terça-feira, 26 de novembro de 2019

ei, você

Por que você não gosta de mim
Assim?

Eu gosto de você.
Às vezes quase nada.
Às vezes só um pouco.
Às vezes mais do que eu dou conta...

Seja como for, você está
Sempre dentro,

...
Mesmo quando
Às vezes
Você consegue
Fingir que eu não existo.

Eu digo a mim mesma:
Chega! Agora chega!

Acabou.

Mas acabou nada.
Eu continuo...
... como uma coisa que continua
Porque não consegue parar.
Uma avalanche
Ou algo do tipo.

Ela não consegue parar.
Nem eu.

Eu fico martelando a mesma tecla
Até que a letra tenha desaparecido
Até que ela esteja escorregadia
Até que ela quebre.

E eu acho que você sabe
E eu acho que você nota
E eu acho que você tira proveito

Você, com a sua tecla inteira
A letra aí
Anti-derrapante...

... Intacta.

Por que você não gosta de mim 
Assim,
Como eu gosto de você?
Por quê?

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

ruan, bukowski e cigarros

   Eu esbarrei num poema do Bukowski. Esbarrei no meu maço de cigarros. Esbarrei em você. É sempre assim, lembra?
   "Cíntia, chega de falar de Ruan, Bukowski e Cigarros! Porra!"
   Esbarrei numa garrafa de cachaça, ouvindo a playlist que fiz com músicas que contam nossa história, ou ao menos, a minha versão da nossa história.
   O poema do velho falava sobre partidas e chegadas e partidas. 
   Confesso que olho seu perfil de vez em quando, mas não há nada o que ver, ele está trancado. Você é tão misterioso, ui.
   Eu havia deletado todas suas fotos e todas nossas conversas do meu celular, apaguei seu e-mail dos meus contatos, mesmo sabendo-o de cor, e pensei que estava livre, sem acesso a você, assim eu poderia fingir que nós nunca acontecemos, que eu nunca te amei; aí meu celular quebrou, e eu voltei a utilizar um aparelho antigo. Abrindo a galeria do mesmo: fotos suas. Prints nossos, de momentos mais doces. Dei de cara com o poema que você me escreveu, que me deixou de pernas bambas. Eu tive que me apoiar numa mesa quando li suas palavras naquele dia, Ruan. Depois fiquei com a calcinha molhada no metrô, roçando minhas coxas disfarçadamente, mordiscando meus lábios para tentar represar todas aquelas sensações; o misto de tesão, preocupação e ternura.
   Foi como uma porrada no estômago ver fotos da sua barriga, das suas pintas, dos seus pés calçando coturnos, dos seus pêlos, mas principalmente, do seu pau. Esse pau aí, sobre o qual você se sentia inseguro, e eu endeusei tanto, que você ficou confiante o suficiente para mostrar para outras mulheres, para usar em outras mulheres. Eu até poderia viver com isso, mas o fato de você ter parado de usá-lo para o meu prazer realmente foi demais para mim.
   Te odeio! Todo dia acordo e tento me convencer de que te odeio. Mas não, eu ainda amo seu olhar de tormenta e o tom da sua pele. Ainda amo suas mãos e seus dedos, e seus dedos segurando cigarros e sua boca, e sua boca soltando fumaça de forma ensaiada, te fazendo parecer um bad boy de um filme adolescente qualquer, e não o big shot da sua série de motociclistas favorita.
   Eu te disse adeus, você me disse adeus, eu voltei. Voltei duas vezes, três... voltei tantas vezes, que perdi as contas! Acho que você também perdeu as contas de quantas vezes disse que nunca mais me aceitaria de volta, e aceitou. Perdemos as contas de quantas vezes agimos feito personagens de um romance decadente, apegados a um amor canalha, ou mero desejo destrutivo. Mas da última vez que te disse adeus, você não retribuiu. Você pensou que eu voltaria. Bem, Ruan, eu não voltei. Meu adeus foi sincero, Ruan. E você não retribuiu ao meu adeus, Ruan! Pro inferno, você e seu maldito pau! Esse pau, que para dificultar mais as coisas, tem veias saltadas e uma pinta, bem do jeito que eu gosto.

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

assombrada

— Você deveria me valorizar mais.
— Talvez. Talvez eu já te valorize demais. Não sei. Só sei que nunca vai ser o suficiente.

sábado, 7 de setembro de 2019

dez pensamentos sinceros sobre ser amada por um cara magro

(Autora: Rachel Wiley. Tradutora: Cíntia Lira.)


1.
Eu digo "sou gorda"
Ele diz: "não, você é linda"
Eu me pergunto porque não posso ser os dois.
Ele me beija
Profundamente.


2.
Meu professor de teatro certa vez me disse
Que apesar do meu talento,
Nunca serei escalada como protagonista.
Nós fazemos peças que envolvem animais cantando
E crianças que voam,
Mas, aparentemente,
Ninguém está disposto a acreditar
Que alguém possa amar uma garota gorda.
Eu sonho acordada
Sobre foder forte com meu namorado em seu gramado.


3.
Pelas manhãs não me sinto bonita,
E enquanto ele ainda dorme,
Eu sento no chão e checo os bolsos de suas calças,
Procurando um motivo, um sinal,
O número de telefone de outras garotas.


4.
Quando damos as mãos em público,
Me pergunto se ele nota os olhares —
Como se ele estivesse segurando um balão em uma calçada lotada;
Se ele nota que minhas mãos agora são feitas de corda.


5.
Querida Cosmo: Vá à merda.
Eu não vou seguir suas dicas
De como dar prazer ao homem que você pensa que eu não mereço.


6.
Ele diz que me ama quando as luzes estão acesas.


7.
Eu consigo sentir os ossos do quadril dele contra a minha mão,
Sinto suas costelas sem pressionar.
Ele não acredita em mim quando digo que ele é lindo.
Às vezes tenho medo de que o dia que ele acreditar, será o dia em que me deixará.


8.
A garota descolada e bonitinha da cafeteria
Acha que nós somos apenas amigos
E flerta por cima do balcão.
Passo duas semanas
Colocando-a mentalmente no meu lugar
Em todas as nossas fotos.
Quando conto isso para ele,
Passamos a tarde tirando novas fotos juntos.
Ele não me deixa apagar nenhuma delas.


9.
A frase "garotas gordas também precisam de amor" pode queimar num incêndio.
Me amar não é um fetiche.
Me achar bonita não é desconstrução.
Eu não sou uma porra de desconstrução!


10.
Eu digo, "sou gorda"
Ele diz: "não. Você é muito mais",
E me beija
Profundamente.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

ele esteve aqui



A imagem pode conter: 1 pessoa, close-upDia 22 de agosto é o dia mais triste do ano. Por que sempre faz sol? Eu não quero ver a luz do dia e nem ouvir os pássaros cantando!
Parece que foi ontem que ele partiu, mas já faz 13 anos. Ele tinha 18 anos, era para a vida estar começando, e terminou ali mesmo. Às vezes penso em tudo que ele não viu, todas as coisas que não viveu, e imagino o que ele estaria fazendo hoje, se tivesse ficado. Eu queria ter conseguido fazer ele ficar. 
Penso nos motivos dele, e concluo, com tristeza, que depois de tantos anos e tantas vidas desperdiçadas, o mundo continua o mesmo. Adultos ainda abusam de crianças, crianças ainda praticam bullying entre si, pessoas ainda usam e descartam umas às outras, pais ainda colocam armas de fogo dentro de casa. Saúde mental ainda é desprezada pela sociedade, pelo estado. A cada 40 segundos uma pessoa tira a própria vida. Ninguém liga. Ninguém tem tempo pra isso! O choque é temporário e superficial.
Ao longo dos anos eu vi a passagem dele por esse mundo ser esquecida. As pessoas pararam de falar nele, os rastros digitais dele foram completamente apagados. Os poemas que ele escreveu se perderam. As roupas que ele usou foram doadas ou apodrecerem. Mas ele permanece dentro de mim. Penso nele todos os dias, mesmo quando tento não pensar. Eu deveria ter feito mais. Mas não fiz, porque não sabia fazer, e essa é uma das culpas que vou carregar até o fim dos meus dias, nos meus braços retalhados e no meu coração sempre sufocado por mãos invisíveis.
Hoje eu só quero que as pessoas saibam que Steve Cassimiro existiu nesse mundo. Que ele sofreu nesse mundo. Se expulsou desse mundo! Ele foi filho de alguém. Ele amou uma mulher. Ele foi amigo, ele foi poeta, ele foi fã de Evanescence, ele teve uma banda. Ele entrou para as estatísticas.
E talvez ele seja esse sol que faz todo dia 22 de agosto. 

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

garantia

No começo da minha adolescência eu entrava em muitas brigas na escola. Todos os dias eu saía na mão com alguém para me defender das humilhações que sofria. Nunca batia em alguém só por bater, eu simplesmente exigia respeito com os meus punhos.
Mas tinha um detalhe: eu só batia em meninos. Nunca fui capaz de bater em uma mulher na minha vida.
Tinha uma garota em especial que eu não suportava. Tudo nela me irritava profundamente, me fazia sentir inferior, e ela provavelmente sentia meu complexo de inferioridade, pois frequentemente me provocava e me ridicularizava na frente das pessoas. Eu ia para cima dela, o suficiente para ela se calar e sair correndo para se esconder, mas nunca tive coragem de agredi-la. Um dia ela me xingou, e de forma quase automática eu a ameacei, disse que se ela não calasse a boca eu iria quebrar a cara dela. Nesse dia ela não correu, não se escondeu — pelo contrário, ela me olhou com um sorriso na cara e disse, na frente de toda a sala: "Vai nada! Você sempre diz que vai me bater e não bate. Você não tem coragem. Eu não tenho mais medo de você". Eu fiquei mortificada por alguns momentos, depois senti o ódio e a vergonha correndo pelo meu corpo. Eu não era de nada e ela sabia. Ela sabia que podia pisar em mim o quanto quisesse, pois sairia impune.
Toda vez que eu volto para ele depois da humilhação e do adeus, eu lembro dessa garota e daquele misto de ódio e vergonha tomando conta de mim.

domingo, 11 de agosto de 2019

daddy issues

Vou confessar que morro de inveja de quem tem pai e mãe para comemorar dia dos pais e dia das mães (nem que seja apenas um dos dois). Não especificamente pai e mãe de sangue ou pai e mãe perante a lei, mas qualquer figura que tenha desempenhado esse papel, que tenha cuidado delas. Pessoas com quem elas podem contar.
Eu me sinto ingrata às vezes — me fazem sentir ingrata:  assim como tantos, o pai de dois dos meus irmãos mais novos os abandonou quando eles eram bebês. Um deles chegou aos 16 anos sem sequer lembrar do rosto do próprio pai. Nunca tiveram amparo financeiro, que o dirá emocional, e isso reflete na vida deles de forma palpável.
O meu pai, por outro lado, não me abandonou no sentido de sumir no mundo. Ele me deu um teto, me deu comida, me deu acesso à escola, à internet, me deu várias coisas ao longo dos anos, mas não me deu gestos de carinho, palavras de apoio, afagos. Eu lembro muito bem como é o rosto dele, especialmente porque parece muito com o meu. Ele sempre me olhou de cima, com dureza, e às vezes, quando me olho no espelho, eu vejo esse mesmo olhar frio me encarando. O meu pai não me abandonou, mas também não esteve presente: "meu nome é trabalho", ele costuma dizer, e continua, "o negócio é ganhar dinheiro, não tenho tempo para esses sentimentalismos baratos".
"Poderia ser pior", então eu não posso reclamar. É o que dizem.
Quando eu tentei suicídio pela última vez, eu desmaiei e fiquei assim por mais de 24 horas. Acordei fisicamente destruída. Não conseguia focar minha visão, não conseguia sustentar meu corpo de pé, meu coração parecia que iria explodir dentro do meu peito, e minha pele queimava. Eu pedi ajuda, e a primeira coisa que ouvi foi um "não acredito que vou ter que passar por isso de novo". Fui enfiada dentro de um carro, e da minha casa até o hospital ouvi palavras difíceis de digerir, sobre como eu o estava atrapalhando. Fui deixada no hospital como uma "coisa". Ali fiquei, dopada e sozinha, cambaleando na cadeira, e quando o hospital me mandou embora, eu não tinha como voltar para casa, pois não conseguia andar sem me desequilibrar. Até o momento, essa é a lembrança mais marcante que eu tenho do meu pai.
Poderia ser pior.
Nem sempre foi assim, eu tenho que admitir. Teve um período da minha vida em que ele não dizia APENAS coisas duras. Quando eu era criança e ele ainda podia me controlar, ditar quando eu podia falar ou não, e o que eu podia falar ou não, havia uma mescla de momentos de tempestade e momentos de calmaria. Tenho algumas boas lembranças; elas só não são o suficiente para eu me sentir "filha" de alguém. Não são fortes o bastante para apagar a minha dor, ou ao menos amenizá-la.
Ano passado o meu pai me chamou de puta. 
Ano passado o meu pai me deu um surra. Socou minha cara e o meu estômago, e embora eu tenha, por instinto, revidado os socos, hoje, toda vez que eu ouço os passos dele se aproximando, eu sinto medo. Sinto a adrenalina crescendo dentro de mim, um desespero se espalhando pelas minhas células. Involuntariamente prendo minha respiração e cerro os punhos, esperando  pelo pior. E quando ele passa sem falar comigo, sem notar minha existência, eu respiro aliviada, mas começo a tremer de corpo e alma. Nesses momentos eu sinto como se eu fosse desmoronar. Demora algum tempo até o meu coração voltar ao seu estado normal.
Mas poderia ser pior, e assim sendo, eu sou uma ingrata.


Feliz dia dos pais.


segunda-feira, 17 de junho de 2019

parece amor, mas é doença

Noite passada eu não sonhei com ele
Foi a primeira vez em alguns meses
Tive, entretanto, uma terrível dor de garganta
No meio de sonhos entrecortados
Sobre coisa nenhuma
Ouvi uma voz robótica

É câncer

Pensei, culpada,
Em todos os cigarros que fumei
No último ano
Em cada tragada dedicada
A Ele

Em todas as pontas
E as cinzas
Transbordando
Numa caixa
Esperando para virar arte
Contemporânea

É câncer

Prometi ao Universo
"Se não for câncer
Nunca mais acendo um cigarro"

Nunca mais acendo dois, três
Madrugada adentro
Ao som de Jeff Buckley e Vanilla Fudge
Sempre as mesmas canções
E a voz dele recitando Bukowski
Numa rebeldia ensaiada
E um inglês mediano

Ele é bom demais para ler Bukowski em português
E eu gosto disso nele

I will never see it again

Acordei, atrasada 
E mole
Atrasada e sem pressa
Atrasada e de garganta mais arranhada do que um disco velho

Acordei e permaneci de olhos fechados

O pensamento foi logo nele

Meus dedos tatearam
Alcançaram o maço
de cigarros
Instintivamente, sacaram um
Levaram-no à minha boca
E o acenderam com o
Isqueiro vermelho

Meus lábios semicerrados tragaram com fúria teatral
Aprendi com ele

Jeff Buckley começou a gemer

Don't fool yourself

No quarto fechado
Janelas fechadas
Cortinas fechadas
A fumaça se instalou, primeiro na minha garganta dolorida
Então
Invadiu meus pulmões
Meus cabelos
Minhas roupas
E meus livros
Como ele

É câncer.

domingo, 26 de maio de 2019

o corpo perfeito


Positividade corporal deveria ser, antes de qualquer coisa, uma cruzada por auto-conhecimento e auto-valorização. Ao invés disso, se tornou um movimento com discursos vazios que serve bem à máquina capitalista (contra a qual deveria lutar), e que pode ajudar indivíduos num primeiro momento, mas que pela falta de profundidade não produz mais do que um efeito paliativo em pessoas que não foram ensinadas a refletir sobre aquilo que consomem e reproduzem, como se a vida fosse uma contínua brincadeira de telefone sem fio, na qual, a cada vez que uma mensagem é repetida, perde um pouco da consistência, do significado, da alma... 
Dentre os bordões contraditórios quando falamos em auto-aceitação*, um dos que mais me incomoda é o famoso: "eu não vou perder a minha sanidade em busca do CORPO PERFEITO".
O que é "perfeito"? Perfeito, de acordo com o dicionário, é algo "em que não há defeitos", "belo, formoso", "que apresenta todas as características DISTINTIVAS", e acima de tudo, algo "COMPLETO"! Na contramão, "imperfeito" é algo a que "falta alguma característica para ser pleno", algo "incorreto", "defeituoso".
O que querem dizer com esta frase é que "abriram mão" de ter o corpo PADRÃO, o corpo MIDIÁTICO. Certo! Mas quando interligam os termos "corpo padrão" e "corpo perfeito", e no outro extremo colocam o próprio corpo "despadronizado" como um corpo IMPERFEITO, acabam por reafirmar a ideia vigente de que o corpo vendido pela mídia é o IDEAL, que esse tipo de corpo é mais humano, é completo, e que a nós, que não cabemos neste padrão, só nos resta nos CONFORMARMOS com nossos corpos "imperfeitos", "inadequados", "incompletos". Tal pensamento não só artificializa a luta — também alimenta a cultura capacitista, que dita que apenas um tipo de corpo é funcional, realmente humano e digno de autonomia... Uma cultura que afirma que corpos com deficiências e doenças (especialmente doenças crônicas) são defeituosos, errados.
Aceitação, no contexto da positividade corporal, não é resignação (submissão ao sistema ou a movimentos oportunistas); não é ver o próprio corpo como um fardo, que já que você não consegue se livrar, só te resta carregar. Aceitar-se é ACOLHER-SE, PERMITIR-SE.
Palavras têm poder. Elas moldam como indivíduos pensam, vivem, se enxergam e como tratam uns aos outros. Uma criança, por exemplo, reproduz palavras que ouve dentro de casa, ou nas mídias que consome. Por isso temos que retirar certas expressões e palavras do nosso vocabulário, pensar muito bem em tudo que dizemos, e como isso afetará as pessoas ao nosso redor. Temos que pensar em como nossas palavras oprimem o próximo!
Deixar de buscar o corpo "padrão" e priorizar a saúde mental é um grande passo, mas precisamos ir além do discurso e mudar a forma que nos enxergamos e que enxergamos o próximo. O único jeito de o movimento ser efetivo a longo prazo, e servir a corpos realmente marginalizados, é destruindo os conceitos de beleza e valor impostos pela sociedade. Precisamos tirar esse corpo padrão (e inexistente) desse altar construído pelo capital... deixar de usá-lo como referência nos nossos discursos e nas nossas lutas (tanto na esfera individual, quanto na esfera coletiva)! Caso contrário, nunca nos veremos como seres plenos de verdade; não nos veremos como corpos belos e dignos, e constantemente voltaremos ao estado de auto-ódio impulsionado pela mídia, que nos ensina a nos desrespeitar e desrespeitar o próximo.
Não existem corpos imperfeitos. Cada corpo tem suas particularidades, suas próprias marcas e formas, o que garante que sejamos seres únicos. Todos os corpos são completos, são totalmente humanos, e são belos. Se acolher de verdade é reconhecer isso. É saber que não importa o quão distante você esteja do corpo "padrão", o seu corpo continua sendo um fruto perfeito da Natureza, continua tendo valor, continua sendo lindo. 
Se amar é, antes de tudo, se conhecer. Observar-se nos mínimos detalhes, sem referências externas, e se PERCEBER completamente. Se compreender como um ser humano digno de amor e de respeito, independente das marcas que seu corpo carregue. 
Se amar é ser capaz de ver a própria beleza, e saber que a beleza de outras pessoas não anula a sua, e vice-versa, pois existem inúmeras formas de SER (e SER BELO/A). E acima de tudo, se amar é se dar permissão para viver plenamente, satisfazer os próprios desejos, ser bom consigo mesmo. 
Vá além do discurso de contenção de auto-ódio. Olhe-se com gentileza de verdade. Com a mesma gentileza que olharia para outra pessoa. Veja suas dobras, suas formas, sua textura, os diferentes tons da sua pele, suas cicatrizes, manchas, marcas e quaisquer outras características que te ensinaram que é errado possuir, e entenda que nada disso te diminui enquanto ser humano, que nada disso te torna uma pessoa incompleta (muito pelo contrário, te torna mais pleno/a). Não se limite a se valorizar "apesar da sua aparência". Sim! Ser uma "boa pessoa" é fundamental. Mas aparência importa sim, e a sua é perfeita. Treine seu olhar para reconhecer isso. Veja a beleza de tudo que te constitui, primeiro isoladamente, e depois como um todo. Repita isso todos os dias, se veja todos os dias, se ache lindo/a todos os dias. Exalte sua perfeição todos os dias. Você é um ser humano completo.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

a acessibilidade do corpo gordo

AVISO DE GATILHO: contém menções à violência sexual e à violência médica
Acessibilidade. De acordo com o Google, acessibilidade é a “facilidade na aproximação, no tratamento ou na aquisição”. Ser gordo numa sociedade gordofóbica é não ter facilidade alguma na aproximação, aquisição e muito menos tratamento. Tudo, de espaços a conceitos, é projetado pensando em corpos magros. Nada é pensado para atender corpos gordos, e a sociedade não só não nos deixa esquecer disso, como também nos culpa, afinal, “é só emagrecer”. Ainda assim, o debate sobre acessibilidade para pessoas gordas continua sendo soterrado, mesmo dentro da chamada "militância gorda" e, quando surge algum discurso a respeito, é dos mais rasos. Muito se fala em roupas, por exemplo, mas raramente sobre a roupa como um direito básico, e sim sobre roupa como objeto de consumo. De fato, roupa é um fator importante na construção de identidade dos indivíduos, mas antes de conquistarmos o direito de ter estilo, temos que conquistar o direito de todas as pessoas gordas se vestirem para cobrir a nudez e ao menos conseguirem sair de casa.
O que temos no mercado de moda plus size atualmente é claramente insuficiente para atender às necessidades da comunidade gorda, mesmo as gordas menores, visto que o mercado se concentra no eixo Rio-São Paulo e no sul do país. Porém, é importante pensar que poucas lojas e marcas sequer fabricam roupas acima do manequim 54, sejam bonitas ou feias. Existem poucas marcas brasileiras que se propõe a atender o público 60+ e, mesmo essas, geralmente se limitam ao tamanho 66.
Enquanto grande parte dos influenciadores digitais do “universo gordo” focam na própria frustração por não encontrar determinadas peças de roupas (ou roupas "bonitas"), existem pessoas que não têm sequer acesso a calcinhas ou cuecas, simplesmente porque não tem quase ninguém produzindo para seus tamanhos. E, quando produzem, o fazem por preços exorbitantes, justamente para abusar do desespero desse público excluído, sem a mínima consciência sobre o fato de que pessoas gordas são rejeitadas no mercado de trabalho. E aí, inevitavelmente, entramos em um círculo vicioso, já que, mesmo que uma pessoa gorda conseguisse, de alguma forma, se inserir no mercado de trabalho, ainda assim não teria roupas para sair de casa e exercer sua função.
Igualmente limitado é o debate sobre transporte público: o aspecto mais comentado por todas as pessoas que abordam o tema são as catracas e a dificuldade de passar por elas, quando para uma parcela considerável da comunidade gorda, não é uma questão de dificuldade e sim de impossibilidade, além do constrangimento de pedir para descer pela frente ou entrar por trás, já que muitos motoristas e cobradores proíbem que isso seja feito, pelo simples prazer de exercer poder sobre alguém.
Infelizmente a problemática do transporte público vai muito além da bendita catraca. Os ônibus, os espaços e as coisas estão cada dia menores, sendo este um retrato do achatamento (literal) da classe trabalhadora. Para a pessoa gorda é difícil transitar nos corredores dos ônibus e ainda mais sentar, já que os bancos duplos não contemplam nem os corpos de duas pessoas dentro do padrão corporal brasileiro (entre os manequins 44 e 48), que dirá o da pessoa gorda. Como se o desconforto físico não fosse o bastante, a reação dos companheiros de sofrimento diário nunca é positiva. As pessoas agem como se o motivo do ônibus estar lotado fosse de uma única pessoa gorda que está dentro dele. Como se, caso essa pessoa não estivesse ali, todos fossem se sentir fisicamente confortáveis. As pessoas resmungam, cutucam, empurram, se recusam a ceder espaço, tanto no sentido de compartilhar o ambiente quanto de deixar o banco reservado livre para a pessoa gorda. Muitas pessoas gordas sofrem até mesmo agressões físicas em transporte público, pelo simples fato de serem gordas.
Em horário de pico, a situação fica ainda pior. Pessoas gordas são impedidas de entrar em vagões de trem e metrô. Pessoas magras e não-gordas fazem uma espécie de barreira humana, deixando bem claro que a pessoa gorda não deveria estar ali. Alguns até dão voz a este pensamento. Não são raras as vezes que vociferam que "gordos não deveriam andar de ônibus", que "deveriam pagar duas passagens" ou ainda que "deveriam andar de táxi". Tudo isso somado à catraca, gera pânico em pessoas gordas.
Enquanto pessoas gordas com algum poder aquisitivo de fato excluem o transporte público de suas vidas, aderindo a aplicativos como Uber, ou mesmo comprando um carro, a parcela mais pobre e marginalizada da comunidade gorda deixa de viver. Eu mesma experimentei e continuo experimentando tal pânico sempre que tenho que sair de casa. Momentos antes de sair, o meu coração acelera e fico inquieta, porque sei que serei torturada física e emocionalmente no transporte público. Após ficar presa em uma catraca, eu também deixei de usar ônibus por muitos anos e, sendo este o meu único meio de transporte viável, parei de sair de casa, a não ser quando conseguia carona de carro ou quando o destino era próximo e eu podia ir a pé. Isto me rendeu um isolamento indescritível.
Contudo, mesmo quem goza de recursos para se vestir e transitar pela cidade esbarra em diversas questões, como por exemplo: para onde ir? Quais espaços lhes cabe? Como refrear a violência de pessoas magras e não-gordas?
Uma das discussões mais imprescindíveis é, definitivamente, a falta de acesso a saúde imparcial e humana; a violência médica praticada contra determinados corpos. Acredito que toda pessoa gorda já tenha sido moralmente repreendida por médicos ao menos uma vez na vida. Entrar sentindo dor de cabeça e sair com um encaminhamento para bariátrica é de praxe. Muitos médicos abertamente se recusam a atender pessoas gordas a não ser que elas emagreçam ou as atende de mal jeito, medicando-as e dispensando-as sem sequer examiná-las a fundo, seja por mero descaso ou pelo fato de que a gritante maioria dos hospitais não têm equipamentos para atender corpos gordos, desde balanças e macas, a aparelhos de raio-X. Com isso, muitas doenças não são diagnosticadas até que seja tarde demais para tratar, levando a quadros que poderiam ter sido evitados com o mínimo de perícia. Também não são poucos os relatos de pessoas gordas que passaram por cirurgias invasivas sem explicações e sem anestesia, simplesmente porque o médico "achou" que não faria efeito por causa do peso do paciente.
Mais vulneráveis ainda estão as pessoas que querem engravidar e as que de fato engravidam. As primeiras são reduzidas a pó quando levantam a possibilidade de uma gestação e as segundas são tratadas com completa violência física e psicológica já que, para médicos, essas pessoas estão sendo irresponsáveis. A violência obstétrica contra pessoas gordas é recorrente e alarmante. Por nove meses essas pessoas são atacadas com sentenças de morte, tanto para elas quanto para os seres que carregam. Entre os relatos chocantes que recebi, o que nunca me saiu da cabeça foi o de uma mulher que teve um instrumento médico violentamente introduzido em sua vagina (enquanto estava grávida) durante uma consulta, o que, para todos os efeitos, configura estupro, mas passou impune, pois pessoas gordas também não têm respaldo legal em nenhuma instância.
Por causa da violência obstétrica muitas pessoas gordas desenvolvem depressão pós-parto e síndrome do pânico que perdura pelo resto de suas vidas e, mais uma vez, são negligenciadas em consultórios médicos, já que para muitos psiquiatras e psicólogos emagrecer também é a cura para a depressão. Isso quando temos “apoio” psicológico, o que não é comum, embora seja tão necessário.
Além dessas questões de maior urgência, temos ainda inúmeras restrições no nosso dia a dia. Se não há estrutura nem para nossas necessidades básicas, imagina no que diz respeito a educação formal, diversão e sexualidade. As pessoas magras e não-gordas sequer pensam em gordos como seres humanos que merecem uma vida plena.
Pessoas gordas precisam pensar e pesquisar muito bem todos os espaços que pretendem frequentar ou estarão sujeitas a constrangimentos. Mesmo dentro de suas próprias casas, especialmente casas de aluguel, muitas pessoas gordas não cabem dentro de seus banheiros, ou sofrem com vasos sanitários pequenos e frágeis. O mesmo acontece em banheiros de espaços coletivos, desde um restaurante a uma universidade.
Por falar em universidades, a pessoa gorda também não tem acesso a instituições de ensino, que em sua maioria não estão aptas a receber corpos gordos, seja pela gordofobia implícita ou explícita dos professores, dos colegas de sala, dos textos didáticos e, talvez o principal, as temidas carteiras que causam hematomas, dores, desconforto...
Como sempre é abordado, os espaços raramente têm cadeiras que aguentam nosso peso, seja em salões de cabeleireiro, festas, baladas, entrevistas de emprego, cinema ou teatro. Porém poucos falam que muitos ambientes têm até mesmo portas estreitas, que só são possíveis de entrar de lado — quando isso é possível! Menos pessoas ainda falam sobre brinquedos de parques de diversão que ou não suportam nosso peso ou têm cintos de segurança que não chegam nem perto de fechar no corpo gordo. E absolutamente ninguém fala sobre a preocupação com camas de motel! E por que não falam? Porque falar sobre isso seria admitir que temos necessidades diferentes das pessoas magras... e fomos ensinados que isso é errado, que isso nos faz fracos!
O objetivo de tudo isso é a invisibilização dos corpos gordos. Pessoas magras odeiam o corpo gordo e acham que se não construírem nada que nos caiba, nos eliminarão de vez. E muitas vezes isso funciona. Muitas pessoas gordas se trancam dentro de casa, definham em solidão e acham que a sociedade está certa, que a culpa É delas, quando as coisas devem ser feitas visando o conforto das pessoas, e não o contrário.
Existem muitas formas de matar uma pessoa e a forma mais eficaz da sociedade de matar a pessoa gorda é por meio do suicídio. E sabe o que mais não é acessível para pessoas gordas? Enterro digno.
Recentemente tivemos a notícia de uma mulher gorda que não conseguiu ter o corpo enterrado porque a cova não era adequada. A cova! Isso sem contar que até caixões para pessoas gordas precisam ser encomendados e a cremação se mostrou problemática em diversas situações.
Quando eu era mais nova, muitas vezes eu sentia pânico de morrer, sabendo que zombariam do meu corpo. Imaginava as pessoas me embalsamando e comentando, sem o mínimo respeito, sobre o tamanho e as formas do meu corpo. Pensava que seria difícil encontrar um caixão do meu tamanho, que seria impossível me cremar. É algo mórbido e horrível que ninguém deveria pensar, mas eu pensei e certamente outras pessoas também já pensaram.
São muitas as coisas inacessíveis para pessoas gordas, mas no fim tudo se resume ao maior de todos os acessos que nos é negado: dignidade. A sociedade não nos dá dignidade nem após nossas mortes! Anulam nossa humanidade e desrespeitam nossos corpos gordos até quando não existe mais vida neles.
Muitos podem perguntar: “o que você espera que seja feito sobre isso?” e os mais intolerantes podem até dizer: “se está incomodada, emagreça!”. Antes de tudo, temos que abolir o pensamento de que indivíduos devem mudar para se adequar às coisas. A ideia de que uma pessoa deva emagrecer para caber em espaços e coisas que são projetáveis e moldáveis para o benefício humano é estapafúrdia. Uma pessoa gorda tem o direito de sê-lo e deve ser respeitada em todos os âmbitos de sua existência sem a pressão de mudar seu corpo.
Ao longo da história da humanidade ficou comprovado que seres humanos são completamente capazes de pensar em soluções para amenizar problemas cotidianos. A questão é que, quando se trata de acessibilidade para minorias, não só em relação às pessoas gordas, mas também às pessoas com deficiência, simplesmente não há empenho algum para que essas soluções sejam encontradas. Colocam o dinheiro (vide o sucateamento de comodidades) a frente do bem estar de seres humanos. É preciso que essas pessoas passem a ser vistas com empatia, passem a ser enxergadas como seres humanos que merecem respeito e acesso a tudo que está disponível para o resto da sociedade. Ao público geral cabe usar seus privilégios para cobrar que a projeção dos espaços seja mais justa e, a quem está à frente da construção da sociedade (engenheiros, designers, médicos, professores etc), cabe uma visão sensível sobre as necessidades dos mais diversos tipos de corpos, inclusive o corpo gordo — vivos ou mortos!

terça-feira, 7 de maio de 2019

a solidão da pessoa gorda


   Quando se fala em solidão da pessoa gorda, a primeira, e geralmente única coisa que abordam, é a afetividade no sentido romântico. Esse é um aspecto urgente e cruel da nossa solidão, mas não é o único, especialmente para quem foi uma criança e/ou adolescente gorde.
   Tudo começa dentro de casa, com a rejeição de pais ou responsáveis que ridicularizam crianças gordas sempre que têm uma chance, fazendo-as sentir culpa ao comer, desencorajando-as em todos os sentidos, mas especialmente, reafirmando a lógica do "você não tem corpo para isso" e "a culpa é sua, que não se esforça para emagrecer", ou ainda, comparando-as a todo momento com outras crianças, seja irmãos, primos ou colegas. Isso não só afeta a auto-estima estética e intelectual dessas crianças e adolescentes, como gera o sentimento de competição e até mesmo rancor em relação a quem está sendo usado como "exemplo", levando a rivalidade permanente entre irmãs/irmãos e primas/os.
   É muito triste quando as pessoas que mais deveriam te amar, incentivar e proteger, te negam afeto e só têm coisas ruins para dizer sobre você e o seu corpo. Isso gera uma distância emocional que com o tempo é impossível de transpor, o que causa isolamento familiar e afeta toda a vida desses indivíduos, em particular a forma como se relacionam com as outras pessoas e com o mundo.
   Para além disso, uma criança gorda é excluída de brincadeiras e repelida de grupinhos, seja na escola ou em ambientes recreativos. E mesmo crianças sofrem com a falta de acessibilidade. Enquanto criança gorda, muitas vezes me impediram de usar brinquedos de festas ou parques porque "não suportariam meu peso", ou porque de fato meu corpo não se encaixava nos mesmos. Então eu ficava de lado, enquanto as outras crianças brincavam e criavam laços.
   Isso sem contar as piadas e agressões físicas. Crianças muitas vezes conseguem ser mais cruéis do que adultos, ainda mais porque têm permissão social para sê-lo. Os adultos veem o comportamento tóxico de crianças, e ao invés de repreender, acham "engraçadinho", "bonitinho", "coisa de criança".
   Não sendo ensinadas a respeitar as diferenças, crianças entram na adolescência sem um pingo de empatia.
   Adolescente gorda, eu fui rejeitada não apenas por pessoas que eu tinha interesse romântico, mas também pelas pessoas que me criavam, pela minha família estendida, e pelos grupos de meninas. Tive que atravessar todas as mudanças do meu corpo e da minha psique sozinha, tentando descobrir o que era normal e o que não era, e como me portar diante de tais mudanças.
   Eu era a única gorda em uma sala cheia de meninas que praticavam a feminilidade padrão, e para piorar, era dois anos mais velha do que elas. Em alguns momentos elas até me permitiam fazer parte do grupo, mas no primeiro desentendimento que tinha (mesmo quando eu não estava envolvida na briga), eu era a primeira a ser excluída, ou obrigada a tomar partido, sob pressão, pois independente de quem eu escolhesse, seria "punida" quando elas voltassem a se falar.
   Eu era a pessoa que as ajudava nos deveres de casa, cedia minha casa para elas ficarem com meninos que haviam me rejeitado (e elas sabiam), e até vigiava o portão para garantir que suas mães não as pegasse fazendo isso. Eu era a pessoa que escrevia poemas apaixonados para elas entregarem para os namorados. Eu tirava fotos delas, nunca aparecendo nas mesmas. Era a pessoa que ouvia e nunca era ouvida. Nunca fui a melhor amiga. Nunca era convidada para as festinhas e passeios, nunca era escolhida nas atividades de educação física.   Mesmo depois, já no fim da adolescência, ou mesmo nos primeiros anos da vida adulta, eu era a pessoa que garotas usavam para se sentir melhor sobre seus próprios corpos, para silenciar suas inseguranças. As observava se olhando no espelho, erguendo a blusa e apertando gorduras inexistentes, enquanto diziam "nossa, eu estou tão gorda! Olha isso!", e então me olhavam furtivamente. E, inevitavelmente, quando eu as irritava de alguma forma, ouvia que elas nunca gostaram de mim mesmo, e que eu não passava de uma "gordona do caralho". Isso fez com que eu me distanciasse de mulheres.
   Ao longo da vida tive vários amigos homens, e vale ressaltar que só tenho irmãos. Me masculinizei para "ser um dos caras", e assim ser aceita. Mas tais amizades também me traziam solidão, pois as vivências divergiam muito. Eles não eram capazes de entender muitas das coisas que eu vivia. Além disso, os via idealizando mulheres magras, padrão, "femininas", tudo que eu não era, sabendo que aquele era o pensamento coletivo, o que reforçava a minha certeza de que eu nunca seria amada, por não ser como essas garotas que eles queriam. Também era excluída de situações que eu não era "masculinizada o suficiente" para participar, e os via frequentemente constrangidos quando alguém achava que tínhamos envolvimento amoroso ou sexual.
   Há também a solidão de nunca ver pessoas como nós nos ambientes que frequentamos, ou mesmo na mídia. Não porque existam poucas pessoas gordas no mundo, mas porque somos invisibilizados, expulsos dos ambientes, e dessa forma poucos ousam sequer sair de casa para ocupar tais espaços.
   Essa dinâmica nunca muda. Os anos passam, as figuras mudam, mas a forma que a pessoa gorda é tratada por quem a rodeia permanece.
   No ambiente de trabalho, quando conseguimos emprego, temos que lidar com superiores hierárquicos e colegas de trabalho que continuam nos usando para se sentir melhor consigo mesmos, e agora, não podendo usar de violência física para nos agredir, abusam de um comportamento passivo-agressivo e criam um meio tóxico, sempre dando dicas de dieta, fazendo "piadas" e recriminando nossos corpos. Se reclamamos, estamos exagerando.
   Não encontramos apoio familiar, nem de amigos, e muito menos apoio profissional, já que psicólogos também recriminam nossos corpos.
   Uma pessoa gorda tem, por fim, toda espécie de afeto negado, ou no mínimo limitado. A solidão da pessoa gorda é a solidão no sentido mais pleno da palavra. É tão grande, que se torna tangível... fisicamente dolorosa.

quarta-feira, 1 de maio de 2019

eu prometi que esse seria o último maço

Minha cabeça está cheia
Meu coração também
Meus pulmões estão cheios
O cinzeiro está transbordando


Eu estou poluída
Por você

Feito fumaça
Tu entra
Se instala
Em todos os espaços

Você some
Mas teu cheiro fica
O gosto fica
A necessidade fica
O veneno nunca sai

Dos meus prazeres nocivos
Você é o pior

terça-feira, 30 de abril de 2019

linda


Linda. Dizem que eu sou linda.
Por muito tempo isso era tudo que eu queria ser. Achei que mudaria todas as coisas...
A imagem pode conter: uma ou mais pessoasEu sou linda quando não passo pela catraca, e quando fico em pé no ônibus, porque os bancos estão do outro lado da roleta. Sou linda quando não me deixam entrar no vagão do trem, linda enquanto espero um que venha mais vazio: dois, três. Eu sou linda nos provadores minúsculos de lojas plus size, e linda suada e vermelha, depois de provar inúmeras roupas e nenhuma passar pelas minhas coxas ou pela minha barriga. Sou linda quando entrego currículos e nunca sou chamada para uma entrevista. Sou linda quando tremo de dor por causa da enxaqueca e não procuro um médico, pois sei que haverá violência moral. Sou linda quando psicólogos se recusam a me ajudar, a menos que eu emagreça. Sou linda quando não tenho comida, porque não tenho emprego, e as pessoas acham bom, "assim eu emagreço". Sou linda me espremendo em cadeiras e macas, sou linda coberta de hematomas causados pelos espaços que não contemplam meu corpo, sou linda quando a criança no mercado olha para mim, ri e me xinga. Sou linda quando dizem que eu sou um monstro e deveria morrer. Sou linda quando me dizem que eu sou foda pra caralho, mas "não daria certo entre nós".
Eu grito: "me deixem viver!"
Respondem: "você é linda".

domingo, 7 de abril de 2019

o testamento do Peixe


fotógrafa: Ana Di Castro

O que será que incomoda mais nessa foto?

Gorda sorrindo? 
Gorda brilhando? 
Gorda sendo sexy? 
Gorda com vida sexual? 
Gorda com gorda? 
GORDAS! 

"É pornografia! Temos que preservar nossas crianças!" 

Em seus quartos, cubículos e banheiros eles gritam, arrancando os próprios cabelos:

Gorda e puta! Mas puta virgem, porque ninguém te quer. Vulgar, histriônica! Se você se ama, por que se corta? Se você se ama, por que precisa da aprovação dos outros? Hein? Responde, aberração! É feliz nada! Faz isso na internet para compensar o que falta na vida! Gorda doente! Doente porque eu sou doente! Infeliz porque eu sou infeliz! Se eu, que fiz bariátrica e emagreci não me aceito, até parece que ela vai se aceitar! Tudo mentira! Se aceita porque não tem coragem de mudar! Preguiçosa! Faz o que da vida?! Eu malho 5 vezes por semana para ter esse corpo! Não como pizza, não tomo refrigerante, você não vai fazer isso na minha frente não! Feminista esquerdista filha da puta! 

O Peixe me olha...

O que incomoda mais é o glitter, que depois vai parar no oceano. A consciência até pesa.

terça-feira, 26 de março de 2019

o copo

Encarei o copo demoradamente, sabendo que seria muito bom. Meu corpo ficaria anestesiado, e por algumas horas, nada importaria. Então eu dormiria. Não o sono agitado de sempre, mas uma espécie de coma temporário, capaz de me tirar do mundo e da minha cabeça.
No ímpeto, levei o copo à boca, uma, duas, dez vezes, parando sempre antes de ele tocar meus lábios. Meus dedos trêmulos e escorregadios seguraram o copo a poucos centímetros do meu nariz, o cheiro do conhaque me instigando.
Passei a maior parte da vida bebendo para amenizar a minha dor. Uma garrafa de vodka por dia, e nem sempre era o suficiente.
"As pessoas não querem saber disso, Cíntia. Elas não precisam saber disso". Queria ser  linear, com uma vida sempre colorida, sorrisos e esperança em excesso.
Coloquei o copo de volta na mesa, uma, duas, dez vezes, ouvindo o baque contra a madeira.
Será que eu queria mesmo?
Imersa em desesperança, a irritabilidade crescendo, repeti o ritual por muitas horas, a mente e o corpo em conflito, desejando e repelindo o conforto líquido. Vislumbrei meu futuro. 
Nós sabemos onde tudo isso leva. A loucura e a inércia tomam conta. São dias, semanas e meses de cama, de vômito, de suor e culpa. Sangue e internação.
Ser forte nos bons momentos não é tão difícil. Eu sou forte o suficiente para manter o controle nos momentos em que o corpo dói de tanto desespero? Nos momentos em que a esperança parece uma tolice?
Não posso ser sempre positiva, porque a vida não funciona assim. Eu não sou uma influenciadora digital, sou um ser humano.
Acendi um cigarro. Senti as lágrimas grossas rolando pelo meu rosto.
Uma das lâmpadas do meu quarto queimou, mas ao menos ainda tenho energia elétrica. Meu estômago ronca de fome. Tive que largar o meu curso. O meu quarto continua mofado, sem móveis... Emprego não tem, e dizem me amar, mas nunca me querem o suficiente para transformar palavras em atos.
E eu, me amo o suficiente para transformar palavras em atos?
Joguei o conhaque na pia do banheiro, e o observei descendo rapidamente pelo ralo. 
O que se tira disso?
Nada.
Hoje eu não posso levantar ninguém, porque estou usando todas as minhas forças para levantar a mim mesma. 

sábado, 9 de março de 2019

viver

Penso em suicídio quase todos os dias.
Eu não deveria dizer isso, né? Não é isso que vocês querem que eu diga. Querem que eu diga que sou feliz, querem que eu dê a certeza de que tudo vai ficar bem.
A maioria dos profissionais de saúde mental que passou pela minha cabeça tentou me fazer emagrecer. Estavam sempre conectando minha depressão ao meu corpo, sempre forçando a ideia de que um corpo magro consertaria o problema dentro de mim. E por mais que eu tenha, sim, desejado, por muitos anos, um corpo magro, mesmo naquela época eu já sabia que esse não era o remédio para o que me sufoca.
Meu maior problema, a origem dos meus transtornos, nunca foi meu corpo.
Nunca disse que sou feliz, inclusive, no princípio, rebati tal percepção. Até que desisti de contrariar meus seguidores. As pessoas me dizem "queria ser feliz como você". Eu, que nem acredito em felicidade. O conceito de felicidade da sociedade é uma coisa estática, tão artificial quanto flores de plástico. As pessoas querem SER felizes, independente do que aconteça. Ninguém É feliz. FICAMOS felizes às vezes, dadas as oportunidades. E são tão poucas, numa sociedade doente, opressora, escravizadora...! Eu fico contente às vezes. Sorrio às vezes, gargalho às vezes, gozo sempre, em breves momentos. A alegria, diferente do estado permanente de felicidade que se busca, é efêmera, mas é real.
Eu amo meu corpo. Amá-lo mudou minha relação comigo mesma e com outras pessoas; me dá mais energia e vontade de lutar pela minha vida e pelo mundo. Mas amar meu corpo não mudou a sociedade. Não mudou a forma que sou tratada por ela. O mundo continua girando, e hoje sou mais humana do que antes. Eu sinto as coisas como sempre senti, e mais um pouco, porque agora eu sei quais são os meus direitos: e eles continuam sendo negados.
Eu luto contra meu lado auto-destrutivo, contra os meus impulsos. Luto contra a violência da sociedade, enquanto dizem que eu devo me matar. Sinto a força brutal dessa luta na minha mente, no meu corpo!
Penso em suicídio toda noite que me contorço de solidão, e nos dias que eu não consigo emprego. Penso em suicídio quando lembro todas as coisas sádicas que me fizeram. Penso em suicídio quando acordo de um pesadelo no qual meu corpo é violentado, o coração acelerado e o pânico se espalhando pelo meu sangue. Penso em suicídio entre as paredes mofadas do meu quarto, sentindo o mofo me adoecer. Penso em suicídio quando não tenho o que comer, e nem dinheiro para sair. Penso em suicídio quando olho para as pessoas e vejo que elas não querem mudar, que estão conformadas com o sistema que as aprisiona. Penso em suicídio quando sinto toda a dor que existe no mundo.
A vida é luta. Resistência. Cansaço!
Eu penso em suicídio mas não quero morrer! Penso em suicídio porque não me deixam viver!

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

das coisas que você não sabe

você nunca vai saber das noites que eu passei acordada
de todos os cigarros transbordando no cinzeiro improvisado
enquanto eu prometia parar de fumar
parar de pensar em você.... 

das promessas em vão

você nunca vai saber da agonia da pele em chamas 
o seu olhar inocente na mente
suas palavras dançando sobre mim 
como insetos numa noite infernal de verão
o misto de compreensão e raiva 
ardendo nos meus olhos esfumaçados

você nunca vai saber das tardes desperdiçadas
do dedo no gatilho, hesitante e cheio de remorso
nunca vai saber a sensação do disparo quente 
nem da velocidade do projétil atingindo o meu cérebro em cheio

nunca vai saber do vazio que fica depois de tudo
no coração e no crânio dilacerados

você nunca vai saber da solidão que torna tudo inútil
ou da morte da esperança
dos poemas rasgados e queimados, só por garantia

você nunca vai saber do meu desejo
de ser o seu cachorro
ter sua lealdade
o rabo balançando de contentamento
pelo afago

você nunca vai saber de todas as vezes que eu chorei
gemendo seu nome

te chamando, chamando
sem nunca ser ouvida
você nunca vai saber
você nunca vai saber

você nunca vai saber...