segunda-feira, 25 de setembro de 2023

confissão

aviso de gatilho: descrições fortes envolvendo pedofilia e comportamento autolesivo, menções a insetos 

Sonhei com o meu tio. Ultimamente eu tenho vivido mais em sonhos e pesadelos do que na realidade (será que essa é mesmo a realidade?). Eu estava na casa onde tudo aconteceu, lá em Ferraz, e ele estava atrás de mim, com um lado do corpo podre. A cara dele estava diferente, mas eu sabia que era ele. Eu estava fugindo dele. Tinha uma multidão atrás dele, e de forma aleatória, o meu atual professor de natação estava bem ao lado dele. As pessoas tentavam me forçar a parar de fugir, a ser receptiva. A ser educada.
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Era assim que faziam quando eu era criança. Às vezes eu tentava evitar ficar sozinha com o meu tio, porque sabia que ele faria coisas que eu não entendia, mas que me deixavam desconfortável, e me diziam, de forma impaciente: "vai lá ficar com o Andy". Como se eu fosse um estorvo que cabia a ele cuidar. O papel dele era cuidar de mim. Minha mãe pensava que ele estava cuidando de mim, enquanto ele me fazia tocá-lo por baixo das cobertas, ao lado dos meus irmãos, que assistiam TV sem saber o que estava acontecendo. Minha avó pensava que ele estava cuidando de mim, no cômodo ao lado, enquanto ele abaixava a minha calcinha e me fazia sentar no colo dele. Meu avô pensava que meu tio estava cuidando de mim, enquanto ele colocava açúcar na cabeça do próprio pau e me fazia lamber. Meu pai não sabia se tinha alguém cuidando de mim ou não, enquanto eu engasgava, enojada, no ato.

Tem dias que eu esqueço que o meu tio morreu. Faz mais de um ano que ele morreu engasgado com um pedaço de pizza, mas como eu previ, ele continua vivo de forma nítida dentro de mim. A morte dele não resolveu nada. Ele nunca morre dentro das minhas memórias e dos meus sonhos que viram pesadelos. Dentro da minha solidão e desesperança. Dentro da minha RAIVA. Dentro do meu medo de que façam algo assim com a Júlia. Ele está vivo no meu corpo moído de dor e cansaço.
Eu lembro da voz dele, da textura dele, lembro do cheiro dele: o cheiro de cachaça que eu também tive em mim por muito tempo e que agora não suporto sentir nos bêbados imundos da cidade.
Tenho tido memórias sensoriais da minha infância. São quase delírios. Sinto esse cheiro de sujeira velha misturado com pinga dentro do meu nariz. Estou sentindo agora mesmo. Sinto os insetos rastejando sob a minha pele, como quando me trancavam no porão e riam do meu desespero. Sinto diariamente dores pelo meu corpo, como se eu tivesse levado uma surra de cinto. Me sinto fora do meu corpo, tentando me agarrar a realidade.
Acho que me debati tanto enquanto fugia dele no meu sonho, que acordei com o corpo todo dolorido (mais do que o habitual), e ironicamente, quando sentei para escrever esse texto, senti algo subindo pela minha perna e quando olhei para baixo tinha uma barata em mim. Não era um delírio, era uma barata bem real e grande, esfregando suas patas imundas na minha pele. Antes eu choraria e gritaria, mas estou me sentindo tão cansada, que nem uma barata subindo pela minha perna me provoca grandes reações.
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Depois que meu tio morreu, minha mãe me procurou diversas vezes para lamentar a morte dele. Ele era o irmão preferido dela, o irmão caçula, o irmão que ela fazia de boneca, colocando-lhe vestidos. Não contente em anular a minha dor ao ter me tirado de mentirosa por metade da minha vida, mesmo após a morte dele, ela achou que eu seria a pessoa certa para lhe oferecer consolo pela perda de seu irmão, meu abusador. Eu via as lágrimas presas nos olhos dela, mas não sentia nenhuma pena ou empatia e não dizia uma só palavra enquanto ela falava com amor e saudade dele. Diante da minha mãe eu sou muito diferente da pessoa que muitos conhecem. Eu volto a ser a criança sem voz que um dia fui. Não é medo. Eu não sei o que é, mas sei que não é medo.
Pedi para meu irmão intervir e mandar ela parar de falar sobre ele comigo. Até incentivei que ela procurasse um psicólogo, mas ela insistia em me procurar para dizer o quanto estava abalada e deprimida pela morte dele.
Um dia, cerca de um ano atrás, estávamos em pé na porta da minha casa, eu estava esperando ela finalmente ir embora, quando ela soltou, de forma quase casual, que tinha um arrependimento muito grande: ela abusou dos irmãos mais novos quando ela era adolescente. Eles tinham 5, 6 anos e ela os fazia transar com menininhas que também tinham 5, 6 anos, para ela assistir e se satisfazer.
Enquanto ela me dizia aquilo, eu senti as minhas pernas ficando bambas e só a encarei, enquanto uma lágrima única, contínua, escorreu pelo meu rosto. Eu sabia que meu rosto não tinha expressão além da lágrima que caía. Eu não disse uma palavra, chorei em silêncio, como a Cíntia de 6 anos, mas fui tomada de sentimentos arrebatadores. Raiva, nojo, indignação. Foi como se a morte do meu tio tivesse fechado uma porta, e ela estivesse abrindo outra na bicuda. Eu constatei que essa ferida nunca vai cicatrizar. Eu vou sangrar para sempre pelo que me fizeram, pois toda vez que coloco um band-aid sobre a ferida, alguém a pressiona com violência e a deixa maior. Tem sempre uma nova revelação, uma nova compreensão, uma nova virada. Eu queria conseguir não pensar nisso, nunca mais falar sobre isso, nem na terapia e nem fora dela, mas é algo que foge ao meu controle. Eu sonho com isso. Eu lembro disso. Eu vejo casos iguais ao meu todos os dias. Às vezes, quando estou no meio do ato sexual, eu começo a dissociar e sinto como se fosse meu tio com a língua enfiada entre as minhas pernas e me sinto suja, angustiada, perco o foco e o tesão. Poucas vezes na vida consegui gozar com alguém. O que eu vivi me castra, me isola, me impede de ser tocada por quem eu amo sem ser levada para um quarto escuro e fétido, cheio de culpa.
Quando minha mãe foi embora, constrangida diante do meu silêncio, eu chorei lágrimas que eu nem sabia que ainda existiam dentro de mim. Chorei de soluçar, por mim e por todas as vítimas dela e pelas possíveis vítimas das vítimas dela e assim por diante.
Nos últimos anos, eu culpei a minha mãe pelo que me aconteceu, por ela ter sido negligente, "por não ter percebido" quando meu tio fazia determinadas coisas tão abertamente, quando ela estava no quarto (de costas). Mas aquela informação acrescentava um grau de culpa direto: ela desencadeou a perversão dos meus tios, que fizeram comigo e meus irmãos o mesmo que ela fez com eles. Afinal, se abusaram de mim de todas as formas, também abusaram dos meus irmãos transando com mulheres na frente deles quando eles eram crianças, algo que foi instigado lá atrás, pela minha mãe. Pensei em todas as crianças que ela usou e feriu, em quantas meninas sofreram como eu sofri e sofro, pelos atos dela. Mas o pior foi pensar: e se ela percebeu o que meu tio fazia comigo? E se isso a excitava?
O que ela queria com essa confissão? Era uma forma de mostrar arrependimento e de me dizer que acreditava em mim? Ela queria o meu perdão? Era só sobre a dor dela, de ter fodido a vida do próprio irmão, que se tornou um pervertido, alcoólatra, cheirador de pó, que ficou anos se arrastando pela vida, depois de várias overdoses e complicações de saúde em função da vida que levava?
A minha mãe também sofreu assédio de um tio dela, o que ela me contou e o que sempre me revoltou, pois para mim era inconcebível ela ter passado por uma coisa e não acreditar quando eu relatei ter sofrido algo similar. E eu sei que assim como eu e meus irmãos, ela foi exposta a pornografia desde a infância e se tornou viciada nisso muito cedo. Mas perpetuar isso foi uma escolha. Ter colocado meus irmãos e eu para assistir pornografia quando éramos crianças foi uma escolha. As vezes que ela transou na minha frente, foi uma escolha.
Assim como os meus tios terem abusado de mim e dos meus irmãos após serem abusados por ela, foi uma escolha deles. Minha família está presa num ciclo de violência muito forte, que foi se estabelecendo geração após geração. Isso explica as coisas, mas não justifica nada. Eu não consigo sentir pena ou perdoar meus tios. Não consigo sentir pena ou perdoar o que a minha mãe fez e as possíveis repercussões que os atos dela tiveram na vida das crianças que ela abusou. Nas repercuções que isso teve na minha vida. Eu não queria essa informação. Eu não queria que ela tivesse me contado isso. Não queria ter essa imagem na minha cabeça, nem o medo de ela fazer isso com a minha sobrinha ou meus futuros sobrinhos. Não sei que tipo de relação eu posso ter com ela depois de todas as coisas que aconteceram.
E eu não sei que tipo de vida ainda é possível para mim, depois de tudo o que me fizeram. Eu tenho me sentido como se a minha vida estivesse acabando e eu tivesse perdido todas as possibilidades lá no começo de tudo. Me sinto tão cansada e injustiçada. Tão sozinha.
No meu sonho, o meu professor de natação, após compreender porque eu estava fugindo do meu tio, me ajudava a escapar dele e me acolhia em um abraço. Eu estou tão sozinha e sem referências de afeto, que o mais próximo disso que a minha mente consegue fantasiar é um homem que eu vejo alguns dias na semana e troca poucas palavras comigo. Que me oferece um sorriso e um aceno de longe e que me cumprimenta e me elogia por ter conseguido fazer uma aula apesar das minhas dores e da depressão...
Esse é o máximo de socialização que tenho há algum tempo.
Eu me sinto tão sozinha e desesperada pela falta de afeto provocada por uma vida de abusos, que meu impulso é gritar loucamente e me bater contra a parede, mas o meu corpo está tão cansado depois de toda essa violência ancestral e energia gasta em mecanismos de defesa, que nem a autoagressão é uma possibilidade.
Muitas vezes eu fantasio com alguém me abraçando e me tocando com gentileza para amenizar as dores do meu corpo. Outras vezes, pela impossibilidade do afeto,  eu fantasio com alguém me cortando com uma gilete para me fazer sentir esse alívio que eu sozinha não consigo provocar, porque meu corpo está completamente paralisado numa cama.