quarta-feira, 29 de maio de 2024

maio de 2014

Aviso de gatilho: dependência química 

Esse mês eu completei 10 anos sem cocaína. Nunca pensei que isso seria possível. Dá até medo de dizer isso, de "comemorar" isso, e um dia ter que admitir que voltei à estaca zero. É o meu lado ansioso falando, mas eu nunca descarto essa possibilidade, porque mesmo depois de 10 anos sem, continua sendo muito difícil resistir a tentação. Eu ainda sonho com cocaína, e acordo com a sensação de que usei. Acordo querendo mais. Ainda sinto o cheiro dela, feito um cão farejador, nos pontos de São Paulo onde eu comprava. Ainda sinto vontade de me entregar a ela nos meus piores dias. E não só a ela, mas às outras drogas que usava na época, e que em conjunto, me davam o amortecimento que eu precisava para viver, mas que ao mesmo tempo me destruíam. Eu sentia ela agindo no meu corpo, me matando aos poucos, me fazendo vomitar sangue, mas eu não conseguia e nem queria parar aquilo. Sim, eu não queria. Eu queria a decadência e a dor que ela me trazia. Eu não sei porque sou assim, não sei porque vejo beleza na decadência, mas sempre vi e ainda vejo. A decadência me atrai como uma lâmpada atrai mariposas. Não ser tão decadente é uma escolha diária, desde que em um dia de maio de 2014, assim do nada, eu disse "chega". E me mantenho "limpa", apesar das amarguras da vida. Apesar da atração pela decadência. Apesar da necessidade, que não é só psicológica, mas também física. 
Nem eu entendo de fato o que me fez parar e resistir todos esses anos, porque tenho poucos motivos palpáveis para ficar sóbria. Talvez seja o fato de que com o tempo, ela foi fazendo menos e menos efeito "positivo" e passou a me proporcionar apenas os desprazeres. Ou talvez seja porque eu não gostava de mim quando usava cocaína. Eu me tornei uma pessoa irresponsável e mentirosa. Eu vivia uma vida dupla, tripla, sempre tinha que cobrir meus rastros, inventar mentiras que nem importavam de verdade, mas que dentro da minha paranóia crescente, eram necessárias. 
Os danos que a cocaína causou na minha vida continuam firmes e fortes depois de mais de 10 anos. Acredito piamente que muitos dos meus problemas de saúde física e mental atuais se devem ao período de uso de cocaína, álcool (que consumiu ainda mais a minha vida do que a cocaína) e outras drogas. Mas o pior pra mim são os danos morais. Eu tive que fazer coisas humilhantes para manter esse vício. Muitas coisas eu não gosto nem de relembrar e que provavelmente nunca vou contar para ninguém.
Esses dias meu irmão descobriu uma mentira que contei para ele lá atrás, para encobrir o uso de drogas, e ficou com tanta raiva de mim, que seu rosto ficou vermelho. Eu vi o olhar de decepção e até repulsa dele e me senti péssima. Me senti como se tivesse cometido tal falta ontem. Constantemente tenho que me desculpar por coisas que fiz mais de 10 anos atrás.
A raiva dele foi como ser punida por algo que não fui eu que fiz, porque de muitas formas, eu não sou mais a Cíntia que mentiu pra ele. Eu sou uma pessoa completamente diferente da Cíntia de 21 anos. De 24 anos. Mas isso não apaga o erro...
Depois desse episódio com ele, fiquei pensando em quão pouco minha família me conhece, inclusive meus irmãos, que eu amo e considero próximos. Eu tive que mentir tanto, esconder tanto, que me tornei uma desconhecida para quem estava mais perto de mim. Acho que quem me lê aqui, conhece mais de mim e do meu passado do que quem viveu o passado comigo.
Hoje tenho a Júlia na minha vida e penso muito nela, em quem eu vou ser pra ela, no exemplo que eu vou dar, e isso me impede de me entregar aos meus pensamentos mais decadentes e autodestrutivos (porque eu sempre fiz mais mal pra mim do que pros outros, mas às vezes o mal respinga).
Ela tem sido meu freio. Porém, nem sempre é o suficiente ser a tia que precisa dar exemplo. Muitas vezes eu só quero me entregar aos meus impulsos e necessidades destrutivas.
Mas é como dizia Renato Russo (e o NA): "só por hoje eu não vou me destruir"... E por 10 anos, tenho me preservado "por hoje", somando vários hojes. Estou o mais sóbria que já estive na vida. Parei de beber há bem menos tempo do que parei de cheirar, mas há um tempo significativo. Ando me sentindo até meio zen. Apesar dos pesares, parece que encontrei um pouco de paz. Só por hoje...