terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Juventude sugada: recortes e padrões das relações entre adolescentes e pessoas adultas

(aviso de gatilhos: menções a solidão da pessoa gorda, pedofilia, violência sexual, violência psicológica, violência física)

Nota: os cards complementam o texto!


Eu fui uma pré-adolescente sonhadora, carente, com uma sexualidade precocemente aflorada... e sem supervisão ou direcionamento. 
Talvez por influência das novelas que eu assistia compulsivamente, eu sempre quis amor. Queria namorar. Sendo uma menina gorda, isso parecia muito distante para mim. Enquanto eu via minhas colegas magras ficando e namorando meninos da nossa faixa etária (literalmente via, porque eu era a ponte para que isso acontecesse sem que suas mães descobrissem, cedendo minha casa e minha vigilância), trocando cartinhas (às vezes escritas por mim) e sendo levadas a encontros em parques de diversões, eu era assediada por homens tão velhos quanto o meu avô e rejeitada por todos os meninos ao meu redor. Eu ainda não havia lidado com aquela vozinha na minha cabeça dizendo que eu também gostava de meninas, o que de qualquer forma não teria me trazido nada palpável, porque como aprendi mais tarde, meninas e mulheres rejeitam corpos gordos até mais do que muitos homens. Eu assistia minhas colegas beijando, assistia minhas novelas mexicanas e escrevia no meu diário, como um clichê ambulante, esperando que um dia chegasse a minha vez, mas temendo que isso nunca acontecesse.
Em todos os lugares, especialmente em casa, eu ouvia que se não emagrecesse, ninguém iria me querer além daqueles velhos que me diziam absurdos pelas ruas desde os meus 9 anos, o que me causava profundo nojo, mas fazia minha mãe rir.
Eu pensava que teria sorte se um dia fosse beijada. Eu tinha medo de morrer sem amor. De morrer virgem.
Até que descobri a internet. Muitos anos atrás, anonimato era basicamente uma regra da internet. Não era necessário confirmar nenhum dado, e quase ninguém tinha câmera para tirar fotos e postar. Não era realmente esperado que alguém mostrasse a verdadeira face. Podíamos ser qualquer pessoa. De repente era possível encontrar qualquer tipo de pessoa, com qualquer tipo de interesse.
E assim eu encontrei pessoas que "não ligavam" que eu fosse gorda e que eram  "interessantes" e "sensíveis". Pelo menos a princípio. Eu tinha 13 anos, e comecei a ter contato com pessoas, homens e mulheres, de 20 a 40 e poucos anos que me falavam de livros de poesia, música, paixão... E tesão. Começavam o papo com a poesia, logo estavam me chamando de "meu amor" e dizendo que eu era "muito madura pra minha idade", "muito interessante", e terminavam se tocando na frente da web cam para que eu assistisse (a pedido delas). Eu ficava apavorada, mas também instigada e sempre cedia a esse instinto. Muitas dessas pessoas nem "precisavam" que eu mostrasse também, bastava para eles me mostrar o que faziam, escondendo o rosto e narrando o que estavam pensando, enquanto eu me tocava e também descrevia meus movimentos, sensações e sentimentos. E deixo claro que não foram só homens: muitas mulheres mais velhas fizeram isso comigo. Com elas eu me sentia até mais a vontade para também ligar a web cam.
Provavelmente essas pessoas nunca mais pensaram em mim e nem se lembram que eu sequer existi algum dia, mas EU lembro nitidamente da maioria delas. Lembro sempre de uma dessas mulheres com quem eu conversava com frequência quando eu tinha 15 anos e ela mais de 40. Ela adorava se exibir nua para mim quando o marido dela saía para trabalhar. Adorava a possibilidade de ser pega fazendo isso.
Diferente de muitos adolescentes que desenvolveram compulsão por pornografia, eu não precisava nem entrar em sites pornô, pois tinha adultos gerando pornografia exclusivamente pra mim. Eu ficava no computador no meio da sala de casa, com 13, 14, 15 anos, fazendo sexo virtual com adultos, às vezes quase sendo pega também. E na hora eu me sentia bem, era fisicamente gostoso, mas depois me sentia suja, culpada, errada. Usada. Sentia nojo deles e de mim. Os impactos disso na minha vida foram exatamente iguais aos de vício em sites pornográficos. Por "covardia", eu não "consumei o ato" com nenhuma dessas pessoas, apesar de ter encontrado algumas delas, mas todas aquelas ocasiões, somadas aos abusos sexuais que sofri na infância, fizeram um estrago na minha percepção de sexo, amor e confiança que durou anos, e retardou bastante minhas primeiras experiências sexuais físicas, porque sexo para mim era algo sujo, ligado a culpa e medo. Eu não conseguia pensar em fazer sexo com alguém que eu realmente amasse, porque seria como sujar esses sentimentos.
E mesmo quando essas interações não tinham nenhuma abordagem sexual, eu vivi experiências bizarras e que poderiam ter acabado muito mal. Uma vez, quando eu tinha por volta de 13 anos, me apaixonei por um cara na casa dos 30 anos, que primeiro me convenceu, com galanteios e palavras doces, que estava apaixonado por mim e "não se importava" com o meu peso, e depois, usando da minha insegurança, tentou me convencer de que se EU não gostava de ser gorda, ele poderia me ajudar a emagrecer, porque "me amava" e queria me ver bem. A proposta dele? Que eu RETIRASSE alguns dos meus órgãos. Segundo ele, eu não precisava de todos para viver e a retirada de alguns me faria perder peso. Ele queria me indicar onde e como fazer isso. A princípio pensei que ele estava brincando, mas quando vi que era sério, cortei contato. Eu não era TÃO ingênua assim. Mas anos depois fiquei pensando que alguma garota talvez tenha sido ingênua e desesperada o suficiente para ter tentado esse "método", que com certeza nada mais era do que um golpe para venda de órgãos. 
Aos 15 anos eu me relacionei online com um cara de 21 anos, e quando terminei o "namoro", logo após nos conhecermos pessoalmente (encontro no qual ele me beijou a força), ele começou a me perseguir, a me difamar online e ameaçava, inclusive através de ligações, contar meus segredos para o meu pai. Essa perseguição durou uns 2 anos. Nenhum adulto ao meu redor tinha ideia de que essas coisas aconteciam na minha vida, e até hoje muita gente minimiza a gravidade e as consequências dessas situações, dizendo que nada disso foi "real", porque aconteceu "na internet". Uma pessoa adulta, homem ou mulher, se masturbar na frente de uma adolescente de 13 anos enquanto fala putaria, é violência sexual. Um adulto convencer uma adolescente de 13 anos a se masturbar na sua frente, é crime. Um adulto de 21 anos perseguir, difamar e ameaçar uma adolescente de 15 anos, é violência psicológica, é crime. São atos moralmente errados e ilegais, independente do lugar ou da maneira que aconteceram. Foi bem real para mim e teve efeitos duradouros na minha vida afetiva e sexual.
É claro que poderia ter sido muito pior. Eu poderia ter fugido de casa, poderia ter engravidado, apanhado, ter sido estuprada ou assassinada. Poderia ter me tornando de fato parte das estatísticas, e talvez ninguém ficasse sabendo o que aconteceu comigo.
Um adolescente "se relacionar" com uma pessoa adulta não é mais TÃO naturalizado quanto já foi um dia, mas ainda está muito longe de deixar de acontecer. Muitas pessoas jovens caem nas garras de pessoas adultas e sofrem violência psicológica, física e sexual, às vezes sem que ninguém saiba, mas outras vezes com aval dos pais e responsáveis das mesmas. Infelizmente não tem como PROIBIR uma pessoa de se relacionar com outra, nem mesmo um adolescente. Tentar proibir, muitas vezes até aumenta a vontade de estar naquela relação.
O que podemos tentar fazer é conscientizar esses jovens dos riscos que essas "relações" oferecem. Deixar aberto um canal de comunicação claro e livre de julgamentos. Eu realmente queria que adolescentes entendessem que quando nós, pessoas adultas, problematizamos elas se relacionarem com pessoas mais velhas, não é um ataque a elas e nem estamos sendo caretas ou conservadoras, estamos tentando alertá-las, zelar por elas, pois muitas vezes já sofremos na mesma situação. Infelizmente não é uma comunicação fácil. Eu mesma não teria ouvido ninguém na minha época de adolescente, ainda que tivesse alguém para cuidar de mim.  Eu sei que é muito sedutor ter 13, 14 anos e ouvir de uma pessoa adulta, especialmente quando a admiramos, que somos "maduras para a nossa idade", que somos "mais interessantes do que muitas pessoas adultas". É até gostosa a sensação de saber que alguém sente tesão por nós, e de sentir tesão também, afinal, estamos conhecendo nossos corpos. Mas isso tem seu peso e seu preço. Ter desejos aos 14, 15 anos, e estar pronto para bancar esses desejos, ainda mais com uma pessoa adulta com exigências e com experiência, são coisas diferentes.
Uma pessoa maior de idade que se relaciona com uma pessoa pré-adolescente ou adolescente, já está errada ou com más intenções desde o começo. Muitas vezes, a imatura é ela, por isso "não se garante" com pessoas da mesma idade e precisa conquistar pessoas mais jovens, que não perceberão isso. 
Só com o tempo e bastante terapia eu entendi os perigos que passei ao me expôr com 13, 14 anos, não só sexualmente, mas psicológica e fisicamente, revelando todos os meus segredos e me encontrando com pessoas adultas da internet. Só o tempo me fez admitir que fui ingênua, que fui usada como objeto de prazer e que não, eu não tinha maturidade para me relacionar com tais pessoas: não tinha como eu ter, pois estava começando a vida, e já vinha de um lugar ruim. É difícil para um adolescente admitir que não é extremamente maduro, que ainda não tem muita bagagem. Soa como uma ofensa, eu sei, mas não ser maduro na adolescência não é demérito, é uma parte natural do processo do ser humano. Nessa fase da vida estamos aprendendo a viver, até os nossos cérebros ainda estão em formação. Entender isso o quanto antes, ou aceitar os conselhos de quem passou pelo mesmo, pouparia muita dor e TRAUMA para o resto da vida, pois os relacionamentos que vivemos na adolescência nos marcam pra sempre, moldam como iremos nos relacionar no futuro...
E uma relação com uma pessoa bem mais velha SEMPRE vai ter um desnível de poder absurdo e por isso quase sempre vai "se tornar" abusiva e SEMPRE trará prejuízos emocionais. E isso nem se restringe às relações entre adolescentes e pessoas maiores de idade. Esse desnível de poder e potencial abusivo se estende a qualquer relação onde as pessoas tenham muita diferença de idade, seja uma pessoa de 15 com uma de 20 ou 30, seja uma pessoa de 25 com alguém de 40 ou 50. São fases bem diferentes da vida, marcadas por diferentes níveis de experiência e status social. 
É inegável que uma pessoa com menos experiência de vida está mais suscetível a ser manipulada por uma com mais experiência. E independente da quantidade de coisas que aconteçam no começo da vida de uma pessoa, tem coisas que só o tempo e um maior período de observação de mundo pode ensinar!
E isso se intensifica por questões financeiras, não só porque dinheiro garante acessos que geram experiência, mas porque com dinheiro é fácil levar  pessoas jovens à dependência financeira (seja por necessidades básicas ou ambição). Dinheiro é ferramenta de controle, e quanto mais uma pessoa tem, mais fácil é comandar vidas, perseguir pessoas.
Existem exceções, é claro, mas é muito mais provável uma pessoa mais velha ter estabilidade financeira do que uma mais nova. E mesmo quando a pessoa jovem pensa que ela também está usando e ganhando algo, ela está sendo mais usada e perdendo muito mais do que a pessoa mais velha.
É claro que *entre adultos* pode acontecer uma relação natural e saudável mesmo com uma grande diferença de idade. O amor pode nos surpreender. Mas são poucos os casos com a chamada "age gap" que não terminam em abusos e tragédias. Temos muitos mais exemplos negativos do que positivos, tanto na vida de pessoas anônimas, quanto na vida de pessoas públicas. Um caso brasileiro bem conhecido é o de Eloá, que em 2008 foi assassinada por seu então ex-namorado. Eloá tinha 15 anos e seu assassino tinha 22 anos. É muito fácil recordar de casos semelhantes envolvendo adolescentes e ex-namorados maiores de idade que cometeram tais crimes após o término do relacionamento.  
Recentemente Demi Lovato lançou a música "29", expondo sua experiência de ter se "relacionado", quando tinha 17 anos com um homem de 29 anos. Na letra ela reflete sobre como uma adolescente de 17 não é plenamente capaz de consentir a uma relação com essa diferença de idade e deixa claro o papel de PODER que ele exerceu em sua vida. Antes de Demi, esse mesmo homem já havia se "relacionado" com Mandy Moore quando ela tinha 15 anos e ele 20 (e depois inclusive espalhou que havia tirado a virgindade dela, como se isso fosse uma conquista) e com Lindsay Lohan, quando ela tinha 17 e ele 24.
O caso de Evan Rachel Wood é outro que nos mostra a realidade desse tipo de relação. Wood tinha 18 anos quando começou a se relacionar com Marilyn Manson, que tinha 37 anos. Há alguns anos ela tem exposto os abusos que sofreu, desde ser "marcada" (através de escarificação), distanciada de familiares, impedida de usar anticoncepcional, ser forçada a cozinhar após um aborto, a estupro. A vida e a carreira dela foram severamente afetadas por todas essas situações, e ainda assim o público prefere ficar ao lado de Manson.
Ao se relacionar com uma pessoa mais velha, além da diferença de idade e de níveis de experiência, tanto meninas quanto meninos, em diferentes graus e formas, ainda terão que lidar com o machismo de toda a sociedade. Enquanto meninas são culpabilizadas por essas "relações" e abusos, acusadas de "terem provocado" pessoas mais velhas, em especial, homens mais velhos, meninos terão os abusos sofridos anulados. Qualquer tentativa de expor abusos de cunho sexual, será silenciada pela percepção social de que meninos serem "sexualmente iniciados" por mulheres mais velhas é sorte. Meninos que sofrem abusos de homens e meninas que sofrem abusos de mulheres passam ainda pelas ideias preconceituosas, limitadas e estigmatizante de uma sociedade heteronormativa. Enquanto meninos abusados por mulheres têm sua "masculinidade" glorificada, meninos abusados por homens têm sua sexualidade questionada ou colocada como fator gerador de tal violência, fazendo com que poucos garotos nessa situação exponham os abusos sofridos.
Apesar dos recortes possíveis, quando a pessoa "mais jovem" (maior de idade) da vez é só "mais uma" numa longa lista, quando existe um padrão bem definido, e se relacionar com pessoas bem mais jovens é uma REGRA nas relações de uma pessoa mais velha, há de se pensar no porquê. Isso é nítido quando observamos homens ricos e poderosos, como por exemplo Leonardo DiCaprio e Johnny Depp, estampados pela grande mídia ostentando uma mulher mais jovem por ano. Ao observarmos a forma com que cada uma dessas mulheres é descartada e coletivamente exposta, torturada, reduzida a pó publicamente após o término. Quanto mais velhos eles ficam, mais jovens exigem que seus pares sejam, e embora "as escolhidas" sejam maiores de idade, sempre têm uma aparência e às vezes até uma "postura" de adolescente, deixando assim claro que a imagem que os atrai é essa, e o que os impede de se relacionar com adolescentes de fato não é a moral e sim o medo do cancelamento e das consequências legais. 
Muitas pessoas têm a juventude consumida como um produto por pessoas mais velhas. Essas pessoas sugam a juventude dos outros para se sentirem elas mesmas mais jovens e cada vez mais poderosas. Usam jovens como força braçal, como troféu, como objeto sexual ou como suporte afetivo para alimentar o próprio ego. E no fim, quando a pessoa já não é TÃO jovem, quando teve toda sua juventude retirada de si a força, ela é descartada. Trocada por uma pessoa MAIS jovem. Porque ninguém é jovem para sempre, e a ideia de juventude reforçada pela mídia dura tanto quanto um sopro.