quarta-feira, 22 de novembro de 2023

leitura: solitária

Título: Solitária
Autora: Eliana Alves Cruz
Editora: Companhia das Letras
Ano de lançamento: 2022
Número de páginas: 161
Lido em: novembro de 2023
Comprar na Amazon


"É curioso reparar como algumas pessoas nesse mundo não têm direito à meninice. Quando ainda mal se sustentam em cima das pernas, são vistas como adultas; enquanto outras serão para sempre garotos e garotas."

Essa é uma boa frase para resumir "Solitária", que começa sua narrativa no sudeste, no fim dos anos 90, sob a perspectiva de Mabel, uma garotinha negra que um dia é levada por sua mãe, Eunice, para o luxuoso apartamento onde esta trabalha para uma família muito rica como doméstica. Ali Mabel é imediatamente confinada a um quartinho de empregada, pois sua presença é um incomodo para Lúcia e Tiago, os patrões de sua mãe. Logo nesse primeiro contato com essa família, Mabel conhece Irene, uma menina negra de 13 anos que foi trazida do interior para ser a babá de uma criança branca. Nesse mesmo dia, Mabel presencia um acidente envolvendo essa criança branca e vê Irene sendo punida pelo ocorrido, sabendo, mesmo em seus poucos anos, que aquela moça poderia ser sua irmã.
Quando a patroa de Eunice engravida, a presença de Mabel na casa passa a ser "tolerada", desde que ela "não faça barulho" e "não fique no caminho". Na verdade, Mabel começa a ser usada como força de trabalho, tendo que ajudar sua mãe nos afazeres domésticos e nos cuidados da filha dos patrões da mãe. Enquanto Mabel tem sua infância roubada e passa a dividir de forma permanente com a mãe o quartinho de empregada onde tudo é reduzido, Lúcia ganha "duas domésticas pelo preço de uma". Porém, assim como sua avó, uma mulher orgulhosa de suas raizes e insubordinada, à medida que Mabel vai crescendo, ela vai se revoltando contra aquela família e contra aquele sistema de servilidade ao qual sua mãe está presa e decide estudar e se tornar médica para tirá-las daquela situação. Os patrões de sua mãe tratam de forma desdenhosa o sonho de Mabel de se tornar médica, algo quase impensável para uma menina negra e filha de uma doméstica, mas a menina está  determinada e se empenha nesse objetivo. Enquanto se divide entre os afazeres domésticos, uma rotina rigorosa de estudos e seus dilemas de adolescente, Mabel cresce solitária entre as quatro paredes silenciosas do quartinho de empregada, tendo que arcar sozinha com as consequências dos seus atos, enquanto sua mãe se dedica não à criação dela, mas à da filha branca de sua patroa, uma menina tão mesquinha e mimada quanto seus pais, mas por quem Eunice tem muito amor.
A segunda parte do livro nos oferece a perspectiva de Eunice, uma mulher negra reduzida não aos seus sonhos, mas às suas responsabilidades. Uma mulher que se viu esposa e mãe muito cedo, como muitas antes de si, e que teve que se conformar com o sistema, abrindo mão de seu orgulho e de seus desejos para sustentar uma mãe idosa e doente e uma filha pequena, enquanto seu marido, um homem alcoólatra e por vezes agressivo, vencido pelo sistema, abandona não apenas a família, mas a si mesmo.
Eunice se anula em função dos patrões e pela moral machista da sociedade e se vê constantemente dividida entre o amor que sente pela filha e o amor que sente por Camila, a filha da patroa, já que a criou desde bebê. Mas quando os atos irresponsáveis de Camila culminam em uma grande tragédia, Eunice precisa tomar uma decisão.
Além de Mabel e Eunice, o livro também tem seu foco narrativo na família do porteiro Jurandir, que vive em um quartinho tão "inho" quanto o de Eunice e Mabel, porém mais insalubre, com poluição o invadindo dia e noite. "Solitária", o título do livro, não se refere apenas ao sentimento de solidão, mas também aos quartinhos destinados às classes mais pobres, que são como prisões. Jurandir é viúvo e pai de João Paulo e Cacau. Enquanto o segundo decide, assim como Mabel, focar nos estudos para a possibilidade de uma vida melhor, João Paulo é um jovem revoltado contra o sistema, mas que não sabe para onde direcionar sua revolta, ocupando, na visão social, o papel do homem negro "marginal", apesar de estar muito longe de sê-lo: João Paulo também trabalha desde muito novo e teve sua infância tolhida pelo racismo.
Solitária é um livro curto, mas que abarca muitas coisas. Na minha opinião, não precisava ser tão curto. A autora poderia ter acrescentado mais camadas para alguns dos personagens secundários, poderia ter criado mais cenas e ter marcado melhor o espaço entre as fases que transcorrem ao longo de 20 anos, para dar mais profundidade aos acontecimentos. Algumas situações são colocadas de maneira muito abrupta. Ainda assim, com "Solitária", Eliana Alves Cruz cumpre bem a função de desenhar vários aspectos de uma sociedade racista e elitista, nos mostrando diferentes perspectivas e reações a essa estrutura que se perpetua há séculos. Esse livro fala sobre a infância roubada de crianças negras, sobre a eterna criancice de pessoas brancas, sobre mulheres negras que precisam abrir mão de cuidar de seus filhos para cuidar dos filhos de pessoas brancas, sobre homens negros em situação de rua e muitos outros resultados do racismo estrutural. De forma direta ou mais sutil, esse livro tem muito a dizer.  Muito atual e trazendo eventos reais, ele é um registro do cenário social e político dos  últimos 20 anos do Brasil, retratando uma elite não só acostumada a escravizar pessoas negras e pobres, mas também ressentida dessas pessoas finalmente estarem ocupando espaços até então exclusivos a ela. Uma elite sem vergonha de dizer coisas como: "esse vaso vale mais do que vinte anos do seu salário" e que apoia um governo golpista para tentar manter seus privilégios.
O que me chama mais atenção, porém, para além da abordagem sobre o impacto do racismo sobre a infância de crianças negras, é a demarcação das diferenças psíquicas e estruturais do racismo entre homens e mulheres, já que além do racismo, mulheres enfrentam também a carga do machismo e da maternidade compulsória (muitas vezes fruto da falta de educação sexual): mulheres negras não podem se dar ao luxo de se abandonar, não podem esmorecer, elas têm que se manter fortes, dentro de quartinhos solitários, para ser a base da próxima geração de pessoas negras. Afinal, por trás de cada pessoa negra, especialmente mulheres negras, têm outras mulheres negras que lutaram muito e deram o sangue para um futuro melhor para os seus. Mesmo que de formas diferentes, mulheres negras estão sempre sustentando umas às outras.

Livro recomendado.

sábado, 18 de novembro de 2023

as últimas horas da borboleta...

o que me move...?
Estava a caminho da academia. Estava atrasada, mas sabia que se a deixasse ali, ela morreria grudada no asfalto, assim como a borboleta que encontrei outro dia.
Sempre que eu vejo uma borboleta voando, eu paro, na expectativa de que ela pouse em mim, um presságio de felicidade. Mas elas nunca pousam. Elas passam por mim. As pessoas dizem que não adianta correr atrás de borboletas, nós temos que cuidar do nosso jardim e elas virão. (...)
Todo inseto que me procura, está morrendo (quase nunca borboletas). Eu coloco uma música triste, faço companhia... Mas eles morrem sozinhos, como toda criatura.
Bem, apesar do atraso, eu abaixei e recolhi a borboleta do asfalto. Minha intenção era deixá-la em algum canteiro ou árvore, mas ela estava ferida. O vento batia e a arrastava. Ela não conseguia manter seu voo. Tentei deixar num jardim no caminho do ponto de ônibus, mas não tive coragem. Fiz minhas mãos em copo, levando ela no centro escuro e protegido contra o vento. Peguei o ônibus com a borboleta nas mãos, todo mundo me olhando com curiosidade ou estranheza. Mas, como eu faria com ela ao chegar na academia? Guardaria no armário? Lembrei que lá tem um jardim bem grande no estacionamento. Fui lá, a deixei em um graveto entre árvores, folhas e flores. Entre predadores. Fiz a natação pensando nela. Se ela conseguiria se defender. Se teria sido comida por formigas. Depois da aula, fui lá olhar. Pensei em deixar ela lá, parecia mais digno morrer na natureza selvagem do que ficar entre as paredes da minha casa, depois de uma longa metamorfose. Novamente, não tive coragem. A coloquei em um copo, dessa vez de plástico, peguei o ônibus, depois o trem, sempre cobrindo o copo com a mão para o vento não machucá-la. Vim para casa sob um sol escaldante, com receio de morrermos no caminho. Chegamos em casa molengas, mas sobrevivemos.
Ela não pousou em mim. Ela aceitou a minha mão. Ela não me trouxe felicidade. Ela me trouxe, sim, alegria por sua existência e por sua beleza, aflorou meu instinto de proteção, me fez sentir ternura... mas me trouxe outros sentimentos negativos por seu destino. Pelo destino de todos os seres. Hoje essa borboleta me moveu, mas ao cruzar o meu caminho, ela me trouxe tristeza em um dia já triste, por me fazer pensar no desperdício que é passar por uma transformação longa e dolorosa, criar asas, para no fim acabar confinada em um quartinho, esperando a morte. E depois, tirando essas fotos — confesso, por imposição minha —, ela me fez olhar pra mim e me fez pensar no meu tempo passando. No meu rosto mudando. Nas novas marcas que eu tenho ignorado. Eu vi beleza nisso tudo, na minha pele, nas nossas cores, em suas asas, mas tem sempre um pouco de tristeza também.

O que me move...?

A minha solidão? O meu desejo pela companhia? O meu medo de morrer sem ter ninguém para me aninhar e me proteger do vento... O que me move é o meu medo de ser arrastada por esse mundo, assim, sem defesa. Quando acolho um inseto morrendo, não sou movida só por bondade, por identificação ou por hiperfoco: tem muito mais de egoísmo. Por alguns momentos eles me tiram da minha solidão. É um tipo tão triste de companhia. Um tipo tão triste de beleza.

sábado, 11 de novembro de 2023

leitura: pequena coreografia do adeus


Título: Pequena Coreografia do Adeus
Autora: Aline Bei
Editora: Companhia das Letras
Ano de lançamento: 2021
Número de páginas: 282
Lido em: novembro de 2023
Comprar na Amazon

"A queda ensina mais do que o voo"...

Essa é uma das muitas frases impactantes desse livro tão inovador de Aline Bei, que de forma magistral lapida um romance em formato de poesia. Quem não gosta da estrutura da poesia e está preso à prosa, seja pelo aspecto visual ou pela diferença de ritmo, pode estranhar ou até mesmo não dar uma chance à obra de Bei, mas qualquer pessoa com um pingo de sensibilidade que se permitir ler este livro vai ficar extasiada por seu talento e por sua força narrativa.
"Pequena Coreografia do Adeus" nos apresenta, em primeira pessoa, a história de Júlia, desde sua infância, à sua adolescência e começo da vida adulta. Enquanto criança, Júlia vive com sua mãe, Vera, e seu pai, Sérgio, que arrastam uma relação infeliz e por vezes psicologicamente violenta. Vera é uma mulher que veio de um contexto de violência e abandono familiar e carrega um enorme descontentamento pelo rumo que sua vida tomou. Ao longo dos anos, levando consigo as mágoas pela própria mãe e pelo casamento miserável, Vera teve seus sonhos aniquilados e desconta suas frustrações e rancores agredindo a filha, Júlia, tanto fisicamente, quanto psicologicamente. Ela se justifica repetidamente dizendo que sua mãe "era muito pior do que ela", mas Júlia sabe que ser "menos pior" do que alguém ruim não é o suficiente, e logo surge a dúvida, para nós, leitores: será Júlia capaz de quebrar esse ciclo e ser MELHOR do que sua mãe?
Todos os dias a menina leva surras cada vez mais pesadas, enquanto seu pai assiste em silêncio, omisso ao que acontece dentro de sua casa. Seu pai é um homem órfão, que também tem pouco repertório afetivo e não sabe expressar seus sentimentos. Até que um dia ele decide, sem muitos rodeios, abandonar a esposa, dizendo que "ninguém a aguenta". Porém, ao abandonar Vera, Sérgio acaba, por tabela, abandonando Júlia à própria sorte em uma casa onde ela é abertamente vitimizada. A filha até pede para morar com o pai, mas ele rejeita veementemente a ideia. Júlia entende que enquanto seu pai abandonou sua mãe de uma vez, a abandona em pequenas doses.
Pessoalmente, acredito que uma pessoa que se omite nessas situações, é tão ruim quanto quem pratica as agressões, mas é muito comum, na nossa sociedade, em casos de divórcio, a integridade da criança não ser levada em consideração, como se um casamento fosse apenas sobre um casal. Um casamento que gera filhos, é sobre eles também! Como um pai ou uma mãe pode virar as costas e deixar para trás um filho ou uma filha sofrendo abusos? Como em muitos momentos desse livro, eu me identifiquei profundamente com Júlia. Senti isso na pele. Meu pai "não suportava a minha mãe", falava que ela era a pior pessoa do mundo, mas me deixou com ela. Como meu pai, o pai de Júlia pensou apenas nos próprios incomodos e problemas.
Com o abandono do marido, Vera se torna mais amargurada e mais agressiva, exceto a noite, quando busca afeto na filha para silenciar sua solidão. Júlia aproveita o que pode quando sua mãe abaixa a guarda, porém, na maior parte do tempo, a menina fica sozinha com suas dores e só tem seu diário e um pouco de música para lhe acolher. Júlia não consegue se ajustar na escola, especialmente após o divórcio dos pais, pois além de ser "diferente", passa a reproduzir a violência que sofre, agredindo suas colegas. Em uma ocasião, chega a quebrar o nariz de uma menina. Para "ensinar" à Júlia que "quebrar coisas tem consequências", Vera lhe dá uma surra e quebra todos seus pertences. A lição que Júlia tira disso, é que "quebrar coisas tem suas consequências apenas dependendo de quem você é". 
Apesar da agressividade, Júlia é querida por professores, que diferente de seus pais veem seu potencial criativo, sua sensibilidade e sua inteligência. A diretora então sugere que Júlia comece a praticar balé para ter onde alocar suas emoções e energias. A garota fica muito feliz com a ideia, pois ama música e vê muita beleza na dança, mas não é bem aceita pelas outras meninas e nem pela professora de dança e novamente é rejeitada, recebendo o rótulo de inadequada e sendo jogada na solidão.
A história de Júlia é pesada e triste. É, por fim, um perfeito retrato de filhos de pais disfuncionais, de pais divorciados e de famílias presas em ciclos de violência; pinta fielmente a solidão e a impotência de algumas crianças frente a pais que abusam de "autoridade". Contudo, Aline Bei consegue contar essa história de forma quase leve. Não é uma leitura que gera agonia, apesar de gerar revolta e muito impacto com frases muito marcantes e análises sociais certeiras. É realmente como assistir ao mais sensível balé de palavras. O que me impressiona e me encanta, é que apesar de toda a violência e solidão a qual foi exposta, o que gerou muita revolta justificada, uma inadequação e sentimento de desconfiança natural, Júlia consegue, SIM, se tornar uma pessoa boa, empática e sensível. Uma pessoa que oferece muito mais aos pais do que eles merecem.
Eu me identifico muito com a Júlia em diversas questões. São tantos detalhes que a autora inseriu nessa história que eu também vivi, tantas situações que eu jamais pensei que outras pessoas tivessem passado, que me senti até mesmo invadida, como se ela tivesse tirado confissões de mim e usado em sua obra. Fico pensando se essa é a vivência da autora, apesar de haver uma afirmação de praxe de que tudo aquilo é ficção. Para mim é muito estranho alguém relatar tudo isso de forma tão precisa sem ter vivido isso. Talvez porque minha escrita é muito focada em mim mesma... 
Eu só não gostei do final. Queria ter visto mais essa pessoa que a Júlia se tornou e quem ela ainda poderia se tornar... mas isso não importa. A trajetória é o que importa. Foi uma experiência incrível ler esse livro, foi muito enriquecedor para mim, não só enquanto leitora, mas também enquanto escritora. Confesso que senti um pouco de inveja da genialidade de Aline Bei! Para algumas pessoas isso pode soar horrível, mas na minha linguagem, isso é uma forma de expressar minha admiração. Espero um dia conseguir escrever tão bem, criar uma história tão boa e inteligente (e ir além das minhas próprias vivências). 

Leitura recomendada!