sexta-feira, 23 de agosto de 2019

ele esteve aqui



A imagem pode conter: 1 pessoa, close-upDia 22 de agosto é o dia mais triste do ano. Por que sempre faz sol? Eu não quero ver a luz do dia e nem ouvir os pássaros cantando!
Parece que foi ontem que ele partiu, mas já faz 13 anos. Ele tinha 18 anos, era para a vida estar começando, e terminou ali mesmo. Às vezes penso em tudo que ele não viu, todas as coisas que não viveu, e imagino o que ele estaria fazendo hoje, se tivesse ficado. Eu queria ter conseguido fazer ele ficar. 
Penso nos motivos dele, e concluo, com tristeza, que depois de tantos anos e tantas vidas desperdiçadas, o mundo continua o mesmo. Adultos ainda abusam de crianças, crianças ainda praticam bullying entre si, pessoas ainda usam e descartam umas às outras, pais ainda colocam armas de fogo dentro de casa. Saúde mental ainda é desprezada pela sociedade, pelo estado. A cada 40 segundos uma pessoa tira a própria vida. Ninguém liga. Ninguém tem tempo pra isso! O choque é temporário e superficial.
Ao longo dos anos eu vi a passagem dele por esse mundo ser esquecida. As pessoas pararam de falar nele, os rastros digitais dele foram completamente apagados. Os poemas que ele escreveu se perderam. As roupas que ele usou foram doadas ou apodrecerem. Mas ele permanece dentro de mim. Penso nele todos os dias, mesmo quando tento não pensar. Eu deveria ter feito mais. Mas não fiz, porque não sabia fazer, e essa é uma das culpas que vou carregar até o fim dos meus dias, nos meus braços retalhados e no meu coração sempre sufocado por mãos invisíveis.
Hoje eu só quero que as pessoas saibam que Steve Cassimiro existiu nesse mundo. Que ele sofreu nesse mundo. Se expulsou desse mundo! Ele foi filho de alguém. Ele amou uma mulher. Ele foi amigo, ele foi poeta, ele foi fã de Evanescence, ele teve uma banda. Ele entrou para as estatísticas.
E talvez ele seja esse sol que faz todo dia 22 de agosto. 

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

garantia

No começo da minha adolescência eu entrava em muitas brigas na escola. Todos os dias eu saía na mão com alguém para me defender das humilhações que sofria. Nunca batia em alguém só por bater, eu simplesmente exigia respeito com os meus punhos.
Mas tinha um detalhe: eu só batia em meninos. Nunca fui capaz de bater em uma mulher na minha vida.
Tinha uma garota em especial que eu não suportava. Tudo nela me irritava profundamente, me fazia sentir inferior, e ela provavelmente sentia meu complexo de inferioridade, pois frequentemente me provocava e me ridicularizava na frente das pessoas. Eu ia para cima dela, o suficiente para ela se calar e sair correndo para se esconder, mas nunca tive coragem de agredi-la. Um dia ela me xingou, e de forma quase automática eu a ameacei, disse que se ela não calasse a boca eu iria quebrar a cara dela. Nesse dia ela não correu, não se escondeu — pelo contrário, ela me olhou com um sorriso na cara e disse, na frente de toda a sala: "Vai nada! Você sempre diz que vai me bater e não bate. Você não tem coragem. Eu não tenho mais medo de você". Eu fiquei mortificada por alguns momentos, depois senti o ódio e a vergonha correndo pelo meu corpo. Eu não era de nada e ela sabia. Ela sabia que podia pisar em mim o quanto quisesse, pois sairia impune.
Toda vez que eu volto para ele depois da humilhação e do adeus, eu lembro dessa garota e daquele misto de ódio e vergonha tomando conta de mim.

domingo, 11 de agosto de 2019

daddy issues

Vou confessar que morro de inveja de quem tem pai e mãe para comemorar dia dos pais e dia das mães (nem que seja apenas um dos dois). Não especificamente pai e mãe de sangue ou pai e mãe perante a lei, mas qualquer figura que tenha desempenhado esse papel, que tenha cuidado delas. Pessoas com quem elas podem contar.
Eu me sinto ingrata às vezes — me fazem sentir ingrata:  assim como tantos, o pai de dois dos meus irmãos mais novos os abandonou quando eles eram bebês. Um deles chegou aos 16 anos sem sequer lembrar do rosto do próprio pai. Nunca tiveram amparo financeiro, que o dirá emocional, e isso reflete na vida deles de forma palpável.
O meu pai, por outro lado, não me abandonou no sentido de sumir no mundo. Ele me deu um teto, me deu comida, me deu acesso à escola, à internet, me deu várias coisas ao longo dos anos, mas não me deu gestos de carinho, palavras de apoio, afagos. Eu lembro muito bem como é o rosto dele, especialmente porque parece muito com o meu. Ele sempre me olhou de cima, com dureza, e às vezes, quando me olho no espelho, eu vejo esse mesmo olhar frio me encarando. O meu pai não me abandonou, mas também não esteve presente: "meu nome é trabalho", ele costuma dizer, e continua, "o negócio é ganhar dinheiro, não tenho tempo para esses sentimentalismos baratos".
"Poderia ser pior", então eu não posso reclamar. É o que dizem.
Quando eu tentei suicídio pela última vez, eu desmaiei e fiquei assim por mais de 24 horas. Acordei fisicamente destruída. Não conseguia focar minha visão, não conseguia sustentar meu corpo de pé, meu coração parecia que iria explodir dentro do meu peito, e minha pele queimava. Eu pedi ajuda, e a primeira coisa que ouvi foi um "não acredito que vou ter que passar por isso de novo". Fui enfiada dentro de um carro, e da minha casa até o hospital ouvi palavras difíceis de digerir, sobre como eu o estava atrapalhando. Fui deixada no hospital como uma "coisa". Ali fiquei, dopada e sozinha, cambaleando na cadeira, e quando o hospital me mandou embora, eu não tinha como voltar para casa, pois não conseguia andar sem me desequilibrar. Até o momento, essa é a lembrança mais marcante que eu tenho do meu pai.
Poderia ser pior.
Nem sempre foi assim, eu tenho que admitir. Teve um período da minha vida em que ele não dizia APENAS coisas duras. Quando eu era criança e ele ainda podia me controlar, ditar quando eu podia falar ou não, e o que eu podia falar ou não, havia uma mescla de momentos de tempestade e momentos de calmaria. Tenho algumas boas lembranças; elas só não são o suficiente para eu me sentir "filha" de alguém. Não são fortes o bastante para apagar a minha dor, ou ao menos amenizá-la.
Ano passado o meu pai me chamou de puta. 
Ano passado o meu pai me deu um surra. Socou minha cara e o meu estômago, e embora eu tenha, por instinto, revidado os socos, hoje, toda vez que eu ouço os passos dele se aproximando, eu sinto medo. Sinto a adrenalina crescendo dentro de mim, um desespero se espalhando pelas minhas células. Involuntariamente prendo minha respiração e cerro os punhos, esperando  pelo pior. E quando ele passa sem falar comigo, sem notar minha existência, eu respiro aliviada, mas começo a tremer de corpo e alma. Nesses momentos eu sinto como se eu fosse desmoronar. Demora algum tempo até o meu coração voltar ao seu estado normal.
Mas poderia ser pior, e assim sendo, eu sou uma ingrata.


Feliz dia dos pais.