terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Juventude sugada: recortes e padrões das relações entre adolescentes e pessoas adultas

(aviso de gatilhos: menções a solidão da pessoa gorda, pedofilia, violência sexual, violência psicológica, violência física)

Nota: os cards complementam o texto!


Eu fui uma pré-adolescente sonhadora, carente, com uma sexualidade precocemente aflorada... e sem supervisão ou direcionamento. 
Talvez por influência das novelas que eu assistia compulsivamente, eu sempre quis amor. Queria namorar. Sendo uma menina gorda, isso parecia muito distante para mim. Enquanto eu via minhas colegas magras ficando e namorando meninos da nossa faixa etária (literalmente via, porque eu era a ponte para que isso acontecesse sem que suas mães descobrissem, cedendo minha casa e minha vigilância), trocando cartinhas (às vezes escritas por mim) e sendo levadas a encontros em parques de diversões, eu era assediada por homens tão velhos quanto o meu avô e rejeitada por todos os meninos ao meu redor. Eu ainda não havia lidado com aquela vozinha na minha cabeça dizendo que eu também gostava de meninas, o que de qualquer forma não teria me trazido nada palpável, porque como aprendi mais tarde, meninas e mulheres rejeitam corpos gordos até mais do que muitos homens. Eu assistia minhas colegas beijando, assistia minhas novelas mexicanas e escrevia no meu diário, como um clichê ambulante, esperando que um dia chegasse a minha vez, mas temendo que isso nunca acontecesse.
Em todos os lugares, especialmente em casa, eu ouvia que se não emagrecesse, ninguém iria me querer além daqueles velhos que me diziam absurdos pelas ruas desde os meus 9 anos, o que me causava profundo nojo, mas fazia minha mãe rir.
Eu pensava que teria sorte se um dia fosse beijada. Eu tinha medo de morrer sem amor. De morrer virgem.
Até que descobri a internet. Muitos anos atrás, anonimato era basicamente uma regra da internet. Não era necessário confirmar nenhum dado, e quase ninguém tinha câmera para tirar fotos e postar. Não era realmente esperado que alguém mostrasse a verdadeira face. Podíamos ser qualquer pessoa. De repente era possível encontrar qualquer tipo de pessoa, com qualquer tipo de interesse.
E assim eu encontrei pessoas que "não ligavam" que eu fosse gorda e que eram  "interessantes" e "sensíveis". Pelo menos a princípio. Eu tinha 13 anos, e comecei a ter contato com pessoas, homens e mulheres, de 20 a 40 e poucos anos que me falavam de livros de poesia, música, paixão... E tesão. Começavam o papo com a poesia, logo estavam me chamando de "meu amor" e dizendo que eu era "muito madura pra minha idade", "muito interessante", e terminavam se tocando na frente da web cam para que eu assistisse (a pedido delas). Eu ficava apavorada, mas também instigada e sempre cedia a esse instinto. Muitas dessas pessoas nem "precisavam" que eu mostrasse também, bastava para eles me mostrar o que faziam, escondendo o rosto e narrando o que estavam pensando, enquanto eu me tocava e também descrevia meus movimentos, sensações e sentimentos. E deixo claro que não foram só homens: muitas mulheres mais velhas fizeram isso comigo. Com elas eu me sentia até mais a vontade para também ligar a web cam.
Provavelmente essas pessoas nunca mais pensaram em mim e nem se lembram que eu sequer existi algum dia, mas EU lembro nitidamente da maioria delas. Lembro sempre de uma dessas mulheres com quem eu conversava com frequência quando eu tinha 15 anos e ela mais de 40. Ela adorava se exibir nua para mim quando o marido dela saía para trabalhar. Adorava a possibilidade de ser pega fazendo isso.
Diferente de muitos adolescentes que desenvolveram compulsão por pornografia, eu não precisava nem entrar em sites pornô, pois tinha adultos gerando pornografia exclusivamente pra mim. Eu ficava no computador no meio da sala de casa, com 13, 14, 15 anos, fazendo sexo virtual com adultos, às vezes quase sendo pega também. E na hora eu me sentia bem, era fisicamente gostoso, mas depois me sentia suja, culpada, errada. Usada. Sentia nojo deles e de mim. Os impactos disso na minha vida foram exatamente iguais aos de vício em sites pornográficos. Por "covardia", eu não "consumei o ato" com nenhuma dessas pessoas, apesar de ter encontrado algumas delas, mas todas aquelas ocasiões, somadas aos abusos sexuais que sofri na infância, fizeram um estrago na minha percepção de sexo, amor e confiança que durou anos, e retardou bastante minhas primeiras experiências sexuais físicas, porque sexo para mim era algo sujo, ligado a culpa e medo. Eu não conseguia pensar em fazer sexo com alguém que eu realmente amasse, porque seria como sujar esses sentimentos.
E mesmo quando essas interações não tinham nenhuma abordagem sexual, eu vivi experiências bizarras e que poderiam ter acabado muito mal. Uma vez, quando eu tinha por volta de 13 anos, me apaixonei por um cara na casa dos 30 anos, que primeiro me convenceu, com galanteios e palavras doces, que estava apaixonado por mim e "não se importava" com o meu peso, e depois, usando da minha insegurança, tentou me convencer de que se EU não gostava de ser gorda, ele poderia me ajudar a emagrecer, porque "me amava" e queria me ver bem. A proposta dele? Que eu RETIRASSE alguns dos meus órgãos. Segundo ele, eu não precisava de todos para viver e a retirada de alguns me faria perder peso. Ele queria me indicar onde e como fazer isso. A princípio pensei que ele estava brincando, mas quando vi que era sério, cortei contato. Eu não era TÃO ingênua assim. Mas anos depois fiquei pensando que alguma garota talvez tenha sido ingênua e desesperada o suficiente para ter tentado esse "método", que com certeza nada mais era do que um golpe para venda de órgãos. 
Aos 15 anos eu me relacionei online com um cara de 21 anos, e quando terminei o "namoro", logo após nos conhecermos pessoalmente (encontro no qual ele me beijou a força), ele começou a me perseguir, a me difamar online e ameaçava, inclusive através de ligações, contar meus segredos para o meu pai. Essa perseguição durou uns 2 anos. Nenhum adulto ao meu redor tinha ideia de que essas coisas aconteciam na minha vida, e até hoje muita gente minimiza a gravidade e as consequências dessas situações, dizendo que nada disso foi "real", porque aconteceu "na internet". Uma pessoa adulta, homem ou mulher, se masturbar na frente de uma adolescente de 13 anos enquanto fala putaria, é violência sexual. Um adulto convencer uma adolescente de 13 anos a se masturbar na sua frente, é crime. Um adulto de 21 anos perseguir, difamar e ameaçar uma adolescente de 15 anos, é violência psicológica, é crime. São atos moralmente errados e ilegais, independente do lugar ou da maneira que aconteceram. Foi bem real para mim e teve efeitos duradouros na minha vida afetiva e sexual.
É claro que poderia ter sido muito pior. Eu poderia ter fugido de casa, poderia ter engravidado, apanhado, ter sido estuprada ou assassinada. Poderia ter me tornando de fato parte das estatísticas, e talvez ninguém ficasse sabendo o que aconteceu comigo.
Um adolescente "se relacionar" com uma pessoa adulta não é mais TÃO naturalizado quanto já foi um dia, mas ainda está muito longe de deixar de acontecer. Muitas pessoas jovens caem nas garras de pessoas adultas e sofrem violência psicológica, física e sexual, às vezes sem que ninguém saiba, mas outras vezes com aval dos pais e responsáveis das mesmas. Infelizmente não tem como PROIBIR uma pessoa de se relacionar com outra, nem mesmo um adolescente. Tentar proibir, muitas vezes até aumenta a vontade de estar naquela relação.
O que podemos tentar fazer é conscientizar esses jovens dos riscos que essas "relações" oferecem. Deixar aberto um canal de comunicação claro e livre de julgamentos. Eu realmente queria que adolescentes entendessem que quando nós, pessoas adultas, problematizamos elas se relacionarem com pessoas mais velhas, não é um ataque a elas e nem estamos sendo caretas ou conservadoras, estamos tentando alertá-las, zelar por elas, pois muitas vezes já sofremos na mesma situação. Infelizmente não é uma comunicação fácil. Eu mesma não teria ouvido ninguém na minha época de adolescente, ainda que tivesse alguém para cuidar de mim.  Eu sei que é muito sedutor ter 13, 14 anos e ouvir de uma pessoa adulta, especialmente quando a admiramos, que somos "maduras para a nossa idade", que somos "mais interessantes do que muitas pessoas adultas". É até gostosa a sensação de saber que alguém sente tesão por nós, e de sentir tesão também, afinal, estamos conhecendo nossos corpos. Mas isso tem seu peso e seu preço. Ter desejos aos 14, 15 anos, e estar pronto para bancar esses desejos, ainda mais com uma pessoa adulta com exigências e com experiência, são coisas diferentes.
Uma pessoa maior de idade que se relaciona com uma pessoa pré-adolescente ou adolescente, já está errada ou com más intenções desde o começo. Muitas vezes, a imatura é ela, por isso "não se garante" com pessoas da mesma idade e precisa conquistar pessoas mais jovens, que não perceberão isso. 
Só com o tempo e bastante terapia eu entendi os perigos que passei ao me expôr com 13, 14 anos, não só sexualmente, mas psicológica e fisicamente, revelando todos os meus segredos e me encontrando com pessoas adultas da internet. Só o tempo me fez admitir que fui ingênua, que fui usada como objeto de prazer e que não, eu não tinha maturidade para me relacionar com tais pessoas: não tinha como eu ter, pois estava começando a vida, e já vinha de um lugar ruim. É difícil para um adolescente admitir que não é extremamente maduro, que ainda não tem muita bagagem. Soa como uma ofensa, eu sei, mas não ser maduro na adolescência não é demérito, é uma parte natural do processo do ser humano. Nessa fase da vida estamos aprendendo a viver, até os nossos cérebros ainda estão em formação. Entender isso o quanto antes, ou aceitar os conselhos de quem passou pelo mesmo, pouparia muita dor e TRAUMA para o resto da vida, pois os relacionamentos que vivemos na adolescência nos marcam pra sempre, moldam como iremos nos relacionar no futuro...
E uma relação com uma pessoa bem mais velha SEMPRE vai ter um desnível de poder absurdo e por isso quase sempre vai "se tornar" abusiva e SEMPRE trará prejuízos emocionais. E isso nem se restringe às relações entre adolescentes e pessoas maiores de idade. Esse desnível de poder e potencial abusivo se estende a qualquer relação onde as pessoas tenham muita diferença de idade, seja uma pessoa de 15 com uma de 20 ou 30, seja uma pessoa de 25 com alguém de 40 ou 50. São fases bem diferentes da vida, marcadas por diferentes níveis de experiência e status social. 
É inegável que uma pessoa com menos experiência de vida está mais suscetível a ser manipulada por uma com mais experiência. E independente da quantidade de coisas que aconteçam no começo da vida de uma pessoa, tem coisas que só o tempo e um maior período de observação de mundo pode ensinar!
E isso se intensifica por questões financeiras, não só porque dinheiro garante acessos que geram experiência, mas porque com dinheiro é fácil levar  pessoas jovens à dependência financeira (seja por necessidades básicas ou ambição). Dinheiro é ferramenta de controle, e quanto mais uma pessoa tem, mais fácil é comandar vidas, perseguir pessoas.
Existem exceções, é claro, mas é muito mais provável uma pessoa mais velha ter estabilidade financeira do que uma mais nova. E mesmo quando a pessoa jovem pensa que ela também está usando e ganhando algo, ela está sendo mais usada e perdendo muito mais do que a pessoa mais velha.
É claro que *entre adultos* pode acontecer uma relação natural e saudável mesmo com uma grande diferença de idade. O amor pode nos surpreender. Mas são poucos os casos com a chamada "age gap" que não terminam em abusos e tragédias. Temos muitos mais exemplos negativos do que positivos, tanto na vida de pessoas anônimas, quanto na vida de pessoas públicas. Um caso brasileiro bem conhecido é o de Eloá, que em 2008 foi assassinada por seu então ex-namorado. Eloá tinha 15 anos e seu assassino tinha 22 anos. É muito fácil recordar de casos semelhantes envolvendo adolescentes e ex-namorados maiores de idade que cometeram tais crimes após o término do relacionamento.  
Recentemente Demi Lovato lançou a música "29", expondo sua experiência de ter se "relacionado", quando tinha 17 anos com um homem de 29 anos. Na letra ela reflete sobre como uma adolescente de 17 não é plenamente capaz de consentir a uma relação com essa diferença de idade e deixa claro o papel de PODER que ele exerceu em sua vida. Antes de Demi, esse mesmo homem já havia se "relacionado" com Mandy Moore quando ela tinha 15 anos e ele 20 (e depois inclusive espalhou que havia tirado a virgindade dela, como se isso fosse uma conquista) e com Lindsay Lohan, quando ela tinha 17 e ele 24.
O caso de Evan Rachel Wood é outro que nos mostra a realidade desse tipo de relação. Wood tinha 18 anos quando começou a se relacionar com Marilyn Manson, que tinha 37 anos. Há alguns anos ela tem exposto os abusos que sofreu, desde ser "marcada" (através de escarificação), distanciada de familiares, impedida de usar anticoncepcional, ser forçada a cozinhar após um aborto, a estupro. A vida e a carreira dela foram severamente afetadas por todas essas situações, e ainda assim o público prefere ficar ao lado de Manson.
Ao se relacionar com uma pessoa mais velha, além da diferença de idade e de níveis de experiência, tanto meninas quanto meninos, em diferentes graus e formas, ainda terão que lidar com o machismo de toda a sociedade. Enquanto meninas são culpabilizadas por essas "relações" e abusos, acusadas de "terem provocado" pessoas mais velhas, em especial, homens mais velhos, meninos terão os abusos sofridos anulados. Qualquer tentativa de expor abusos de cunho sexual, será silenciada pela percepção social de que meninos serem "sexualmente iniciados" por mulheres mais velhas é sorte. Meninos que sofrem abusos de homens e meninas que sofrem abusos de mulheres passam ainda pelas ideias preconceituosas, limitadas e estigmatizante de uma sociedade heteronormativa. Enquanto meninos abusados por mulheres têm sua "masculinidade" glorificada, meninos abusados por homens têm sua sexualidade questionada ou colocada como fator gerador de tal violência, fazendo com que poucos garotos nessa situação exponham os abusos sofridos.
Apesar dos recortes possíveis, quando a pessoa "mais jovem" (maior de idade) da vez é só "mais uma" numa longa lista, quando existe um padrão bem definido, e se relacionar com pessoas bem mais jovens é uma REGRA nas relações de uma pessoa mais velha, há de se pensar no porquê. Isso é nítido quando observamos homens ricos e poderosos, como por exemplo Leonardo DiCaprio e Johnny Depp, estampados pela grande mídia ostentando uma mulher mais jovem por ano. Ao observarmos a forma com que cada uma dessas mulheres é descartada e coletivamente exposta, torturada, reduzida a pó publicamente após o término. Quanto mais velhos eles ficam, mais jovens exigem que seus pares sejam, e embora "as escolhidas" sejam maiores de idade, sempre têm uma aparência e às vezes até uma "postura" de adolescente, deixando assim claro que a imagem que os atrai é essa, e o que os impede de se relacionar com adolescentes de fato não é a moral e sim o medo do cancelamento e das consequências legais. 
Muitas pessoas têm a juventude consumida como um produto por pessoas mais velhas. Essas pessoas sugam a juventude dos outros para se sentirem elas mesmas mais jovens e cada vez mais poderosas. Usam jovens como força braçal, como troféu, como objeto sexual ou como suporte afetivo para alimentar o próprio ego. E no fim, quando a pessoa já não é TÃO jovem, quando teve toda sua juventude retirada de si a força, ela é descartada. Trocada por uma pessoa MAIS jovem. Porque ninguém é jovem para sempre, e a ideia de juventude reforçada pela mídia dura tanto quanto um sopro.













quarta-feira, 23 de novembro de 2022

natalina

Fazia um bom tempo que eu não me animava a tirar o pó dos meus enfeites preferidos e montar uma árvore de natal.
Essa época costumava ser uma injeção de ânimo para mim, mesmo que isso tivesse suas limitações práticas e viesse com um prazo de validade. Eu amo coisas coloridas, vibrantes, que piscam. Amo rituais. Gostava muito de montar minhas próprias árvores (uma no quarto e uma na sala) e encher a casa de enfeites. Também adorava ficar sentada num banco de praça, observando as pesssoas passando e sendo também iluminadas pelos pisca-piscas pendurados em árvores reais. As pessoas se tornavam parte da decoração. Eu ficava ali por horas, num universo particular, sentindo o cheiro das árvores piscando, observando suas folhas caindo numa dança sob o reflexo colorido das luzinhas. Sentindo a brisa de natal penetrando minha alma...
Nos últimos anos, nada. Eu fiquei só admirando de relance as luzinhas e enfeites das lojas. Nem os espaços públicos tiveram grandes decorações. Faltou ânimo em todos, até nas luzinhas meio queimadas...
Porém, confesso: não era só das decorações que eu gostava. Eu amava todo o conceito de união, amor, compaixão e magia que essa época costumava trazer nas pessoas, mesmo que isso fosse momentâneo e não se estendesse a mim, que quase sempre passo o natal sozinha. Eu amava o cheiro da comida natalina e de roupa nova. Amava a ideia da troca de presentes.
Gostar de natal é apenas mais uma das minhas contradições: uma ateia anticapitalista apaixonada pela IDEIA do natal! Bem, apesar de todas as ideologias forjadas na base da racionalidade e até certa amargura, eu também cresci numa cultura cheia de filmes natalinos falando da magia dessa noite. Também me sinto inundada por esse conceito, mesmo que seja algo tão distante da minha realidade. Não tenho vergonha de admitir que choro assistindo O Natal Encantado da Bela e a Fera. Que gargalho assistindo Esqueceram de Mim.
Eu não tenho nenhuma expectativa de uma noite de natal encantada... me sinto tão longe dos meus sonhos e ideais. Mas esse ano comecei a sentir cheiro de natal já em agosto, como antigamente, e decidi montar uma árvore. E fazer isso foi como resgatar um pedacinho bom de mim mesma.


segunda-feira, 21 de novembro de 2022

sua amiga

Você me pede perdão
E me oferece sua amizade...

Sua amiga?
Como eu posso ser sua amiga?

Como eu posso ser sua amiga,
Quando eu sinto seu cheiro
Antes mesmo de te ver chegando?

Como eu posso ser sua amiga,
Se quando te vejo
Caminhando na minha direção 
Eu tenho o impulso de correr até você
Te agarrar
Rasgar as suas roupas

Possuir e ser possuída
No meio da multidão?

Como eu posso ser sua amiga,
Quando a sua energia 
Esparrama cores vivas
Sobre o cinza dessa cidade 
E sobre o meu próprio mundo cinza?

Como eu posso ser sua amiga,
Quando a sua voz
Silencia os barulhos violentos
Da Metrópole 
E acalma mais meu coração
Do que qualquer música que eu já ouvi?

Como eu posso ser sua amiga,
Quando as suas palavras
Exercem maior fascínio
Sobre a minha mente
Do que a soma de todas as palavras
Que li nas páginas dos meus livros preferidos?

Como eu posso ser sua amiga,
Quando o calor que irradia da sua pele
Aquece a minha pele fria
Melhor do que o sol do meio-dia?

Como eu posso ser sua amiga,
Quando o seu abraço me conforta
Mais do que a minha casa,
Mais do que todos os museus que já visitei,
Mais do que a minha própria carcaça?

Como eu posso ser sua amiga,
Quando um mero roçar de pernas
Incendeia o meu corpo inteiro,

Dentro
Fora
E de tal maneira 
Que minhas células parecem
Querer abandonar meu corpo
Em busca do seu?

Como eu posso ser sua amiga,
Quando eu sinto a minha alma
Sendo atraída pela sua
E os meus dedos imploram contato
Com os seus?

Como eu posso ser sua amiga,
Quando noite após noite,
Eu fantasio com o peso do seu corpo
Sobre o meu corpo,
Se de pernas abertas
Eu lembro do seu olhar sobre
O meu rosto?

Como eu posso ser sua amiga,
Quando eu sonho com você
E ouço meu próprio gemido
Recitando o seu nome?

Como eu posso ser sua amiga,
Quando ao acordar
Eu sinto meu estômago revirar de tristeza
Por você não estar ao meu lado?

Como eu posso ser sua amiga,
Quando nós viramos as costas
Após o beijo de despedida e
Ainda de pernas bambas,
Eu começo a contar os dias
Os minutos
E os segundos 
Para te ver novamente?

Como eu posso ser sua amiga,
Quando o meu coração 
Está em chamas
Ardendo
De amor
Por você?

Como eu posso ser sua amiga,
Quando eu quero ser mais
Do que sua amiga?

Como eu posso ser sua amiga,
Quando eu sei como é ser mais
Do que sua amiga?

Me diga,
Como eu posso ser sua amiga?

(21 de novembro de 2019)

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

uma flor murcha no concreto da cidade

Eu cheguei nesse ponto da vida que parece que tudo se resume a bebês. Para todos os lados que eu olho, vejo bebês ou alguém falando sobre bebês. Na mídia, nas redes, nas rodinhas de conversa:  bebês. Alguns se programando para tê-los, outros se esquivando de tal possibilidade com todas as forças.
Quase todas as conversas que tenho com os meus irmãos, recém-chegados aos 30, terminam na expectativa de trazermos mais bebês para nossa família e nessa corrida contra o tempo.
Para eles é quase uma questão de linhagem. Quase uma obrigação moral de manter o nome Lira vivo.
Para mim é algo mais... 
......
Eu vejo um grande relógio pendurado na parede da minha mente. Os ponteiros correndo e mudando de posição freneticamente. Ouço o tic tac tic tac tic tac dentro de mim 24 horas por dia e me sinto murchando a cada tic, apodrecendo a cada tac.
Tento não pensar em nada disso, mas o relógio está sempre ali, tic tac em movimento, um lembrete ambulante me mantendo agitada, insone, impotente... e paradoxalmente, estática, em posição de espera. Paralisada pela iminência de cada segundo e o que a soma de todos eles pode me trazer. Loucura, esterilidade, fatalidade.
A última conversa que tive (ou melhor, participei) sobre bebês, terminou com um soco no meu peito, quando ouvi a profecia: "acho que a Cíntia não vai ter filhos".
"Não diga isso", ouvi minha própria voz rebater sem forças... "Se esse for o caso, eu vou ser infeliz para sempre".
.... Sempre quis um filho. Mas eu seria uma boa mãe? O que eu poderia oferecer aos 15? O que eu poderia oferecer aos 25? O que eu posso oferecer agora?
32 anos, quase 33. Eu nunca pensei que chegaria até aqui. Com todo o meu coração, eu achei que morreria extremamente jovem. Me conformei com não ter nada naqueles pretensos breves anos. Porém, contra a minha vontade, os anos foram se acumulando,  e já não tem sido breve há algum tempo. O peso de não ter nada, que era suportável, agora me esmaga.
É angustiante pensar em ser infeliz para sempre, mas me consolo: quanto mais pode durar o meu "para sempre"?
Independente das ironias da vida, provavelmente tenho menos tempo de vida para viver do que de vida vivida.
Cada dia que eu vivo dessa forma, é um dia a menos para ser a mãe desse ser que eu sempre quis. Cada minuto que passa, esse bebê fica um pouco mais fora do meu alcance.
Não sinto orgulho real de ainda estar viva, "vivendo" da forma que eu "vivo". Eu sinto que ainda estar aqui, mas distante de tudo que eu sempre quis, é o meu castigo por ter tentado tanto morrer. É o maior foda-se que a vida me deu, uma forma impiedosa de mostrar quem é que manda nessa porra (!).
Eu não quis, não planejei, mas fiquei aqui.
Estou aqui... ?
Existo trancada em uma caixa de vidro disposta no meio de uma multidão que se renova a todo momento. Daqui de dentro eu vejo as pessoas e elas me assistem de relance enquanto transitam, indo de um lado para o outro, ora sozinhas, ora em pares, ora em grupos... carregando amores, carregando flores, carregando dores impermanentes. Carregando bebês.
Atrás do vidro eu olho fixamente para cada um desses bebês.
Quem observa meu olhar demorado e por vezes inexpressivo pode pensar que eu odeio esses seres que choram e riem, que babam e se agitam entre braços e babados e brinquedos. Por fora eu não sei expressar muito. Por dentro, eu sou tomada ao mesmo tempo por um amor e uma tristeza que me rasga, que me afeta de tal forma que eu penso novamente que a morte é a minha única salvação. 
Por instinto eles também me olham, mas com seus olhos inocentes, provavelmente não entendem o afeto que o meu sorriso sutil e triste lhes oferta.
Coloco os óculos escuros e choro escondida atrás das lentes e da minha falta de expressão. A violência da minha mãe me fez aprender a chorar em silêncio e eu nunca desperdicei esse dom.
A violência da minha mãe é o que me fez questionar, por muitos anos, se eu seria uma boa mãe.
Eu seria uma boa mãe?
Eu seria uma boa mãe, meu bem?
O meu bem, numa sombria tentativa de conter a urgência dos meus desejos (ou exigências?), disse de muitas formas que não. Eu não seria uma boa mãe. Ao mesmo tempo, balançava na minha frente a possibilidade de me dar um filho, como um adestrador balançando uma recompensa na frente de um cachorro, usando meu desejo (ou exigência?) como ferramenta de controle. Se eu fosse uma boa menina, ele me daria um filho. Algum dia.
Ele regou e nutriu essas sementes com tanta dedicação, que cresceu uma floresta dentro de mim.
Eu estou perdida na mágoa dessa floresta, regando novas sementes de dúvidas e desesperos com as minhas lágrimas.
.........
As pessoas passam, os bebês passam. Às vezes acenam. Seguem.
Aqui dentro eu estou sempre sozinha, me debatendo com essa dor que nunca cessa.
Os dias passam e eu vejo tudo de longe, sonhando sonhos impossíveis, me sentindo cada dia mais intocada e morta.
Eu seria uma boa mãe, meu bem?
Eu queria tentar ser.

Tic tac tic tac tic tac

sábado, 24 de setembro de 2022

um poema de amor


Te quero quando acordo
Te quero antes de dormir
E em todos os momentos
Entre uma coisa e outra

Te quero quando você
Se dirige a mim
Com uma paciência e cumplicidade
Similar à que o meu avô
Se dirige à minha avó
Nessa voz, assim
Sempre calma e doce
Com um riso de fundo
Como se soubesse de algo
Que eu não sei

;

Como se fosse prazeroso
E não embaraçoso
Me observar entrando nos lugares
Destrambelhada,
Derrubando tudo ao meu redor
Te quero
Vendo divertimento na minha
Graciosidade peculiar
Que tantas vezes escapa
Aos espectadores mais medíocres

Te quero quando lembro do seu olhar
De baixo pra cima
O misto de inocência e safadeza
O desejo estampado na sua cara
Sua cabeça entre os meus seios
Seus ombros no meio do meu abraço
E o seu nariz
Roçando no meu
O meu corpo roçando no seu
Sem vergonha

Te quero falando bobagem
Te quero falando o que importa
Quero seus discursos mais inteligentes
Te quero falando putaria
Te quero gemendo eu te amo

Te quero quando
Os pingos de água no seu corpo
Convidam meus lábios
Quando as gotas de suor no seu rosto
Convidam minhas mãos
Quando a sua língua vermelha
Visualmente
Atiça
Meu corpo inteiro
Te quero quando seus dedos
Convidam minha pele
Minhas cicatrizes
Te quero porque você viu arte
Nas minhas texturas

Te quero beijando meus relevos

M u i t o

L e n t a m e n t e

. . .

Te quero quando sinto um raio
Atingindo minha buceta
Molhada
Fruto da sua boca
Molhada
Comendo a minha boca
Molhada
Quero nossos corpos elétricos,
Tentando se conter
Em meio às pessoas

Te quero da esquina do
Theatro Municipal à Avenida Paulista
Do primeiro beijo, comportado, mas suficiente para deixar minhas pernas bambas
Ao beijo mais selvagem
Quase pornográfico

Te quero apalpando os meus mamilos
Com urgência
Apertando minhas dobras
Te quero me deixando a ponto de rasgar
Minhas próprias roupas
Na estação da Sé
Meu joelho subindo entre suas coxas
Na estação da Sé

Quero ser sua
Na estação da Sé

Sua vadia,
Na Sé
Sua princesa,
Na Sé.


(24 de setembro de 2019)

domingo, 3 de julho de 2022

indecência

O vestido vermelho
é alguns números menor
do que o meu tamanho
 
Me emprestaram
e eu não devolvi

Ele entra;
Nas fotos parece perfeito
Pessoalmente, não me cai tão bem...

Ele fica repuxando
Me enforca, mesmo;

Quando eu ando ele sobe
É muito apertado
Na barriga
Minhas coxas ficam perigosamente à mostra
Qualquer ventinho mostra minha bunda

Minha avó até perguntou
Cíntia,
Você está sem calcinha?

Eu fico desconfortável no vestido
Como uma pessoa que está dentro
de algo que não é seu 

Roubei o vestido, não é meu
Eu posso esticá-lo,
posso cortá-lo
E transformá-lo
Mas não seria a mesma coisa
Eu o estragaria
O desbotaria
Desalinharia suas fibras

Arriscaria perder
A essência
Escolho, então, a indecência 

Andando por aí com a bunda de fora

Dia desses, entre juras de amor,
meu bem me disse:
"O pronome possessivo
cai tão bem sobre você!
Veste como aquele seu vestido
vermelho: minha!"

"Muito sua!", respondi

Não disse mentira
É o mais próximo da verdade que se chega

Ainda assim, senti a inquietação
No meu estômago
E um nó na garganta
Me sufocando tal qual o vestido

Esse pronome
Vindo da boca dele
Entra em mim
Mas não me cai bem

Me emprestaram
Esse Homem
E dessa vez eu vou ter que devolver
O que me foi emprestado

Nem eu sou tão indecente!

Ele engatou, numa voz de sono, 
Já sumindo 
"Para de falar isso...
Nisso eu acredito que sou seu dono,
e as coisas podem ficar mais complicadas"

Reafirmei:
"Você é!"

Ele dormiu
Eu não dormi

Eu posso esticar,
Prolongar,
Posso me enganar
Para manter a ilusão;

Perderíamos a essência.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

eu te amo tanto...


Tanto,
que quando penso em você,
me escapa:
"eu te amo tanto..."
Minha voz ecoando no vazio
Eu espero que as palavras te alcancem
Eu espero que o sentimento te alcance

Eu aqui
E você
Onde?
Nem sei mais onde
Não sei por onde
Seus pés caminham 
Não sei onde te encontrar

Mesmo sem saber onde você está
Mesmo que eu nunca mais te encontre

No meio da multidão

Eu te amo tanto...

Não escolhi te amar
Eu nunca escolhi te amar!
Se eu tivesse escolha
Escolheria não te amar

Escolheria nunca ter
Olhado para você...

Te amar é como cair
Num poço sem fundo
Te amar é cair

Na solidão
De não saber mais quem eu sou...

Te amar reduziu tudo que eu era
Te amar drena toda a minha força

Quando penso em você
Eu me sinto fraca

Cabeça leve
Uma lágrima escorrendo num fio contínuo
Pernas trêmulas
Meu corpo em queda livre

Na agônia do meu amor
Penso que vou morrer
... Mas não morro

Te amar é pior do que morrer

Te amar é ser violentamente
Tirada de órbita
Te amar é ser destroçada 
Por um buraco negro
Te amar é como se perder 
No espaço sideral
Sumir sem deixar rastros
Te amar é ser esquecida...

E eu te amo tanto...

Tanto, que às vezes escapa:
"eu te amo tanto, tanto..."
Minha voz abafada 
Pelos gritos do mundo...

Eu espero que as palavras te alcancem
Eu espero que esse amor te alcance

Mas tudo se perde
Na imensidão do Universo
Na imensidão da minha mágoa
.... Eu te amo tanto....

domingo, 15 de maio de 2022

Anderson

Você morreu.
Acabou. Você acabou.
Era para eu estar feliz? Aliviada? Me sentindo vingada? Eu não estou sentindo nada de bom. O que sinto é a raiva crescendo em mim, se espalhando dentro de mim, tomando conta dos meus movimentos. Meus músculos se contraindo, meus punhos cerrando, meu coração acelerando mais e mais e mais, ... Sinto o nojo e o ódio exercendo sua força violenta na minha alma, me estraçalhando um pouco mais, me tornando menos humana. Lágrimas grossas inundam meu rosto.
Nunca pensei muito na sua morte. Você esteve perto dela algumas vezes ao longo dos anos, mas o pensamento de você morrer nunca me foi realmente reconfortante. A morte sempre pareceu tão pouco — mesmo as formas mais brutais de morte! Parecia mais justo você continuar vivo, sujo, fraco, chafurdando em decadência e dor. Vivendo um reflexo do que me fez, do que me tornou.
Eu te odeio, Andy.
Houve um tempo que eu te amei. Te amei com a pureza de uma criança, com a devoção de uma sobrinha para o seu tio preferido, mas você destruiu o amor, você me destruiu. Você profanou meu corpo, marcou minha alma, matou minhas possibilidades. Mudou o rumo da minha vida inteira. Tudo que eu tenho, tudo que eu sou, tudo que eu amo, está manchado pelo que você me fez. Tudo que eu não tenho, foi você que me roubou. Você roubou uma criança de 6 anos de ter uma vida saudável e plena. Você esvaziou minha alma de tudo que era bom e no lugar colocou apenas podridão. Você me roubou minha família, que preferiu ficar ao seu lado e acreditar que eu sou mentirosa e torpe. Você me roubou a possibilidade de construir uma nova família, longe de você, porque me deixou louca, sem nada para oferecer para uma criança, para alguém. Você, com a sua imundície, nunca está realmente longe de mim.
Nunca pensei muito sobre sua morte, mas muitas vezes pensei em te ferir. Parada e muito quieta, por anos tenho perdido meu tempo mergulhada no mesmo devaneio. Nele eu vou atrás de você com um pedaço de pau, e, aproveitando do seu estado físico lastimável, te acerto repetidamente e sem piedade, fazendo a madeira subir e descer com vigor, atingindo seu corpo, dilacerando sua pele, quebrando seus ossos enquanto te ouço implorando que eu pare e sinto o seu sangue jorrar e espirrar em mim. Mas eu ignoro suas súplicas e continuo até você apagar. A energia desse devaneio é tão forte, que quando volto a mim, sinto cansaço pelo esforço físico de te agredir.
Eu sempre pensei em tornar esse devaneio uma realidade.
Agora você me roubou até essa possibilidade.
Morrer engasgado com um pedaço de pizza é pouco. É aleatório e misericordioso. Saber da sua morte é pouco. Eu queria ter causado sua morte, eu queria ter te assistido morrer. 
Você morrer não é suficiente. Nada seria suficiente.
Hoje, como tantas vezes, eu estou chorando sozinha. As pessoas choram por você. Minha mãe chora por você, meus avós choram por você. Choram sobre o seu corpo. Ninguém chora por mim. Não tem ninguém para me abraçar e me aquecer. 
Não estou chorando por você. Estou chorando por mim. Pela Cíntia de 6 anos, sendo manipulada e violada por você. Pela Cíntia de 15 anos, sendo desacreditada por sua própria mãe após tentar se matar. Pela Cíntia de 21 anos... suja como você, entorpecida de álcool e cocaína como você. Pela Cíntia de 32 anos, que te odeia, que tem te odiado uma vida inteira, mas sente esse vínculo eterno com você.
Eu te odeio. Te odeio, mas meu ódio vai te manter vivo. Quem te ama vai morrer. As pessoas vão te esquecer. Essa é a verdadeira morte, ser enterrado e esquecido! Exceto que eu não vou te esquecer. Você vai permanecer em mim da forma mais vil. Nos meus pesadelos, nos meus pensamentos, nas lembranças que me tomam de súbito e corrompem meus melhores momentos... na minha auto-destruição, no meu fracasso!
Você não vai morrer de fato, até que eu morra e seja esquecida por todos. Porque você roubou minha vida, e mesmo quando eu morrer, você vai continuar vivo na minha história. Quando pensarem em mim, sua existência vai estar atada à minha.
Não existe justiça possível.
Você não morreu.
Você não acabou. Você acabou comigo antes mesmo de eu começar.