sábado, 11 de novembro de 2023

leitura: pequena coreografia do adeus


Título: Pequena Coreografia do Adeus
Autora: Aline Bei
Editora: Companhia das Letras
Ano de lançamento: 2021
Número de páginas: 282
Lido em: novembro de 2023
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"A queda ensina mais do que o voo"...

Essa é uma das muitas frases impactantes desse livro tão inovador de Aline Bei, que de forma magistral lapida um romance em formato de poesia. Quem não gosta da estrutura da poesia e está preso à prosa, seja pelo aspecto visual ou pela diferença de ritmo, pode estranhar ou até mesmo não dar uma chance à obra de Bei, mas qualquer pessoa com um pingo de sensibilidade que se permitir ler este livro vai ficar extasiada por seu talento e por sua força narrativa.
"Pequena Coreografia do Adeus" nos apresenta, em primeira pessoa, a história de Júlia, desde sua infância, à sua adolescência e começo da vida adulta. Enquanto criança, Júlia vive com sua mãe, Vera, e seu pai, Sérgio, que arrastam uma relação infeliz e por vezes psicologicamente violenta. Vera é uma mulher que veio de um contexto de violência e abandono familiar e carrega um enorme descontentamento pelo rumo que sua vida tomou. Ao longo dos anos, levando consigo as mágoas pela própria mãe e pelo casamento miserável, Vera teve seus sonhos aniquilados e desconta suas frustrações e rancores agredindo a filha, Júlia, tanto fisicamente, quanto psicologicamente. Ela se justifica repetidamente dizendo que sua mãe "era muito pior do que ela", mas Júlia sabe que ser "menos pior" do que alguém ruim não é o suficiente, e logo surge a dúvida, para nós, leitores: será Júlia capaz de quebrar esse ciclo e ser MELHOR do que sua mãe?
Todos os dias a menina leva surras cada vez mais pesadas, enquanto seu pai assiste em silêncio, omisso ao que acontece dentro de sua casa. Seu pai é um homem órfão, que também tem pouco repertório afetivo e não sabe expressar seus sentimentos. Até que um dia ele decide, sem muitos rodeios, abandonar a esposa, dizendo que "ninguém a aguenta". Porém, ao abandonar Vera, Sérgio acaba, por tabela, abandonando Júlia à própria sorte em uma casa onde ela é abertamente vitimizada. A filha até pede para morar com o pai, mas ele rejeita veementemente a ideia. Júlia entende que enquanto seu pai abandonou sua mãe de uma vez, a abandona em pequenas doses.
Pessoalmente, acredito que uma pessoa que se omite nessas situações, é tão ruim quanto quem pratica as agressões, mas é muito comum, na nossa sociedade, em casos de divórcio, a integridade da criança não ser levada em consideração, como se um casamento fosse apenas sobre um casal. Um casamento que gera filhos, é sobre eles também! Como um pai ou uma mãe pode virar as costas e deixar para trás um filho ou uma filha sofrendo abusos? Como em muitos momentos desse livro, eu me identifiquei profundamente com Júlia. Senti isso na pele. Meu pai "não suportava a minha mãe", falava que ela era a pior pessoa do mundo, mas me deixou com ela. Como meu pai, o pai de Júlia pensou apenas nos próprios incomodos e problemas.
Com o abandono do marido, Vera se torna mais amargurada e mais agressiva, exceto a noite, quando busca afeto na filha para silenciar sua solidão. Júlia aproveita o que pode quando sua mãe abaixa a guarda, porém, na maior parte do tempo, a menina fica sozinha com suas dores e só tem seu diário e um pouco de música para lhe acolher. Júlia não consegue se ajustar na escola, especialmente após o divórcio dos pais, pois além de ser "diferente", passa a reproduzir a violência que sofre, agredindo suas colegas. Em uma ocasião, chega a quebrar o nariz de uma menina. Para "ensinar" à Júlia que "quebrar coisas tem consequências", Vera lhe dá uma surra e quebra todos seus pertences. A lição que Júlia tira disso, é que "quebrar coisas tem suas consequências apenas dependendo de quem você é". 
Apesar da agressividade, Júlia é querida por professores, que diferente de seus pais veem seu potencial criativo, sua sensibilidade e sua inteligência. A diretora então sugere que Júlia comece a praticar balé para ter onde alocar suas emoções e energias. A garota fica muito feliz com a ideia, pois ama música e vê muita beleza na dança, mas não é bem aceita pelas outras meninas e nem pela professora de dança e novamente é rejeitada, recebendo o rótulo de inadequada e sendo jogada na solidão.
A história de Júlia é pesada e triste. É, por fim, um perfeito retrato de filhos de pais disfuncionais, de pais divorciados e de famílias presas em ciclos de violência; pinta fielmente a solidão e a impotência de algumas crianças frente a pais que abusam de "autoridade". Contudo, Aline Bei consegue contar essa história de forma quase leve. Não é uma leitura que gera agonia, apesar de gerar revolta e muito impacto com frases muito marcantes e análises sociais certeiras. É realmente como assistir ao mais sensível balé de palavras. O que me impressiona e me encanta, é que apesar de toda a violência e solidão a qual foi exposta, o que gerou muita revolta justificada, uma inadequação e sentimento de desconfiança natural, Júlia consegue, SIM, se tornar uma pessoa boa, empática e sensível. Uma pessoa que oferece muito mais aos pais do que eles merecem.
Eu me identifico muito com a Júlia em diversas questões. São tantos detalhes que a autora inseriu nessa história que eu também vivi, tantas situações que eu jamais pensei que outras pessoas tivessem passado, que me senti até mesmo invadida, como se ela tivesse tirado confissões de mim e usado em sua obra. Fico pensando se essa é a vivência da autora, apesar de haver uma afirmação de praxe de que tudo aquilo é ficção. Para mim é muito estranho alguém relatar tudo isso de forma tão precisa sem ter vivido isso. Talvez porque minha escrita é muito focada em mim mesma... 
Eu só não gostei do final. Queria ter visto mais essa pessoa que a Júlia se tornou e quem ela ainda poderia se tornar... mas isso não importa. A trajetória é o que importa. Foi uma experiência incrível ler esse livro, foi muito enriquecedor para mim, não só enquanto leitora, mas também enquanto escritora. Confesso que senti um pouco de inveja da genialidade de Aline Bei! Para algumas pessoas isso pode soar horrível, mas na minha linguagem, isso é uma forma de expressar minha admiração. Espero um dia conseguir escrever tão bem, criar uma história tão boa e inteligente (e ir além das minhas próprias vivências). 

Leitura recomendada!