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quarta-feira, 19 de abril de 2023

de são miguel paulista à liberdade

Sou livre, escolho meus caminhos. Mas, por onde caminharei?

Desvio da pessoa em situação de rua, desvio do pastor. Desvio de uma prostituta, desvio do amor. Desvio da polícia, por quem tenho verdadeiro pavor... Desvio do garoto que vende balas e do homem que compra ouro. Desvio do pedido de oferta ao final da missa, na qual entrei por engano — procurando paz, fugindo dos meus demônios. Desvio do Senhor.
Desvio, e me sobram poucas opções. Sou livre, mas não tenho onde ir. Fico estática, então.
A constatação traz tormento... como as previsões. De que elas servem, quando acompanhadas por inação?
Dá pra mudar o destino? Um desastre, previsto e evitado, o que impede que aconteça em outro momento, fazendo as mesmas previstas vítimas? Desvio do perigo ao ouvir previsões, e por que não: desvio das predições!
– A inevitabilidade é uma vadia cruel! – de repente meu pensamento toma voz, a qual se mostra alta demais. Todos ficam calados, inclusive o padre, a madre, o raio que me parta! Olham-me, pasmos. Bato na boca três vezes, peço perdão para a multidão. Desvio, sempre que possível, ao ridículo do padrão. Ao insulto cristão! Desvio também do conceito pagão.
Plim, plim, plim! O padre bate seu sininho.
Meu pecado já foi cometido, quando eu nem sabia da existência do pecado. Há salvação para inocente pecador? Arderei no inferno como Judas, o traidor? Minha pele descolará dos ossos, fazendo-me arder em tremor? Afundarei, amaldiçoando o calor!
– Saudai-vos uns aos outros em Cristo Jesus! – ele diz.
Não me toquem os estranhos, ou gritarei até perder a voz. Cairei, convulsa, cavando minha própria cova.
Eles obedecem a todos os comandos e caminham como cordeiros, é realmente embaraçoso. Se Deus está em nós, não é preciso seguir multidões para encontrá-lo! Mas sigo por garantia... e nada encontro. Nada encontro, tampouco, em mim.
Pobre do meu destino! Vazia de Deus, absolutamente nada me espera, faça vida ou faça morte.
Dou asas a sorte, equilibrando-me em alta ponte... sem fios, sem proteção. Estou na Liberdade, mas esta não encontro, não.
O vento bate em meu rosto, me despenteia, e sinto vida, ainda que passageira. 
A vontade de contrariar o destino é grande. Carros passam com fervor e sem cessar. A multidão, apática, espera um escândalo, uma grande notícia, qualquer coisa que transforme esse domingo miserável em algo fantástico, memorável. Mas hesito, me contenho.
O desejo pelo fim não é tão grande, penso, para dar, de graça, tão tolo espetáculo. Respiro fundo, suportando a poluição, retendo em meus pulmões os artifícios da população.
O céu mostra tormenta. Cinza, nebuloso. Olho para cima, olho para baixo: o desatino é não poder cair para cima, eternidade adentro. O desatino, o cruel desalento é não ter asas, ser tão humanamente humana.
O vento bate nas minhas costas, parecendo querer me jogar ponte abaixo. Uma mulher me olha com antipatia, eu devolvo um gesto de rebeldia.
Ela parte com sua criança. Eu fico. 
As bancas clandestinas declaram o fim de um longo dia... os ambulantes recolhem suas coisas, prevendo a força tática... Com desgosto dobram suas mesas e pegam o metrô: destino Corinthians-Itaquera.
.........
Se todos os dias aqui são iguais, cabe apenas a mim fazer a diferença. O vento não bate novamente, mas meu corpo despenca. Na queda, meu caderno de escritos se abre. As folhas voam, e o meu corpo no chão bate. Um carro vem a oitenta quilômetros por hora, passando sobre mim, como se eu fosse nada. Ele não liga, continua em sua rota inalterada.
Parecia, mas ainda não era o fim. Por meus pecados eu teria de pagar, isso não ficaria assim! Meu sangue e meu corpo são engolidos pelo asfalto, me tornando parte da cidade: minha mãe, contra quem tanto lutei, sendo a filha rebelde de tão grande família, me aceita de volta em seu útero infernal. 
Condenada, as pessoas que ali passam ainda ouvem meu padecimento. 
Eu sou livre, mas não tenho por onde andar... Desvio de mim mesma.

Texto de 03 de outubro de 2009.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

ele esteve aqui



A imagem pode conter: 1 pessoa, close-upDia 22 de agosto é o dia mais triste do ano. Por que sempre faz sol? Eu não quero ver a luz do dia e nem ouvir os pássaros cantando!
Parece que foi ontem que ele partiu, mas já faz 13 anos. Ele tinha 18 anos, era para a vida estar começando, e terminou ali mesmo. Às vezes penso em tudo que ele não viu, todas as coisas que não viveu, e imagino o que ele estaria fazendo hoje, se tivesse ficado. Eu queria ter conseguido fazer ele ficar. 
Penso nos motivos dele, e concluo, com tristeza, que depois de tantos anos e tantas vidas desperdiçadas, o mundo continua o mesmo. Adultos ainda abusam de crianças, crianças ainda praticam bullying entre si, pessoas ainda usam e descartam umas às outras, pais ainda colocam armas de fogo dentro de casa. Saúde mental ainda é desprezada pela sociedade, pelo estado. A cada 40 segundos uma pessoa tira a própria vida. Ninguém liga. Ninguém tem tempo pra isso! O choque é temporário e superficial.
Ao longo dos anos eu vi a passagem dele por esse mundo ser esquecida. As pessoas pararam de falar nele, os rastros digitais dele foram completamente apagados. Os poemas que ele escreveu se perderam. As roupas que ele usou foram doadas ou apodrecerem. Mas ele permanece dentro de mim. Penso nele todos os dias, mesmo quando tento não pensar. Eu deveria ter feito mais. Mas não fiz, porque não sabia fazer, e essa é uma das culpas que vou carregar até o fim dos meus dias, nos meus braços retalhados e no meu coração sempre sufocado por mãos invisíveis.
Hoje eu só quero que as pessoas saibam que Steve Cassimiro existiu nesse mundo. Que ele sofreu nesse mundo. Se expulsou desse mundo! Ele foi filho de alguém. Ele amou uma mulher. Ele foi amigo, ele foi poeta, ele foi fã de Evanescence, ele teve uma banda. Ele entrou para as estatísticas.
E talvez ele seja esse sol que faz todo dia 22 de agosto. 

domingo, 11 de agosto de 2019

daddy issues

Vou confessar que morro de inveja de quem tem pai e mãe para comemorar dia dos pais e dia das mães (nem que seja apenas um dos dois). Não especificamente pai e mãe de sangue ou pai e mãe perante a lei, mas qualquer figura que tenha desempenhado esse papel, que tenha cuidado delas. Pessoas com quem elas podem contar.
Eu me sinto ingrata às vezes — me fazem sentir ingrata:  assim como tantos, o pai de dois dos meus irmãos mais novos os abandonou quando eles eram bebês. Um deles chegou aos 16 anos sem sequer lembrar do rosto do próprio pai. Nunca tiveram amparo financeiro, que o dirá emocional, e isso reflete na vida deles de forma palpável.
O meu pai, por outro lado, não me abandonou no sentido de sumir no mundo. Ele me deu um teto, me deu comida, me deu acesso à escola, à internet, me deu várias coisas ao longo dos anos, mas não me deu gestos de carinho, palavras de apoio, afagos. Eu lembro muito bem como é o rosto dele, especialmente porque parece muito com o meu. Ele sempre me olhou de cima, com dureza, e às vezes, quando me olho no espelho, eu vejo esse mesmo olhar frio me encarando. O meu pai não me abandonou, mas também não esteve presente: "meu nome é trabalho", ele costuma dizer, e continua, "o negócio é ganhar dinheiro, não tenho tempo para esses sentimentalismos baratos".
"Poderia ser pior", então eu não posso reclamar. É o que dizem.
Quando eu tentei suicídio pela última vez, eu desmaiei e fiquei assim por mais de 24 horas. Acordei fisicamente destruída. Não conseguia focar minha visão, não conseguia sustentar meu corpo de pé, meu coração parecia que iria explodir dentro do meu peito, e minha pele queimava. Eu pedi ajuda, e a primeira coisa que ouvi foi um "não acredito que vou ter que passar por isso de novo". Fui enfiada dentro de um carro, e da minha casa até o hospital ouvi palavras difíceis de digerir, sobre como eu o estava atrapalhando. Fui deixada no hospital como uma "coisa". Ali fiquei, dopada e sozinha, cambaleando na cadeira, e quando o hospital me mandou embora, eu não tinha como voltar para casa, pois não conseguia andar sem me desequilibrar. Até o momento, essa é a lembrança mais marcante que eu tenho do meu pai.
Poderia ser pior.
Nem sempre foi assim, eu tenho que admitir. Teve um período da minha vida em que ele não dizia APENAS coisas duras. Quando eu era criança e ele ainda podia me controlar, ditar quando eu podia falar ou não, e o que eu podia falar ou não, havia uma mescla de momentos de tempestade e momentos de calmaria. Tenho algumas boas lembranças; elas só não são o suficiente para eu me sentir "filha" de alguém. Não são fortes o bastante para apagar a minha dor, ou ao menos amenizá-la.
Ano passado o meu pai me chamou de puta. 
Ano passado o meu pai me deu um surra. Socou minha cara e o meu estômago, e embora eu tenha, por instinto, revidado os socos, hoje, toda vez que eu ouço os passos dele se aproximando, eu sinto medo. Sinto a adrenalina crescendo dentro de mim, um desespero se espalhando pelas minhas células. Involuntariamente prendo minha respiração e cerro os punhos, esperando  pelo pior. E quando ele passa sem falar comigo, sem notar minha existência, eu respiro aliviada, mas começo a tremer de corpo e alma. Nesses momentos eu sinto como se eu fosse desmoronar. Demora algum tempo até o meu coração voltar ao seu estado normal.
Mas poderia ser pior, e assim sendo, eu sou uma ingrata.


Feliz dia dos pais.


segunda-feira, 29 de outubro de 2018

auto-conhecimento

   Não dormi, mas comecei o dia gargalhando. Seis horas da manhã e minha risada alta preenchia meu quarto, provavelmente se fazendo ouvir fora dele. Ri tanto, que a minha barriga começou a doer, enquanto as lágrimas escorriam pelas minhas bochechas e embaçavam meus óculos. Eu tentava não rir, porque o motivo do riso desenfreado era a desgraça de algumas pessoas que caíram com a freada violenta de um ônibus. Parava por alguns minutos, segurando o riso com a consciência pesada, mas depois não aguentava, e o ritual descontrolado recomeçava.
   Ouvi os passos em frente à janela do meu quarto. Ouvi minha avó na cozinha, senti o cheiro do café. Eu não tomo café, mas devo admitir que o cheiro de café, especialmente pela manhã, aguça alguma coisa boa dentro de mim.
   Entre o riso e o silêncio culpado, ouvi o barulho das xícaras na cozinha, e o som de pessoas cochichando. Tentei ouvir o que diziam, mas não deu.
   Eu ainda estava indecisa se deveria ir à consulta com a psiquiatra ou não, mas pensei: "ainda tenho bastante tempo", e depois me ocorreu que é justamente quando eu tenho tempo de sobra que me atraso. Eu me conheço, estou sempre certa. Me atrasei, depois de colocar uma roupa qualquer e sair correndo, de cara lavada, na chuva que tornava o chão escorregadio sob o meu all star velho demais para ter algum efeito anti-derrapante. Quase escorreguei algumas vezes. Teria sido um belo castigo, ser filmada escorregando para abastecer o riso de alguém depois, na internet.
   Mas não caí. 
   Cheguei ao posto de saúde, tirei os óculos escuros respingados da chuva, e peguei a senha eletrônica. Agora tem isso lá, e eu me sinto de alguma forma traída por esse avanço tecnológico. Tira o aspecto familiar da coisa. 
   Mais traída ainda me senti quando minha senha foi chamada, e a recepcionista não lembrou meu nome. Ela me olhou, olhou para a tela do computador por uns segundos, e me olhou de novo, soltando um odioso: "esqueci seu nome...". Ela me conhece há dez anos. Eu sei o nome dela e de todas as pessoas no posto de saúde. Aos poucos, eles esquecem o meu. 
   "Cíntia, prontuário 19-119".
   Enquanto esperava, irritadiça pela noite não dormida, observei as pessoas passando. Auxiliares de enfermagem, as moças da limpeza, o pessoal da administração, e as agentes de saúde. Recebi dois abraços genuínos, fortes, e muitos sorrisos amarelos: "você anda sumida!". Eu sempre busco amor nos lugares mais improváveis.
   O posto está cheio de enfeites florais feitos de papel crepom; dois tons de rosa e um branco, para a campanha de prevenção de câncer de mama. Fiquei com vontade de roubar alguns dos enfeites, colar na parede do meu quarto. Eu sou assim. Uns anos atrás roubei um dos enfeites da já precária árvore de natal do posto de saúde, porque eu preciso ter esses souvenirs para me lembrar dos momentos. Para tornar as minhas memórias tangíveis. Ou para manter a ilusão ativa.
   Pensei em todos os anos esperando por aqueles corredores, vendo as pessoas passando e preocupando-se comigo. Pensei nos meus professores do ensino fundamental. O meu sentimento era o mesmo por ambos os ambientes e seus habitantes. O mesmo amor por pessoas que são pagas para notar a minha existência, e que esquecem do meu nome assim que o meu caso deixa de ser prioridade em suas mesas.
   Comecei a andar de um lado para o outro, inquieta com a demora. Apertei o aparelho de álcool gel, mas não saiu nada, como sempre. Tem uma mesa no corredor, ao alcance dos pacientes, e eu sempre me perguntei o que tinha naquelas gavetas, sem coragem de abrir para ver. Olhei para os dois lados do corredor cheio de pacientes cuidando de suas próprias dores. Abri a primeira gaveta, e, adivinha só, não tinha merda nenhuma. Foi o suficiente para acabar com qualquer traço de tesão detetivesco.
   Me pus a ler os cartazes de prevenção de câncer de mama, e depois o mural cheio de post-its com mensagens "motivacionais". Cuide-se!, dizia um dos post-its. Ame-se! A vida importa! AUTO-CONHECIMENTO! Eu nunca fiz o auto-exame. Pensei em roubar um ou dois, quem sabe três post-its rosa choque. Mas talvez a mensagem fizesse falta para outras pessoas. Eu sou hipocondríaca. Quando eu penso em fazer o auto-exame, penso na possibilidade de encontrar um nódulo, e começo a surtar. A bem da verdade, se eu procurasse eu provavelmente encontraria mil nódulos, a minha ansiedade os colocaria ali.
   Eu me conheço, mas às vezes não quero conhecer demais. Pensei nas minhas seguidoras.
   A psiquiatra me chamou. Ela não lembrava exatamente sobre o meu caso, ficou lendo por cima as páginas do meu prontuário, me fazendo as mesmas perguntas mil vezes, e eu as respondia, sentindo a exasperação crescer. É como se ela não ficasse contente com as minhas respostas, então continuasse perguntando para ver se eu as mudava. Você está pensando em suicídio, ou está planejando suicídio? Qual é a merda da diferença? Perdi a calma com ela, e me arrependi em seguida, porque apenas parte da minha exasperação era pela condescendência dela, a outra parte era pela noite não dormida. Eu sou como uma criança que vai ficando rabugenta à medida que o sono chega, e que precisa deitar e pegar no sono assim que esses momentos batem.
   Ela continuou fazendo as mesmas perguntas e as mesmas propostas. Eu parei de responder, adotando a tática de simplesmente encará-la. Ela continuou na expectativa de uma resposta, e eu continuei oferecendo silêncio, sabendo que meus olhos estavam tão vazios quanto às vezes me acusam.
   Foi uma consulta absurdamente longa, em que nada foi abordado. A minha impaciência crescente, louca para sair dali. Comecei a concordar com ela, era o único passaporte para a saída daquele lugar. Funcionou. Até mais, Cíntia. Obrigada. Tchau.
   Peguei meus remédios, não tinha todos. Estava exausta. Passara horas ali, e a consulta com a psiquiatra no fim me deixou pior do que quando eu cheguei. Com os bolsos da jaqueta jeans molhada cheios de remédios, coloquei os óculos escuros e saí. Eu não suporto claridade, especialmente quando não durmo.
   Ia chegar em casa, tirar toda a roupa e me jogar na cama ao som de Florence + the Machine. Isso não aconteceu. Enrolei o dia inteiro, cansada, sem fazer nada, sem ter noção de como as horas passaram. Dava tempo de ir pro curso ainda, mas eu simplesmente não teria energia física ou intelectual para acompanhar a aula.
   No fim da tarde eu tirei as roupas ainda molhadas, e deitei, cobrindo a cabeça. Meu corpo começou a pesar, minha mente começou a desligar, e o celular apitou. Relutei por alguns momentos, mas descobri a cabeça e estiquei o braço, pegando o aparelho.
   Era ele. Meu coração acelerou. Ele gostou da minha foto de 4. Instigada, minha mente acendeu, voltou a funcionar a todo vapor. Minha buceta a acompanhou. Em alguns minutos ele conseguiu me fazer esquecer da mágoa de situações anteriores, do sono, do cansaço, da exasperação, e tudo isso deu lugar a um tesão violento, que provocava ondas de prazer pelo meu corpo sem que eu ao menos me tocasse. 
   Eu te quero. Você me faz sentir um tesão desmedido. Seu pau está pulsando? Quero me esfregar em você. Imagina, imagina, imagine! Imaginei o coturno dele pressionando meu corpo, me imobilizando contra a parede, deixando as marcas da sola na minha pele. Estava molhada novamente, mas dessa vez não era culpa da chuva, que ainda batia  contra a minha janela.
   E as mensagens começaram a ficar mais espaçadas... 
   Ocupado.
   Ok...
   Abri as pernas, coloquei os dedos para trabalhar, imaginando. AUTO-CONHECIMENTO!
    Os dedos deslizando com facilidade. AUTO-CONHECIMENTO!
   Me esparramei na cama, me desfazendo entre os lençóis e cobertas. AUTO-CONHECIMENTO!
   Soltei gemidos e suspiros... AUTO-CONHECIMENTO!
   A atenção dele nunca é só minha. Eu sempre tenho que dividi-la com outras pessoas, com outras coisas.... AME-SE!
   É só sobre ele. O prazer dele, o sentimento dele, o momento dele, a vida dele. Ame-se ame-se ame-se ame-se ame-se ame-se ame-se, AME-SE, porra!
   Tomada pelo tesão e pela tristeza de uma só vez, comecei a chorar enquanto me tocava, enquanto os dedos entravam em saíam, e o tesão começava a ser vencido pela tristeza. O som do meu choro preencheu meu quarto, talvez se fizesse ouvir lá fora. Chorei tanto, que a minha garganta começou a doer, as lágrimas escorrendo em abundância pelas laterais do meu rosto. Parava por alguns segundos, mas depois não aguentava, e os soluços convulsos recomeçavam. No escuro, no silêncio.
   Os dedos desistiram. Fechei as pernas, deitei em posição fetal e cobri a cabeçaEu sempre busco amor nos lugares mais improváveis. Chorei tanto, que dormi. Por dois dias.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

inteira

   Quando eu me dou para as pessoas, elas nunca me querem inteira. Me querem fragmentada. Eu sou um ser humano completo, com desejos e sentimentos que por vezes  parecem não caminhar juntos, mas que são os mais sinceros que alguém pode oferecer...
   E isso é inaceitável para elas. Querem apenas o que fica entre o bom e o sofrível, quando, ao contrário, eu ofereço excelência. O mundo que existe dentro de mim — esse solo nunca explorado. Eu ofereço mais do que o suficiente. Ofereço uma viagem completa e louca.
   Mas não. Querem que eu escolha uma só fantasia e nunca me dispa dela. Ser a irmã ou ser a puta. Ser a amiga ou ser a amante. Ser fofa ou ser safada. Eu quero ser tudo, quero ser plena. Nós não precisamos seguir uma linha reta, e por que você está tão assustado?
   Eu acordei e estava contente. Mas o contentamento durou pouco e foi engolido pelo buraco negro que habita minha alma. As lágrimas rolaram sobre o travesseiro ao qual eu durmo agarrada, fingindo que é o seu corpo entre meus braços, seu peito sob a minha cabeça...
   O desejo era latente no espaço mais íntimo do meu ser; o desejo de te adorar e ser adorada na mesma proporção; tocar todos os espaços que existem em você e ser tocada como nunca antes... E que ilusão é essa! Desejo que nunca alcanço...
   Brinquei com a possibilidade de te ligar, eu diria: "te quero! e você? algum pedaço de você me quer?"
   Mas eu quero que você me queira por inteiro também...
   Se não te ligo, se não te pergunto e permaneço esperando, é porque sei o que ouviria.
   Então eu me atiraria em direção a um penhasco ou de outros braços: dá na mesma.



sábado, 11 de novembro de 2017

justiça


   Mesmo com todo o meu pessimismo, eu sempre procurei acreditar que as coisas têm uma ordem. Que a vida é feita de ação e reação, e isso me fez relevar, de certa forma, todas as maldades que me impuseram. A esperança de que um dia o mal voltaria para essas pessoas me servia de consolo. A expectativa de que um dia eles receberiam um pouco do próprio veneno me fez aceitar a forma como a minha vida transcorreu. Isso me torna uma pessoa ruim? Querer que as pessoas que me fizeram mal também sofram? Ou me faz conformada, por esperar que a vida se encarregue de me dar "vingança", ao invés de eu mesma buscá-la?
   Um dia, muito tempo atrás, um cara, cansado de me ver sofrer e definhar, me propôs: "você quer que eu mate o seu tio? Se você quiser eu mato. Dou um tiro nele". E eu sei que ele o faria, ele era esse tipo de pessoa. O amei por isso, mas não pude aceitar. Eu tinha 16 anos, cheia de ideais, e matar alguém, ou ordenar a morte de alguém, ainda me era uma coisa incabível. A minha consciência não me deixaria em paz. Eu preferi continuar definhando e esperando que a vida agisse.
   Não se trata de vingança, se trata de justiça. Sim. Eu, logo eu, fui tola o bastante para acreditar, por 27 anos, que pode haver alguma justiça nesse mundo fodido! Mesmo o mundo me mostrando consistentemente nas manchetes de jornais, nos relatos de amigos e na minha própria vida que a justiça é uma utopia. Eu acreditei. Aposto que por essa vocês não esperavam!
   Mas hoje a verdade me atingiu no meio da fuça. Surgiu feito um raio, quando eu menos esperava: não existe justiça. Não há divindades, não há karma, não há energia, não há um sistema cósmico para honrar quem quer que seja...
   Eu luto todos os dias. Luto para continuar viva e para manter minha sanidade. Luto mais do que qualquer pessoa poderá imaginar, mais do que todos pensam. Luto contra mim e por mim, enquanto as pessoas que deram vida e alimento aos meus demônios seguem suas vidas tranquilamente, sempre adiante, sempre prosperando, dormindo feito bebês; enquanto eu não consigo pregar os olhos, com medo das lembranças e indignada enquanto minha vida se esvai.
   Não existe justiça.
   Eles estão sempre felizes, e eu sinto essa angústia que dilacera minha alma.
   Não existe justiça.
   Eles conhecem o amor de uma forma que nunca me será permitido.
   Não existe justiça.
   Eles não se sentem sozinhos ou abandonados nunca.
   Não existe justiça.
   Eu tento ser boa.
   Não existe justiça. E o que eu faço com isso?
   Se não existe justiça, como eu posso continuar lutando, com que forças?
   Não existe justiça. A vida e uma questão de azar ou sorte, tudo da forma mais aleatória possível. Talvez eu devesse arrumar uma arma, no fim das contas, e resolver a questão eu mesma. Porque não existe justiça, e nada mais importa.

"Nem todas as flores têm a mesma sorte,
umas enfeitam a vida e outras enfeitam a morte"   

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

esmurrando portas


   O que mais eu posso escrever, que já não tenha escrito das mais variadas formas, utilizando os mais variados sinônimos e adjetivos, e até dispondo de palavras inventadas, nos últimos 21 anos?
   Tudo o que eu fiz na vida foi escrever. Escrever, escrever, sentir e escrever, escrever e sentir, mesmo quando o que eu estava escrevendo e sentindo era ridículo, maçante ou simplesmente indigno de ser trazido ao mundo, que dirá lido...
   Chega um momento que a mente pede arrego. O corpo segue o embalo. O meu está como não ficava há muito tempo, a ponto de se curvar sobre si mesmo, a ponto de quebrar como se fosse um objeto de gesso que derrubam no chão.
   Estava chorando de novo. Eu queria socar a parede, quebrar coisas, me quebrar, levantar da posição fetal em que me mantinha, e pegar minhas lâminas. Cortar minha barriga até que as tripas saíssem para fora, até que a mágoa se extinguisse. Pensei em pular da janela do meu quarto, mas é só um andar. Talvez eu quebrasse o pescoço ou rachasse meu crânio. O mais provável é que eu quebrasse os meus dentes. Os da frente.
   Pensei, também, em pular na frente de um trem. Com a minha sorte, acabaria com as duas pernas amputadas, porém viva, e uma multidão secretamente sedenta por sangue me xingaria por lhes causar tamanho inconveniente (mas bem que eles filmariam tudo e se sentiriam importantes quando recebessem alguns likes).
   Eu penso repetidamente em pegar uma faca, a de cabo cor de laranja que a minha vó vive escondendo, a única de ponta afiada, e enfiar no meu coração, dar uma torcida, ou me apunhalar quantas vezes tivesse forças para fazê-lo, sentindo o sangue jorrar para todos os lados, atingindo minha própria cara. Talvez um dia, quando eu estiver desesperada o suficiente...
   Hoje eu não estou desesperada, eu estou triste. Meu corpo está leve, mole como macarrão cozido. As palavras que eu ouço são sempre as mesmas desculpas esfarrapadas, e os atos são sempre os mesmos, contraditórios, e as pessoas são sempre iguais, covardes, e nada disso me traz acalento. E eu? Quem sou eu para essas pessoas? No fim, eu sou a louca que cruzou seus caminhos, e que um dia, um dia bem próximo, eles vão ignorar porque é mais fácil assim.
   Eu permaneci na minha cama, as lágrimas grossas não paravam de rolar, e fiquei assim, chorando abraçada a um travesseiro, tentando fingir que tinha um ser humano entre os meus braços. Tentando simular calor humano.
   Amanhã eu vou ao cemitério, é lá o meu porto seguro, não nos braços do fantasma sem rosto que eu imagino todas as noites. O bom filho à casa torna, é o que dizem.
   Eu vou sentar em um dos bancos, porque acho desrespeitoso deitar sobre túmulos, e vou beber minhas cervejas quentes e tomar meus 20 comprimidos de diazepam. Vou apagar, capotar no chão e acordar quando começar a chover na minha cara ou quando alguém começar a respirar sofregamente sobre mim. Mas tudo bem, eu gosto da chuva. E estou acostumada ao resto.
   Eu estava a caminho do psiquiatra quando vi uma velha falando sozinha na rua. Falava e gesticulava consigo mesma. Era uma sem-teto. Eu pensei, temerosa: "essa serei eu daqui uns anos", mas ao analisá-la melhor, prossegui com o pensamento: "exceto que eu não seria tão elegante". Uma mendiga elegante! Esse é o tipo de coisa que vemos em São Paulo. Ela estava com os cabelos desgrenhados, a pele suja e não tinha dentes, mas trajava um sobretudo sobre o seu corpo curvilíneo, o que lhe garantia elegância suficiente.
   Eu não estou criando arte aqui. Eu estou escrevendo porque preciso escrever. Me entenda, eu preciso escrever! 
   Eu estou cansada de esmurrar portas de aço com dobradiças soldadas.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Chokito

   O meu avô, seu Ciço, diz em alto e bom tom, para quem quiser ouvir, que eu sou sua neta preferida. 
   Essa predileção não é baseada em convivência; não é porque ele me conhece e me acha uma garota incrível e inteligente ou bonita. Não é porque eu sou bem-sucedida e lhe dou mil orgulhos. Não é por eu ter sido publicada em dois livros que ele não compareceu ao lançamento, ou por eu ter sido exposta com minhas pinturas, coisa que ele nunca soube; não é porque eu fui engajada politicamente na escola, quando o único argumento político dele é criticar o PT. Não é porque fui aceita em duas universidades, às quais não levei ao fim. 
   A preferência ocorre pelo simples fato de que eu fui sua primeira neta.
   E de fato, eu fui a primeira filha, a primeira sobrinha, a primeira neta... Eu sou a primogênita, em ambas as famílias Santos (embora não carregue o sobrenome) e Lira (o qual ostento com orgulho), e foda-se se você acha que o verdadeiro primogênito tem que ser um homem. Eu estava nesse mundo seis meses antes do Rodrigo chegar, e um ano antes do Junior chegar e três anos antes do Felipe surgir. Foda-se o patriarcado!
   O meu avô não me conhece. Não diria que somos exatamente distantes, mas também não somos próximos. A última vez que nos vimos tem mais de dois anos, eu ainda tinha cabelo roxo — conto as datas de acordo com a cor do meu cabelo quando um determinado evento ocorreu, o que me deixa um pouco perdida, porque há quase dois anos eu parei de mudar a cor deles quinzenalmente.
   Nos falamos por telefone depois disso, mas se não sou eu ligar, ele não liga. E quando eu ligo, ressentida por este fato, ele logo diz alguma coisa que ativa um gatilho emocional, e eu dou alguma desculpa, me despeço e desligo.
   Ele diz que me ama muito. Não apenas sou sua neta preferida, ele me ama —  afirma. E eu digo "também te amo, vô", e digo com facilidade, não com o embaraço que declaro meu amor aos meus irmãos. Porque no caso dele, não é verdade, embora também não seja mentira.
   Eu tenho muitas lembranças sombrias e mágoas profundas em relação a ele. Quando ele diz que me ama, eu não penso muito no assunto, porque se eu parar para pensar, eu não acredito. 
   Mas às vezes eu fico pensando em alguns momentos, talvez meia dúzia deles, em que eu me senti amada por ele, e nos quais o amei de verdade, sem meios termos.
   Como quando eu cheguei da Igreja uma vez, em 1998, e ele estava assistindo Chiquititas e me deixou assistir com ele, enfrentando a restrição da minha mãe... Isso não era rotineiro. O meu vô gosta de ter as coisas dele só para ele. A TV, o rádio, a coleção de vinil, o gosto musical, o programa, o filme, o momento, o espaço, o chão que ele sentava para assistir Chiquititas. Mas naquele dia ele dividiu o chão comigo, e nós assistimos Chiquititas juntos.
   Ou outra vez, que eu nem tenho muita certeza de que aconteceu de verdade, porque faz tanto tempo e foi tão incomum... Ele estava sentado numa cadeira, e eu estava deitada nas pernas dele, de bruços, as minhas pernas penduradas no ar, e ele acariciava minhas costas e meus cabelos com gentileza, com mãos de vô, em silêncio. Um momento tão atípico, que eu fiquei torcendo para que durasse uma eternidade ou duas. Mas talvez eu tenha inventado este momento.
   E teve aquela vez, eu tinha 16 para 17 anos, era o meio da tarde e eu ainda estava dormindo. Me acordaram dizendo: "o seu vô está aqui", e, atordoada, eu não acreditei no que ouvi e perguntei: "quem?", "seu vô", "meu vô...? o Cemar?". Como se eu tivesse outro avô! Mas aquela foi a primeira e única vez que ele me visitou, então não estranhem muito minha reação sonolenta. 
   Eu levantei da cama, e tudo que lembro daquela tarde é que eu não escovei os dentes nem alinhei os cabelos antes de ir encontrá-lo na sala; que o admirei como quem vê uma miragem; e que quando lhe contei que estava aprendendo a tocar violão (e por aprendendo, leia-se, eu estava dedilhando o violão a esmo), ele, que toca muito decentemente, pediu meu violão emprestado e tocou alguma música dos Beatles. 
   Alguns dias mais tarde, quando eu o visitei, ele me mostrou, mas não me deu, uma revistinha com cifras de músicas dos Beatles. 
   E eu comecei a ouvir os Beatles para ter algo em comum com ele, na esperança de que um dia pudéssemos ouvir The Beatles juntos. Eu comecei a ouvir Carpenters porque pensei que poderíamos ouvir juntos, e comecei a ouvir Bob Dylan e Rolling Stones porque pensei que poderíamos ouvir juntos! Até decorei músicas e títulos, pensando em impressioná-lo caso ele testasse meus conhecimentos. Ele nunca o fez.
   Uma das memórias mais marcantes que tenho do meu vô é dele sentado no chão de sua sala ouvindo "I Should Have Known Better", do Jim Diamond, no último volume. A casa chegava a tremer. Ele estava de pernas cruzadas e tinha os braços ao redor delas; os olhos fechados e expressão cheia de tormenta, balançando a cabeça e o corpo para a frente e para trás, ignorando completamente o resto do mundo. Ele parecia possuído. Essa visão ficou na minha cabeça por muitos anos antes de eu criar coragem e lhe perguntar o nome da música (e não sabendo falar inglês à época, eu só sabia cantar a parte do "I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I")...
   Nós nunca ouvimos música juntos em um de seus estéreos potentes (toda semana ele arrumava um novo, roleiro que é), no chão de sua sala. Eu propus algumas vezes, e ele concordava, mas quando eu chegava à sua casa ele já havia esquecido tais planos, e passávamos a tarde, eu, ele e minha vó, sentados à mesa falando de coisas e pessoas que não me interessavam; vez por outra um dos dois me pedia um bisneto e eu respondia com silêncio indignado ou sorriso amarelo, e ali eu não sentia amor fluindo em nenhuma direção.
vó, Cíntia, seu Ciço
   Mas com tudo isso, quando o meu avô diz que me ama, e a minha mãe me garante que eu sou a paixão da vida do seu Ciço, e se eu estou propensa a acreditar na hora, o que me vem em mente mesmo é ele chegando da rua com um chokito para mim. Enterneço pelo fato de que ele sabia que chokito era o meu chocolate preferido, e o fato de que eu, mesmo muito nova, sabia que chokito não era barato; Por ele ter passado por algum lugar — uma padaria ou um bar —, ter visto um chokito e ter pensado em mim, sua neta preferida. O fato de ele ter vários netos e trazer chokito só pra mim. Ele fazia isso às vezes.
   Ontem eu comprei um monte de chocolate, porque estava triste. Comprei dois prestígios e uma caixa de um genérico de bis, que é bem gostosinho. Comprei um chokito. Acordei hoje e comi todos, menos o chokito, e agora o meu estômago está doendo. Eu olho para o chokito e sinto um nó nas tripas. Um nó na garganta.
   Eu acho que vou guardar esse chokito na minha lata de lembranças, com todas as fotos da minha infância, e comê-lo daqui uns dez anos, quando o seu Ciço tiver morrido, e só me restar a culpa por todas as vezes que não fui visitá-lo, mesmo querendo, porque ele não conseguia atingir minhas expectativas. Só porque ele nunca quis ouvir Beatles comigo, sentado no chão da sala. Ele, que me ama apesar de eu ser a primogênita e não o primogênito. Apesar de eu não ser bem-sucedida, apesar de não lhe dar mil orgulhos. Apesar de eu não ser incrível, nem inteligente, nem bonita como suas outras netas. Apesar de não carregar seu sobrenome. Apesar de não ter me formado, apesar de nunca ter aprendido a tocar violão, apesar de não ter lhe dado um bisneto, apesar de nunca ter tido um namorado para lhe apresentar, apesar de ter os braços cheios de cicatrizes que ele não entende, apesar de não ser normal. Ele, que me ama, apesar de não me conhecer.
   Vai sobrar apenas a culpa e o chokito.
   Eu vou esperar, e vou cometer suicídio com uma barra de chokito, nestlé! Essa barra aqui, que carrega o seu nome!

sábado, 7 de outubro de 2017

lucky strike

   Eu tenho asma, sabe...
   Quando eu era criança, enrolava um pedaço de folha de caderno, acendia e tragava, imitando as pessoas que eu via fumando nos filmes — e ao meu redor. Muita gente fumava nos anos 90, não é como hoje em dia que todo mundo se preocupa tanto.
  Quando eu não acendia, porque o papel queimava muito rápido e a fumaça era literalmente intragável, eu ficava com o cigarro de mentira entre os dedos. Sentava, levava à boca, imaginava minhas tragadas. Fingia que estava em um restaurante chique, com uma taça de vinho francês e um prato de macarronada à minha frente.
   Alguns anos antes, quando eu ainda frequentava a igreja, participei de uma peça de teatro com o Francis, na qual éramos adolescentes rebeldes e sem futuro que fumavam cigarros e falavam palavrões, e outros jovens nos salvavam da perdição com o evangelho. Mas ali, naquela época, fumando cigarros de mentirinha, eu era livre da igreja, era livre da condenação.
   Hoje é um desses dias em que eu me perguntei constantemente o que exatamente eu estou fazendo no mundo. Eu fico vivendo um dia de cada vez, esperando que o próximo seja melhor. Fico imaginando cenários, imaginando pessoas, que fora da minha imaginação são completamente ordinárias, mas dentro, como elas são incríveis...
   Lavei meus cabelos. Estava chovendo e eu pensava que a energia elétrica iria cair, como é de costume no meu bairro, e eu não teria como secá-los. Afora isso, meus pensamentos estavam povoados com dinheiro; com a quantia que preciso para comprar meus cosméticos e pagar meus óculos, colocar crédito no bilhete, comer alguma besteira para não passar vontade, tomar uma cerveja de vez em quando e agora eu tenho que pagar a geladeira também, e pensava como nunca tem dinheiro suficiente para que eu faça o curso que quero fazer — para dar continuidade à minha vida e ganhar dinheiro de verdade para ter planos maiores do que comprar meus cosméticos e pagar meus óculos e contar os centavos para inteirar a condução e pagar a geladeira que ninguém me consultou ao comprar, e que ficam tirando da posição que eu coloquei — para que a porta não bata no móvel que fica em frente a ela. 
   Ir embora da casa da minha avó. Levar todos os meus livros, meus DVDS, meus pôsteres (especialmente o do Adrien Brody), meu computador, meus cosméticos, e deixar o resto. Embora a minha atual cama seja muito boa. Ela sustenta o meu peso sem reclamar, e também não reclama quando há companhia somada ao meu peso. Talvez eu levasse a cama. Eu poderia comprar um guarda-roupas sem gavetas. Eu odeio gavetas. 
   Pois eu estava secando os cabelos, porque a chuva parou e a energia não caiu, ainda bem, e estava  pensando que preciso de aproximadamente três potes de creme de pentear por mês e 4 desodorantes, e duas caixas de lenço de papel para limpar meus óculos, e que tenho creme hidratante o suficiente para alguns meses, e que só vou ter dinheiro no fim do mês, e nem sei quanto. Pensava em tudo isso, e numa certa pessoa, quando, para secar uma área específica do cabelo, eu virei minha cabeça, olhei para a minha estante magnificamente abarrotada e vi o maço de lucky strike, que eu guardei embaixo de um livro do Nick Hornby, como souvenir de uns meses atrás, quando eu fumei por algum tempo feito uma chaminé, mesmo tendo asma. Cigarro me deixa tonta, mas a sensação não é das piores. 
   Eu sempre odiei o cheiro de cigarro aceso, o cheiro de cigarro quando as pessoas estão fumando, mas algo no cheiro de cigarro impregnado nas roupas das pessoas que fumam há muito tempo me causa conforto. Eu gosto de abraçar fumantes. É como... encontrar aquilo que eu posso chamar de lar. Não importa quem seja. Eu posso fechar meus olhos abraçando um fumante e vou me sentir em casa. Se a pessoa estiver usando uma jaqueta jeans, então...
   Desliguei o secador. Eu tentei diversas marcas de cigarro quando comecei a fumar, em março desse ano, quando eu não sabia o que fazer comigo mesma. Fumei primeiro o camel, que comprei solto num bar que só tinha homem e eles ficavam olhando com estranhamento enquanto eu bebia minha cerveja, como se eu estivesse invadindo um espaço sagrado. 
   Em 2009 eu havia tentado fumar derby, que roubei do meu tio e pensei tudo bem eu roubar os cigarros dele, ele roubou minha inocência, e não gostei nada, nada. Minha língua ficou pastosa, eu odiei o gosto, o cheiro e a forma como entrava nos meus pulmões. Acabei apagando-o no meu pulso, e que dor foi aquela!... 
   Então, após tal experiência, comprei apenas 2 cigarros, 50 centavos cada, e pensei que nem iria fumá-los. Contei para o Danillo e ele me disse que eu sou uma otária, com o que eu fui obrigada a concordar. Mas dessa vez foi diferente. Me senti diferente. Gostei de fumar. Me senti adulta. Mesmo assim, queimei meus braços com a brasa, porque eu sou assim. 
   Com a nova reação, comprei um maço de White. É um cigarro muito gostosinho de fumar. Leve, macio, entra com sutileza. Só depois de fumar quase o maço inteiro eu notei que ele estava vencido, e perguntei ao Danillo o que aconteceria se uma pessoa fumasse cigarro vencido, ao que ele me respondeu: "o que acontece com quem toma veneno de rato vencido?"... e eu ri, mas pensando bem, acho que depende da sorte de quem toma o veneno. 
   Acabado este, e não conseguindo achá-lo mais (a bem da verdade, eu só fiquei com preguiça de ir onde havia comprado antes, e fui em outro lugar mais perto), comprei o Minister, que não é um bom cigarro. Ele é forte e fedorento e as tragadas são estranhas. Então eu decidi que não iria mais fumar. Mas numa noite de euforia, agitadíssima e sem saber o que fazer comigo mesma, fumei 5 cigarros, acendendo um no final do outro, até que passei mal, e vale dizer que eu não tenho mais bombinha de salbutamol, então foi um momento delicado.
   Quando o Minister acabou, eu comprei o Winston blue, que também é muito bom. Eu estava sempre jurando que não precisava de cigarro, mas quando um maço acabava e eu ficava sem, batia uma certa angústia... 
   No dia em que eu fui internada, em abril, comprei quatro camel, e senti o quanto são horríveis enquanto os fumava, um atrás do outro, com um coquetel de maracujá enojante para acompanhar, sentada nos degraus do cemitério, me aquecendo para dar início ao show enquanto lia O Lobo da Estepe no escuro e tinha minha cabeça explodida das mais variadas maneiras.
   E no hospital, internada, os pacientes podiam fumar — em algumas horas do dia. Depois do almoço e depois do jantar, mas alguns enfermeiros mais legais deixavam a qualquer hora do dia, especialmente quando eles próprios queriam fumar. Era o momento de socialização, quando todos os loucos se reuniam numa área de fumante toda pichada com palavras incompreensíveis e profecias e versículos e desenhos de pintos e bancos quebrados e cinza de cigarro no ar. Quem não tinha cigarro aparecia para implorar um trago, quem não fumava aparecia só pela conversa, que fatalmente acabava com alguém surtando e saindo na porrada com outro alguém, e umas vezes eu tentava apartar. Noutras eu só assistia, tragando meu cigarro.
   Dentro do hospital, ao menos na ala psiquiátrica, o cigarro era a base de troca. Quem não fumava, mas tinha cigarros, os dava em troca de comida e outras coisas. Eu sempre conseguia cigarros, mesmo quando não tinha vontade de fumar, pois fiz amizade com muitas pessoas. Entre os loucos eu estava no meu lugar. Estava confortável. E devo dizer, que talvez pela medicação na cabeça, três caras me queriam, e para provar a devoção, me ofereciam cigarros, beijos roubados e chocolates contrabandeados.
   Lá nós fumávamos, em geral, eight, que é o cigarro mais nojento e pesado que já fumei na vida. Mas era barato, e os enfermeiros mais legais até levavam um maço para distribuir aos pacientes. Quando recebi alta, eu, que cheguei sem nada além do meu exemplar de O Lobo da Estepe e um desodorante, havia ganhado tantos cigarros, que tinha um maço cheio e outro pela metade; do eight ao winston blue. Deixei para um louco consciente, sob o olhar reprovador da minha avó.
   Fora do hospital, eu disse para mim mesma que estava farta de cigarros, mas comprei um maço de lucky strike, porque é a marca que sempre associei ao requinte dos fumantes abastados. E afinal, é a marca que o Thiago Mattos cita no meu poema preferido de sua autoria (não, da autoria do Paco Bernardo). Mas, devo dizer, deixou a desejar. É um cigarro muito forte para o meu gosto asmático, e não conseguia sequer fumar um inteiro, porque ficava de saco cheio na metade.
   Pensei em dar para alguém, mas quis guardar porque é o lucky strike e o Thiago Mattos o citou no meu poema preferido. 
  Até que hoje eu virei a cabeça enquanto secava os cabelos, e sentindo um vazio incontrolável e não sabendo o que fazer comigo mesma, logo quando eu estava tão empolgada, e nas tantas preocupações financeiras, é claro, eu o tirei de sob o livro do Nick Hornby, peguei um e decidi fumar lá no quintal, porque não quero impregnar meu quarto com cheiro de cigarro novamente.
   Sentei num dos bancos do quintal, olhando para o abacateiro picotado, com ódio e tristeza ao mesmo tempo, e para a ausência de estrelas e ausência da Lua. Hoje eu fui abandonada por todos. E pensei que é justamente nos dias em que preciso de conforto que as pessoas e as coisas me abandonam. Pensei na ala psiquiátrica enquanto apagava o cigarro, que continua muito forte para o meu gosto, mas que fumei até o fim, com certo prazer pelo estrago.
   Subi para o meu quarto. Sentei à minha mesa, respirando alto, pausada e intensamente, sentindo meu rosto ficar vermelho e ardente. Eu fico assim quando me bate uma raiva desmedida. A raiva era das pessoas, mas acima de tudo, de mim mesma. Eu não consigo me libertar! Eu sempre serei o lixo descartado das pessoas! Encarei as cartelas de remédios à minha frente e pensei em tomar todos, especialmente o diazepam. Me imaginei o fazendo. E aquela velha voz interior disse, em alto e bom tom: "a resposta para este pensamento está no seu último post, sua imbecil".
   Me contive. Eu não sei o que fazer comigo mesma. Por dentro eu quero gritar e socar tudo e todos até que as minhas juntas sangrem e minha visão fique embaçada pelo suor. Eu quero destruir o meu quarto e depois a minha casa e depois o abacateiro, porque agora ele está arruinado, e quero destruir o mundo e todos que o habitam, porque estão todos mais arruinados ainda! Todas as coisas são inúteis! Eu queria destruir todo e qualquer traço de sentimento que existe dentro de mim!
   Mas por fora, eu fiquei paralisada, o olhar fixo no nada, só imaginando como seria destruir todos e depois destruir a mim mesma.
   Peguei mais um cigarro, fui para o quintal. Havia passado um tempo, e agora a Lua se mostrava, embora fosse ofuscada por umas nuvens espessas. Um avião passava, lá no alto. Eu odeio aviões, barulho de aviões e sua capacidade de cair em cima das coisas. Mas não liguei. Eu fumei, tragando e olhando para o cigarro queimando, pensando em apagá-lo na minha própria cara. Uma formiga escalou minha perna e eu a joguei para longe. Eu odeio formigas.
  Hoje eu odeio todas as coisas e todas as coisas me odeiam. Pensei no conforto de abraçar fumantes, enquanto fumava meu cigarro, e quando terminei, senti o cheiro, o mesmo cheiro que me causa conforto, nos meus cabelos. Eu queria que alguém sentisse conforto em me abraçar e sentir o cheiro dos meus cabelos. Joguei o cigarro, finalizado, no chão.

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

a morte do intelecto

Eu estive lá.
Eu sofri 
um pouco.
Eu sentei em cadeiras desconfortáveis.
Eu sou uma lágrima do sol.
Sou uma colina pela qual 
os poetas correm.
 Inventei o alfabeto 
depois de observar o vôo das garças 
que fizeram letras com suas pernas.
 Sou um lago na planície.
Uma palavra 
numa árvore.
Sou uma montanha de poesia.
Sou uma blitz
no inarticulado. 
Eu sonhei 
que todos os meus dentes caíram 
mas a língua sobreviveu 
para contar a história. 
Porque sou um silêncio 
poético. 

(Autobiografia - Lawrence Ferlinghetti)

   A noite passada eu tive um sonho, a princípio triste. O conteúdo principal não interessa. Mas eu chorava, e tinha alguma coisa prendendo minha fala. Eu puxava minha língua para fora, ela era gigantesca, e eu estava a ponto de cortá-la com uma tesoura. Impedia a mim mesma. Acordei. Voltei a dormir. Sonhei que tinha uma gosma preta e enorme, feito chiclete, no céu da minha boca. Eu puxava, puxava e ela não saia por completo nunca. Me angustiava, me sufocava, me impedia de falar. Eu estava na escola Benedito Calixto, e abandonava a aula na metade, puxando a gosma, mas quanto mais eu puxava, mais ela vinha.
   Estava na rua. Tinha um monte de terreno baldio e gente suspeita. Tentava esconder o celular dentro da calcinha, mas não conseguia, e o colocava no bolso da minha mochila. Caminhava desconfiada, olhando para os lados, ainda puxando a gosma e tentando encontrar o meu caminho. Alguns homens me seguiam. Ouvia um deles perguntar para um grupo de outros homens se eu era dali, diziam que não. Dois deles me paravam num corredor estreito, anunciavam o assalto, e eu protegia minha mochila, tornando óbvio que o que interessava estava ali dentro. Tentava lidar com a gosma e com a situação.
   Eu dizia: "por favor, me deixem ir! eu sou apenas uma estudante!". Esperava pelo momento em que eles sacariam suas armas, mas o que eles tiraram dos bolsos foram mesmo adagas, prontos para me picotar se eu não lhes entregasse alguma coisa. Mas eu teimava, não lhes daria nada.
   Me atiraram ao chão. Eu protegia minha mochila. Eles pairavam acima de mim com suas adagas e eu implorava: "não me matem, eu sou apenas uma estudante! não me matem, por favor! sou apenas uma estudante!". Implorava, mas não cedia.
  Eles me achavam patética, implorando ridiculamente no chão, com gosma grudenta saindo da boca, e sangue, que viera de algum lugar. Então  eles jogaram as adagas ao meu lado e foram embora, enojados com a minha covardia.
   Eu ainda estava no chão, recolhendo as coisas que haviam caído da minha bolsa, quando surgiu outro homem, com outras intenções, e com arma em punho. Eu peguei a adaga e o matei antes que ele tivesse chance de qualquer coisa. Corri, temendo que seus companheiros chegassem para me matar.
   Quando penso na morte, de forma natural, num acidente ou num assassinato, eu penso que não quero morrer. E quando eu penso na existência, eu penso em suicídio. Tem uma grande diferença entre morrer e se matar. Entre existir e viver.    
   A última vez que eu tentei suicídio, não tive medo. Eu tive certeza. Depois de uma festa familiar — acho que o aniversário da minha avó —, eu subi para o meu quarto com algumas latinhas de cerveja e tomei cartelas dos mais variados medicamentos, que tinha à minha disposição graças aos meus meses de rato de laboratório no HC, sob a supervisão do meu manipulador, mas querido doutor Marcelo (que por sinal, eu acredito que deveria tomar tantos remédios quanto eu, para tratar de sua sociopatia. É apenas o meu diagnóstico, você pode procurar uma segunda opinião, querido). 
  Entre o repertório: Topiramato, bupropiona, lítio, quetiapina, abilify, gabapentina e o temido heimer, que serve para tratar, como o nome sugere, alzheimer, mas estava sendo testado em mim, "simples" paciente portadora de transtorno mental. Àquela altura eu tinha uma sacola de supermercado cheia de medicamentos que sobravam entre uma consulta e outra. Todos eles não caberiam em mim, escolhi, portanto, quase que aleatoriamente.
   Coloquei dois colchões no chão, um ao lado do outro, para que eu não fosse ouvida me debatendo caso tivesse uma convulsão. Tranquei a porta do meu quarto, mas sabia que ninguém entraria, a não ser que eu passasse muitos dias sem dar o ar da minha graça na cozinha. Coloquei música para tocar on repeat no celular: o álbum era o Meteora, do Linkin Park. E por fim deitei, coloquei os fones e dormi quase que de imediato. Não sei se os remédios já faziam algum efeito ou se eu simplesmente fui capaz, por uma vez na vida, de desligar o meu cérebro. Não chorei. Eu estava certa do que queria e estava certa de que aquela vez era para valer; não pediria ajuda no último momento, não acordaria nunca mais. 
   Ledo engano. Dormi, descobri depois, por aproximadamente 30 horas, e acordei, ah, sim, eu acordei, ao som de Linkin Park. Estava atordoada. Não é figura de linguagem, eu estava atordoada. Era como se eu estivesse bêbada, só que muito pior. Minha cabeça girava insanamente, feito um pião, e ao me levantar, com esforço, cambaleei pelo meu quarto, tentando me segurar à alguma coisa, mas nada parecia estar ao meu alcance. Não conseguia focar minha visão em lugar algum; quando eu olhava para as coisas era como se estivesse vendo-as multiplicadas por mil. Minha pele ardia, como se eu tivesse ficado exposta ao sol por todo o tempo que dormi. A despeito disso, tremia loucamente, morrendo de frio. Meu coração vibrava rapidamente, desconfortável dentro da minha caixa torácica. Não havia o menor traço de estabilidade no meu corpo, por dentro ou por fora, e menos ainda na minha mente. Eu estava confusa, não sabia quanto tempo havia se passado. Não sabia se estava viva ou morta. Tentava respirar fundo, fazer todas aquelas sensações passarem, mas era inútil. Comecei a chorar. Por estar tão fodida, pela agonia de tudo que estava acontecendo ao meu corpo.
   Consegui, com alguma dificuldade, destrancar e abrir a porta, e chamei minha madrasta, que estava no quarto ao fim do corredor do meu. Ela veio, e eu, deitada, porque não conseguia mais me manter de pé, expliquei, voz pastosa e difícil de sair pela garganta, o que havia feito e que precisava de ajuda. Meu irmão caçula, à época com uns 4 ou 5 anos, me assistia, e eu sentia vergonha e pesar por fazê-lo me ver daquela forma. Ela disse "ai meu Deus", e me explicou que eu não havia saído do meu quarto por mais de um dia. Foi chamar meu pai, que surgiu em seguida, nervoso, dizendo coisas como "eu não acredito que vou ter que passar por isso de novo", e outros despautérios que não cabiam na boca de um pai vendo sua filha naquela situação, e que de forma geral não ajudaria em nada. A muito custo, minha madrasta o convenceu a me levar ao hospital. Ele relutava com a ideia, desgostoso de ter que perder seu tempo dirigindo seu estorvo de filha, que não estava morrendo.
  Minha vó estava no andar abaixo, aflita. Entramos no carro, eu, meu pai e minha madrasta. Meu pai dizia palavras duras, brigava comigo, mas aquela era a menor de minhas aflições. Os efeitos físicos eram muito mais devastadores.
   Chegamos ao hospital. Meu pai avisou que não ficaria ali. Entramos, ele apresentou a situação, deu meus dados, me deixou sentada numa cadeira esperando pelo atendimento do cardiologista, e foi embora. Me buscaria mais tarde.
   Eu mal conseguia ficar sentada, pois meu corpo estava pesado e cambaleava. Para a frente, para os lados. Eu tentava segurar minha onda. 
   Passadas algumas horas, fui atendida. O médico me perguntou o que eu havia tomado. Confusa, respondi alguns dos nomes que lembrava. O heimer me preocupava mais, por seus efeitos neurológicos. Ele me disse que era impossível eu ter tomado todos os remédios que alegava, pois se o tivesse feito, estaria morta. Além do mais, já era tarde para lavagem estomacal, então não havia nada a ser feito. Pois, doutor, eu tomei, e talvez eu esteja mesmo morta, porque esse mundo se encaixa perfeitamente na minha visão de inferno.
   O médico descrente fez o exame cardiológico, não sei dizer o nome. Analisou o que viu e me dispensou. Eu fui até o balcão de atendimento e expliquei que recebera alta, mas que não tinha condições de voltar sozinha para casa. Me disseram alguns sinto-muitos, não levamos pacientes às suas casas, e na falta de escolha, fui caminhando, em zigue-zague, para a rua. Estava em frente ao hospital, desnorteada, quando chegou o meu pai com seu carro, e dessa vez, em silêncio, dirigiu. Chegamos em casa. Eu subi para o meu quarto. Os efeitos duraram por meses. 
   Meus olhos ficaram fundos e negros, minha pele estava laranja, meu corpo não parava quieto nem mesmo por um segundo; eu era incapaz de ficar sentada por mais do que alguns minutos. Meu coração não desacelerava. Minha mente era incapaz de seguir uma linha de raciocínio. Eu não conseguia dormir, falava pouco, minha visão estava sempre turva. O pânico de que nunca mais voltaria ao normal era o que mais me afligia.
   Em casa ninguém falou nada sobre nada. Aos poucos, muito lentamente, em meio à solidão, a maioria dos efeitos foram se dissipando. Não estive completamente só, é verdade, porque tive Charles Chaplin. Quando minha visão deixou de ser borrada e minha cabeça parou de girar, aproveitei que tinha baixado, uns meses antes, todos os curtas de Chaplin, e os assisti. Com a inquietação de um corpo que não parava de tremer e se sacudir, mas assisti. E aqueles curtas fizeram bem ao meu espírito. O meu preferido é One A.M.
   Após muitos meses, minhas pernas foram aquietando. Meu corpo foi parando de tremer. Meu coração desacelerou. Eu voltei a conseguir sentar e assistir coisas mais longas do que 10 minutos. Mas nem tudo voltou ao normal. Minha mente não é tão rápida quanto já foi, eu mantenho problemas severos de concentração, que me afetam intelectualmente, e minha fala se tornou lenta e confusa; eu esqueço as palavras, repito pensamentos e gaguejo. Se já não gostava de falar antes, hoje em dia tal ato me provoca maior apreensão. Eu tentei matar meu corpo, e matei parte do meu intelecto. Esse corpo resiste, ele teima em continuar.
   

terça-feira, 18 de abril de 2017

estou bem

Psiquiatra: Você está com uma cara ótima.
Eu (por dentro): só se for a cara mesmo! Aprendi a disfarçar.
Psiquiatra: você está bem?
Eu: não. Esses dias foram difíceis.
Psiquiatra: Por que?
Eu: Muita ansiedade, muita angústia. Tenho bebido.
Psiquiatra: você não estava bebendo antes, né?
Eu: não.
Psiquiatra: tem se cortado?
Eu: sim.
Psiquiatra: onde?
Eu: Coxas e barriga.
Psiquiatra: e o que é isso nos seus braços?
Eu: queimaduras de cigarro. Comecei a fumar.
Psiquiatra (rindo): Nossa, sério? Por que?
Eu: Porque ando muito ansiosa, angustiada.
Psiquiatra: Mas tudo bem, fumar não é tão ruim assim...
Eu: eu tenho asma!
Psiquiatra: Eita, Cíntia!
Eu: tenho pensado muito em suicídio.
Psiquiatra: É? Todos os dias?
Eu: Sim
Psiquiatra: e como é isso?
Eu: eu fico pensando em formas 100% garantidas de morrer, procurando métodos.
Psiquiatra: Por exemplo?
Eu: São coisas meio hardcore... enfiar uma faca no coração! Li sobre pessoas que fizeram isso... (...)
Psiquiatra: Onde você consegue leitura sobre esse tipo de coisa?
Eu: No google. Pesquiso em inglês. Li sobre um cara que deu 5 facadas no próprio peito.
Psiquiatra: Imagina que terrível...
Eu: imagina o desespero que isso requer... Meu único medo é falhar e ficar pior do que agora.
Psiquiatra: É o que geralmente acontece. Mas você não vai se matar, não é?
Eu: talvez não com facadas no peito, mas no final sim!
Psiquiatra: Por que?
Eu: Porque não existe futuro pra mim!
Psiquiatra: Por que diz isso?
Eu: se eu não morrer vou acabar uma moradora de rua!
Psiquiatra: Não vai. Você tem família, apoio da equipe do posto. O que está ruim?
Eu: TUDO.
Psiquiatra: essa resposta é muito fácil.
Eu: É tudo. minha vida profissional, amorosa e com família e amigos, é tudo uma bosta!
Psiquiatra: e você pensa em matar alguém?
Eu: sim... muita gente.
Psiquiatra (rindo): quem você mataria?
Eu: é sério... não é engraçado.
Psiquiatra: eu sei, por isso...
Eu: ... Queria matar todos que me ofendem.
Psiquiatra: e isso acontece sempre?
Eu: Sim.
Psiquiatra: como te ofendem?
Eu: não valorizando meus sentimentos! Mataria meu ex-psiquiatra, e depois me mataria! (...)
Psiquiatra: bom, Cíntia, é ótimo te ver tão bem! Até a próxima consulta!