domingo, 31 de dezembro de 2023

mudança

No começo do ano eu disse que meu espírito estava pedindo por mudança. Mas como mudar? De tantas formas, mudança nunca foi algo fácil para mim. Eu já fui bem impulsiva, até mesmo destemida diante do perigo, mas essa impulsividade nunca produziu nenhuma mudança real na minha vida. Em questões práticas e necessárias para viver em sociedade, sempre me vi travada.
Hoje eu me vejo como uma pessoa muito mais cautelosa. Os anos e as pessoas me fizeram alguém medrosa. Até na minha autodestruição eu fiquei mais contida. E de repente, nada daquilo fazia sentido. A autodestruição, que antes me dava algum alívio, já não surtia efeito.
Eu precisava de uma mudança, meu espírito estava pedindo por isso, mas eu não sei como mudar. Qual direção tomar? Quais medidas? Quais ações? E eu caí num abismo, que foi desconhecer a mim mesma. Comecei a perceber que as coisas que eu gostava, já não gosto mais. Que o que antes era meta, deixou de ser. Que muito do que eu acreditava, já não acredito. Que as coisas com as quais me identicava, já não me identifico. Que muitas vezes digo que gosto de algo que gostava antes, só por hábito. Hoje eu conheço mais quem eu fui, do que quem eu sou.
E ninguém me conhece também. Não de verdade. As pessoas conhecem e buscam quem eu fui, não quem eu sou.
Do que eu gosto agora? Quem eu sou agora?
Como mudar, quando não sabemos quem somos e o que queremos?
Até que o universo impulsionou esse processo de mudança pra mim. De certa forma, as coisas foram se encaixando e funcionando a meu favor. Não estou dizendo que esse ano foi fácil, pelo contrário. Eu senti muita dor, física e emocional. Senti muita solidão. Mais do que eu pensei que pudesse suportar. Mas também ganhei algumas ferramentas e armas para tentar navegar pelo caos que sempre foi minha vida.
Primeiro, a natação, que é algo que eu gosto desde criança e não tinha acesso. Voltar para a natação depois de tantos anos, foi como reencontrar a Cíntia de 10 anos. Em alguns aspectos, eu me vi muito similar a ela, mas em outros, muito diferente. Eu achei que ela sentiria orgulho de saber que nós não temos vergonha do nosso corpo mais e que estamos finalmente construindo uma relação mais saudável com comida. Apesar dos muitos desafios envolvidos em fazer aulas de natação, tive muitos momentos de paz e contentamento dentro da água esse ano. E espero levar isso para 2024.
Depois consegui uma psicóloga muito boa e empática, com a ajuda de um amigo, e na sequência uma psiquiatra especialista em neurodiversidade, com a ajuda de uma seguidora gorda e autista, e embarquei num processo de olhar pro meu passado e pros meus diagnósticos até aquele momento de uma forma diferente. Há muito tempo eu sentia que meus diagnósticos dos último 10 anos não contemplavam minhas vivências e minhas dificuldades diante do mundo. Eu sentia que não era o suficiente para explicar minhas necessidades de suporte. A psiquiatria vai avançando, e com isso mudam definições e conceitos. Aos poucos, quem não era visto e nem validado, começa a ser. Poucas vezes tive um acolhimento psicológico e psiquiátrico realmente humano. Poucas vezes me senti vista em consultórios de saúde mental. Com essas duas profissionais atuais, eu senti que fui vista e validada. Viram além da tristeza, além das cicatrizes, além até mesmo dos abusos. Olharam e me ajudaram a olhar pra minha vida toda, desde quando eu era bebê. Eu descobri coisas (com a ajuda da minha mãe, que respondeu questionários) sobre a minha primeira infância que não fazia idéia e que elucidaram muitas questões do passado e do presente. Que levaram a novos diagnósticos, que podem me garantir o suporte que eu preciso para talvez conseguir mudar de forma mais substancial.
Receber diagnósticos corretos depois de tantos anos de luta pela minha saúde mental foi positivo, mas não posso dizer que foi fácil desapegar de diagnósticos que carreguei por mais de 10 anos, mesmo que com eles eu carregasse muita marginalização e negligência. Era o que eu sabia. Eu passei anos lendo e estudando sobre aquilo. Agora eu estou num campo semi-desconhecido. Ainda estou digerindo tudo que está atrelado a isso, inclusive as possibilidades que me foram negadas com um diagnóstico errado por boa parte da minha vida. Eu poderia ser outra pessoa se tivesse tido o tratamento adequado. O que ainda é possível salvar disso?
Esse ano eu fiquei bem introspectiva, mais do que o normal, e guardei muito de mim para mim mesma.  Eu sempre olhei muito para o meu passado, o expus, mas sempre com rancor, às vezes até de mim mesma. Nunca consegui me acolher muito bem. Com a minha psicóloga atual, eu estou conseguindo olhar para o passado, para as diversas Cíntias que fui, com acolhimento. Quando não sou capaz de dar esse acolhimento, minha psicóloga acolhe as Cíntias do passado e a Cíntia do presente, sentada ali na sua frente.
Acho que nunca estive tão aberta para o tratamento psiquiátrico e psicológico como estou nesse momento, e minha cabeça também está mais clara com as medicações e as intervenções terapêuticas agora que não consumo nenhum tipo de droga (nem mesmo álcool) e não estou sendo dopada com remédios ineficientes para o meu caso. É algo totalmente diferente do que vivenciei até aqui, fazendo tratamento desde os meus 15 anos. Isso é mudança, certo?
Depois de receber os novos diagnósticos, sobre os quais ainda não me sinto confortável para aprofundar muito, fui conversar com a minha psiquiatra anterior à atual, que me acompanhou antes da pandemia. Eu gostava muito dela e nos tornamos amigas quando o sistema nos separou enquanto paciente e profissional. Falei para ela sobre esses novos diagnósticos e pedi a opinião informal dela, como alguém que sabe da minha história e me acompanhou, mesmo que por pouco tempo. Ela deu sua opinião, mas o que me marcou foi quando ela disse que tudo que eu passei na infância foi enlouquecedor. E que eu enlouqueci, mas os livros me salvaram, de alguma forma, e a minha loucura ficou contida dentro de uma intelectualidade. Eu senti essas palavras. Acho que foi um misto dessa reflexão com o efeito dos remédios, mas depois disso eu recuperei o apetite pela leitura de uma forma que não conseguia há anos. Consegui ler diversos livros depois desse processo e dessa conversa. Voltei a me envolver com as histórias que leio, voltei a sentir aquela ansiedade boa para saber o que acontece a cada virada de página, voltei a ficar tão imersa nas páginas, que os problemas somem. Comecei até a me desesperar um pouco por todo o tempo que perdi, que deixei de ler. Eu fiquei e estou muito contente por voltar a me sentir assim sobre livros.
Por fim, no último minuto do segundo tempo, veio a maior mudança desse ano: a mudança forçada de casa. Fui despejada injustamente de onde morava e em menos de 20 dias, completamente sozinha, tive que encontrar uma nova casa, encaixotar tudo, encontrar prestadores de serviço, limpar tudo,  fazer a mudança e agora termino 2023 tentando finalizar essa mudança. Tentando colocar tudo no lugar, zerar as caixas.
Quando eu recebi o despejo, tentei não me desesperar. Eu já queria mudar de lá, por vários motivos, mas tinha medo. Medo de ir pra outro lugar, de ter que me adaptar a outro lugar, de desapegar de um espaço no qual vivi momentos que nunca mais irei viver, com alguém que amei muito. Medo de ter que conhecer novas ruas. Andar por novas ruas. Conhecer novos vizinhos. Eu iria adiar essa mudança o máximo, pelo medo. Mas a vida se encarregou de me forçar a mudar, porque eu precisava disso. Dizem que há males que vêm para o bem, não? Dessa vez essa frase pareceu verdade. Eu encontrei uma casa muito melhor, que parece ter sido feita para mim, e com toda correria, deu certo.  Eu tinha outros planos para esse fim de ano, para o natal, ano novo e meu aniversário, mas se não fosse isso, se eu esperasse, provavelmente perderia a oportunidade de estar nessa casa que acredito que me fará muito bem.
Eu não fui tudo que queria ser em 2023, mas fui o que deu pra ser. 



domingo, 24 de dezembro de 2023

arte

 Outro dia eu contei sobre uma vez que uma cigana leu minha mão e me disse que eu tenho mãos de cura, que deveria ser médica, ao que eu respondi que o que eu queria era curar as pessoas com a minha ARTE.
Um hater me mandou uma mensagem questionando "que arte que eu faço" que teria o poder de curar alguém, e outras tantas pessoas me disseram que eu sou minha maior obra de arte, e que as "curei".
A arte esteve comigo desde antes de eu saber que ela existia. A arte da escrita, acima de todas. Primeiro como leitora, e depois como escritora. Ela me fez encontrar meu lugar no mundo. Me ofereceu conforto, compreensão, companhia... me fez sentir inteligente quando a escola dizia que eu era burra por não florescer num sistema engessado. E depois todas as outras formas de arte foram surgindo, me cativando e ganhando espaço na minha vida. Eu sobrevivi 28 anos porque a arte existe em mim. Através dela eu pude me expressar, me entender, manter minha sanidade...
Nunca gostei de discutir "o que é arte". Acho este um debate irrelevante e pretensioso. Cada pessoa sente as coisas de uma maneira. O que me afeta, pode não afetar o outro. O que me arrebata, seja pela mensagem ou pela estética, pode fazer o outro bocejar de tanto tédio.
Desenho é arte, pintura é arte, música é arte, cinema é arte, fotografia é arte, escrita é arte, Romero Britto é arte, ler mãos é arte, sexo é arte, o corpo humano é arte. Eu sou arte. A arte não precisa agradar a todos, não precisa ser universalmente conhecida, aceita ou rejeitada, para ser ou não arte. Não precisa ser experimentada por ninguém além de seu autor para ser arte - A arte engavetada ainda é arte. O que você não entende ou não gosta, não deixa de ser arte!
Eu me sinto compreendida quando as pessoas me dizem que eu sou arte, poesia. E sempre que eu recebo mensagens dizendo que eu fiz parte da "cura" de alguém, sinto que não estou aqui à toa. Fico contente de o meu corpo ter se tornado a minha principal ferramenta de expressão, porque, ao menos nessa existência, onde eu for, ele vai estar comigo. Eu não preciso de muito mais que isso.

Texto de 24 de dezembro de 2018