por vários motivos, mas tinha medo. Medo de ir pra outro lugar, de ter que me adaptar a outro lugar, de desapegar de um espaço no qual vivi momentos que nunca mais irei viver, com alguém que amei muito. Medo de ter que conhecer novas ruas. Andar por novas ruas. Conhecer novos vizinhos. Eu iria adiar essa mudança o máximo, pelo medo. Mas a vida se encarregou de me forçar a mudar, porque eu precisava disso. Dizem que há males que vêm para o bem, não? Dessa vez essa frase pareceu verdade. Eu encontrei uma casa muito melhor, que parece ter sido feita para mim, e com toda correria, deu certo.  Eu tinha outros planos para esse fim de ano, para o natal, ano novo e meu aniversário, mas se não fosse isso, se eu esperasse, provavelmente perderia a oportunidade de estar nessa casa que acredito que me fará muito bem.
Eu não fui tudo que queria ser em 2023, mas fui o que deu pra ser. 



domingo, 24 de dezembro de 2023

arte

 Outro dia eu contei sobre uma vez que uma cigana leu minha mão e me disse que eu tenho mãos de cura, que deveria ser médica, ao que eu respondi que o que eu queria era curar as pessoas com a minha ARTE.
Um hater me mandou uma mensagem questionando "que arte que eu faço" que teria o poder de curar alguém, e outras tantas pessoas me disseram que eu sou minha maior obra de arte, e que as "curei".
A arte esteve comigo desde antes de eu saber que ela existia. A arte da escrita, acima de todas. Primeiro como leitora, e depois como escritora. Ela me fez encontrar meu lugar no mundo. Me ofereceu conforto, compreensão, companhia... me fez sentir inteligente quando a escola dizia que eu era burra por não florescer num sistema engessado. E depois todas as outras formas de arte foram surgindo, me cativando e ganhando espaço na minha vida. Eu sobrevivi 28 anos porque a arte existe em mim. Através dela eu pude me expressar, me entender, manter minha sanidade...
Nunca gostei de discutir "o que é arte". Acho este um debate irrelevante e pretensioso. Cada pessoa sente as coisas de uma maneira. O que me afeta, pode não afetar o outro. O que me arrebata, seja pela mensagem ou pela estética, pode fazer o outro bocejar de tanto tédio.
Desenho é arte, pintura é arte, música é arte, cinema é arte, fotografia é arte, escrita é arte, Romero Britto é arte, ler mãos é arte, sexo é arte, o corpo humano é arte. Eu sou arte. A arte não precisa agradar a todos, não precisa ser universalmente conhecida, aceita ou rejeitada, para ser ou não arte. Não precisa ser experimentada por ninguém além de seu autor para ser arte - A arte engavetada ainda é arte. O que você não entende ou não gosta, não deixa de ser arte!
Eu me sinto compreendida quando as pessoas me dizem que eu sou arte, poesia. E sempre que eu recebo mensagens dizendo que eu fiz parte da "cura" de alguém, sinto que não estou aqui à toa. Fico contente de o meu corpo ter se tornado a minha principal ferramenta de expressão, porque, ao menos nessa existência, onde eu for, ele vai estar comigo. Eu não preciso de muito mais que isso.

Texto de 24 de dezembro de 2018

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

leitura: solitária

Título: Solitária
Autora: Eliana Alves Cruz
Editora: Companhia das Letras
Ano de lançamento: 2022
Número de páginas: 161
Lido em: novembro de 2023
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"É curioso reparar como algumas pessoas nesse mundo não têm direito à meninice. Quando ainda mal se sustentam em cima das pernas, são vistas como adultas; enquanto outras serão para sempre garotos e garotas."

Essa é uma boa frase para resumir "Solitária", que começa sua narrativa no sudeste, no fim dos anos 90, sob a perspectiva de Mabel, uma garotinha negra que um dia é levada por sua mãe, Eunice, para o luxuoso apartamento onde esta trabalha para uma família muito rica como doméstica. Ali Mabel é imediatamente confinada a um quartinho de empregada, pois sua presença é um incomodo para Lúcia e Tiago, os patrões de sua mãe. Logo nesse primeiro contato com essa família, Mabel conhece Irene, uma menina negra de 13 anos que foi trazida do interior para ser a babá de uma criança branca. Nesse mesmo dia, Mabel presencia um acidente envolvendo essa criança branca e vê Irene sendo punida pelo ocorrido, sabendo, mesmo em seus poucos anos, que aquela moça poderia ser sua irmã.
Quando a patroa de Eunice engravida, a presença de Mabel na casa passa a ser "tolerada", desde que ela "não faça barulho" e "não fique no caminho". Na verdade, Mabel começa a ser usada como força de trabalho, tendo que ajudar sua mãe nos afazeres domésticos e nos cuidados da filha dos patrões da mãe. Enquanto Mabel tem sua infância roubada e passa a dividir de forma permanente com a mãe o quartinho de empregada onde tudo é reduzido, Lúcia ganha "duas domésticas pelo preço de uma". Porém, assim como sua avó, uma mulher orgulhosa de suas raizes e insubordinada, à medida que Mabel vai crescendo, ela vai se revoltando contra aquela família e contra aquele sistema de servilidade ao qual sua mãe está presa e decide estudar e se tornar médica para tirá-las daquela situação. Os patrões de sua mãe tratam de forma desdenhosa o sonho de Mabel de se tornar médica, algo quase impensável para uma menina negra e filha de uma doméstica, mas a menina está  determinada e se empenha nesse objetivo. Enquanto se divide entre os afazeres domésticos, uma rotina rigorosa de estudos e seus dilemas de adolescente, Mabel cresce solitária entre as quatro paredes silenciosas do quartinho de empregada, tendo que arcar sozinha com as consequências dos seus atos, enquanto sua mãe se dedica não à criação dela, mas à da filha branca de sua patroa, uma menina tão mesquinha e mimada quanto seus pais, mas por quem Eunice tem muito amor.
A segunda parte do livro nos oferece a perspectiva de Eunice, uma mulher negra reduzida não aos seus sonhos, mas às suas responsabilidades. Uma mulher que se viu esposa e mãe muito cedo, como muitas antes de si, e que teve que se conformar com o sistema, abrindo mão de seu orgulho e de seus desejos para sustentar uma mãe idosa e doente e uma filha pequena, enquanto seu marido, um homem alcoólatra e por vezes agressivo, vencido pelo sistema, abandona não apenas a família, mas a si mesmo.
Eunice se anula em função dos patrões e pela moral machista da sociedade e se vê constantemente dividida entre o amor que sente pela filha e o amor que sente por Camila, a filha da patroa, já que a criou desde bebê. Mas quando os atos irresponsáveis de Camila culminam em uma grande tragédia, Eunice precisa tomar uma decisão.
Além de Mabel e Eunice, o livro também tem seu foco narrativo na família do porteiro Jurandir, que vive em um quartinho tão "inho" quanto o de Eunice e Mabel, porém mais insalubre, com poluição o invadindo dia e noite. "Solitária", o título do livro, não se refere apenas ao sentimento de solidão, mas também aos quartinhos destinados às classes mais pobres, que são como prisões. Jurandir é viúvo e pai de João Paulo e Cacau. Enquanto o segundo decide, assim como Mabel, focar nos estudos para a possibilidade de uma vida melhor, João Paulo é um jovem revoltado contra o sistema, mas que não sabe para onde direcionar sua revolta, ocupando, na visão social, o papel do homem negro "marginal", apesar de estar muito longe de sê-lo: João Paulo também trabalha desde muito novo e teve sua infância tolhida pelo racismo.
Solitária é um livro curto, mas que abarca muitas coisas. Na minha opinião, não precisava ser tão curto. A autora poderia ter acrescentado mais camadas para alguns dos personagens secundários, poderia ter criado mais cenas e ter marcado melhor o espaço entre as fases que transcorrem ao longo de 20 anos, para dar mais profundidade aos acontecimentos. Algumas situações são colocadas de maneira muito abrupta. Ainda assim, com "Solitária", Eliana Alves Cruz cumpre bem a função de desenhar vários aspectos de uma sociedade racista e elitista, nos mostrando diferentes perspectivas e reações a essa estrutura que se perpetua há séculos. Esse livro fala sobre a infância roubada de crianças negras, sobre a eterna criancice de pessoas brancas, sobre mulheres negras que precisam abrir mão de cuidar de seus filhos para cuidar dos filhos de pessoas brancas, sobre homens negros em situação de rua e muitos outros resultados do racismo estrutural. De forma direta ou mais sutil, esse livro tem muito a dizer.  Muito atual e trazendo eventos reais, ele é um registro do cenário social e político dos  últimos 20 anos do Brasil, retratando uma elite não só acostumada a escravizar pessoas negras e pobres, mas também ressentida dessas pessoas finalmente estarem ocupando espaços até então exclusivos a ela. Uma elite sem vergonha de dizer coisas como: "esse vaso vale mais do que vinte anos do seu salário" e que apoia um governo golpista para tentar manter seus privilégios.
O que me chama mais atenção, porém, para além da abordagem sobre o impacto do racismo sobre a infância de crianças negras, é a demarcação das diferenças psíquicas e estruturais do racismo entre homens e mulheres, já que além do racismo, mulheres enfrentam também a carga do machismo e da maternidade compulsória (muitas vezes fruto da falta de educação sexual): mulheres negras não podem se dar ao luxo de se abandonar, não podem esmorecer, elas têm que se manter fortes, dentro de quartinhos solitários, para ser a base da próxima geração de pessoas negras. Afinal, por trás de cada pessoa negra, especialmente mulheres negras, têm outras mulheres negras que lutaram muito e deram o sangue para um futuro melhor para os seus. Mesmo que de formas diferentes, mulheres negras estão sempre sustentando umas às outras.

Livro recomendado.

sábado, 18 de novembro de 2023

as últimas horas da borboleta...

o que me move...?
Estava a caminho da academia. Estava atrasada, mas sabia que se a deixasse ali, ela morreria grudada no asfalto, assim como a borboleta que encontrei outro dia.
Sempre que eu vejo uma borboleta voando, eu paro, na expectativa de que ela pouse em mim, um presságio de felicidade. Mas elas nunca pousam. Elas passam por mim. As pessoas dizem que não adianta correr atrás de borboletas, nós temos que cuidar do nosso jardim e elas virão. (...)
Todo inseto que me procura, está morrendo (quase nunca borboletas). Eu coloco uma música triste, faço companhia... Mas eles morrem sozinhos, como toda criatura.
Bem, apesar do atraso, eu abaixei e recolhi a borboleta do asfalto. Minha intenção era deixá-la em algum canteiro ou árvore, mas ela estava ferida. O vento batia e a arrastava. Ela não conseguia manter seu voo. Tentei deixar num jardim no caminho do ponto de ônibus, mas não tive coragem. Fiz minhas mãos em copo, levando ela no centro escuro e protegido contra o vento. Peguei o ônibus com a borboleta nas mãos, todo mundo me olhando com curiosidade ou estranheza. Mas, como eu faria com ela ao chegar na academia? Guardaria no armário? Lembrei que lá tem um jardim bem grande no estacionamento. Fui lá, a deixei em um graveto entre árvores, folhas e flores. Entre predadores. Fiz a natação pensando nela. Se ela conseguiria se defender. Se teria sido comida por formigas. Depois da aula, fui lá olhar. Pensei em deixar ela lá, parecia mais digno morrer na natureza selvagem do que ficar entre as paredes da minha casa, depois de uma longa metamorfose. Novamente, não tive coragem. A coloquei em um copo, dessa vez de plástico, peguei o ônibus, depois o trem, sempre cobrindo o copo com a mão para o vento não machucá-la. Vim para casa sob um sol escaldante, com receio de morrermos no caminho. Chegamos em casa molengas, mas sobrevivemos.
Ela não pousou em mim. Ela aceitou a minha mão. Ela não me trouxe felicidade. Ela me trouxe, sim, alegria por sua existência e por sua beleza, aflorou meu instinto de proteção, me fez sentir ternura... mas me trouxe outros sentimentos negativos por seu destino. Pelo destino de todos os seres. Hoje essa borboleta me moveu, mas ao cruzar o meu caminho, ela me trouxe tristeza em um dia já triste, por me fazer pensar no desperdício que é passar por uma transformação longa e dolorosa, criar asas, para no fim acabar confinada em um quartinho, esperando a morte. E depois, tirando essas fotos — confesso, por imposição minha —, ela me fez olhar pra mim e me fez pensar no meu tempo passando. No meu rosto mudando. Nas novas marcas que eu tenho ignorado. Eu vi beleza nisso tudo, na minha pele, nas nossas cores, em suas asas, mas tem sempre um pouco de tristeza também.

O que me move...?

A minha solidão? O meu desejo pela companhia? O meu medo de morrer sem ter ninguém para me aninhar e me proteger do vento... O que me move é o meu medo de ser arrastada por esse mundo, assim, sem defesa. Quando acolho um inseto morrendo, não sou movida só por bondade, por identificação ou por hiperfoco: tem muito mais de egoísmo. Por alguns momentos eles me tiram da minha solidão. É um tipo tão triste de companhia. Um tipo tão triste de beleza.