quarta-feira, 5 de outubro de 2022

uma flor murcha no concreto da cidade

Eu cheguei nesse ponto da vida que parece que tudo se resume a bebês. Para todos os lados que eu olho, vejo bebês ou alguém falando sobre bebês. Na mídia, nas redes, nas rodinhas de conversa:  bebês. Alguns se programando para tê-los, outros se esquivando de tal possibilidade com todas as forças.
Quase todas as conversas que tenho com os meus irmãos, recém-chegados aos 30, terminam na expectativa de trazermos mais bebês para nossa família e nessa corrida contra o tempo.
Para eles é quase uma questão de linhagem. Quase uma obrigação moral de manter o nome Lira vivo.
Para mim é algo mais... 
......
Eu vejo um grande relógio pendurado na parede da minha mente. Os ponteiros correndo e mudando de posição freneticamente. Ouço o tic tac tic tac tic tac dentro de mim 24 horas por dia e me sinto murchando a cada tic, apodrecendo a cada tac.
Tento não pensar em nada disso, mas o relógio está sempre ali, tic tac em movimento, um lembrete ambulante me mantendo agitada, insone, impotente... e paradoxalmente, estática, em posição de espera. Paralisada pela iminência de cada segundo e o que a soma de todos eles pode me trazer. Loucura, esterilidade, fatalidade.
A última conversa que tive (ou melhor, participei) sobre bebês, terminou com um soco no meu peito, quando ouvi a profecia: "acho que a Cíntia não vai ter filhos".
"Não diga isso", ouvi minha própria voz rebater sem forças... "Se esse for o caso, eu vou ser infeliz para sempre".
.... Sempre quis um filho. Mas eu seria uma boa mãe? O que eu poderia oferecer aos 15? O que eu poderia oferecer aos 25? O que eu posso oferecer agora?
32 anos, quase 33. Eu nunca pensei que chegaria até aqui. Com todo o meu coração, eu achei que morreria extremamente jovem. Me conformei com não ter nada naqueles pretensos breves anos. Porém, contra a minha vontade, os anos foram se acumulando,  e já não tem sido breve há algum tempo. O peso de não ter nada, que era suportável, agora me esmaga.
É angustiante pensar em ser infeliz para sempre, mas me consolo: quanto mais pode durar o meu "para sempre"?
Independente das ironias da vida, provavelmente tenho menos tempo de vida para viver do que de vida vivida.
Cada dia que eu vivo dessa forma, é um dia a menos para ser a mãe desse ser que eu sempre quis. Cada minuto que passa, esse bebê fica um pouco mais fora do meu alcance.
Não sinto orgulho real de ainda estar viva, "vivendo" da forma que eu "vivo". Eu sinto que ainda estar aqui, mas distante de tudo que eu sempre quis, é o meu castigo por ter tentado tanto morrer. É o maior foda-se que a vida me deu, uma forma impiedosa de mostrar quem é que manda nessa porra (!).
Eu não quis, não planejei, mas fiquei aqui.
Estou aqui... ?
Existo trancada em uma caixa de vidro disposta no meio de uma multidão que se renova a todo momento. Daqui de dentro eu vejo as pessoas e elas me assistem de relance enquanto transitam, indo de um lado para o outro, ora sozinhas, ora em pares, ora em grupos... carregando amores, carregando flores, carregando dores impermanentes. Carregando bebês.
Atrás do vidro eu olho fixamente para cada um desses bebês.
Quem observa meu olhar demorado e por vezes inexpressivo pode pensar que eu odeio esses seres que choram e riem, que babam e se agitam entre braços e babados e brinquedos. Por fora eu não sei expressar muito. Por dentro, eu sou tomada ao mesmo tempo por um amor e uma tristeza que me rasga, que me afeta de tal forma que eu penso novamente que a morte é a minha única salvação. 
Por instinto eles também me olham, mas com seus olhos inocentes, provavelmente não entendem o afeto que o meu sorriso sutil e triste lhes oferta.
Coloco os óculos escuros e choro escondida atrás das lentes e da minha falta de expressão. A violência da minha mãe me fez aprender a chorar em silêncio e eu nunca desperdicei esse dom.
A violência da minha mãe é o que me fez questionar, por muitos anos, se eu seria uma boa mãe.
Eu seria uma boa mãe?
Eu seria uma boa mãe, meu bem?
O meu bem, numa sombria tentativa de conter a urgência dos meus desejos (ou exigências?), disse de muitas formas que não. Eu não seria uma boa mãe. Ao mesmo tempo, balançava na minha frente a possibilidade de me dar um filho, como um adestrador balançando uma recompensa na frente de um cachorro, usando meu desejo (ou exigência?) como ferramenta de controle. Se eu fosse uma boa menina, ele me daria um filho. Algum dia.
Ele regou e nutriu essas sementes com tanta dedicação, que cresceu uma floresta dentro de mim.
Eu estou perdida na mágoa dessa floresta, regando novas sementes de dúvidas e desesperos com as minhas lágrimas.
.........
As pessoas passam, os bebês passam. Às vezes acenam. Seguem.
Aqui dentro eu estou sempre sozinha, me debatendo com essa dor que nunca cessa.
Os dias passam e eu vejo tudo de longe, sonhando sonhos impossíveis, me sentindo cada dia mais intocada e morta.
Eu seria uma boa mãe, meu bem?
Eu queria tentar ser.

Tic tac tic tac tic tac