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domingo, 15 de maio de 2022

Anderson

Você morreu.
Acabou. Você acabou.
Era para eu estar feliz? Aliviada? Me sentindo vingada? Eu não estou sentindo nada de bom. O que sinto é a raiva crescendo em mim, se espalhando dentro de mim, tomando conta dos meus movimentos. Meus músculos se contraindo, meus punhos cerrando, meu coração acelerando mais e mais e mais, ... Sinto o nojo e o ódio exercendo sua força violenta na minha alma, me estraçalhando um pouco mais, me tornando menos humana. Lágrimas grossas inundam meu rosto.
Nunca pensei muito na sua morte. Você esteve perto dela algumas vezes ao longo dos anos, mas o pensamento de você morrer nunca me foi realmente reconfortante. A morte sempre pareceu tão pouco — mesmo as formas mais brutais de morte! Parecia mais justo você continuar vivo, sujo, fraco, chafurdando em decadência e dor. Vivendo um reflexo do que me fez, do que me tornou.
Eu te odeio, Andy.
Houve um tempo que eu te amei. Te amei com a pureza de uma criança, com a devoção de uma sobrinha para o seu tio preferido, mas você destruiu o amor, você me destruiu. Você profanou meu corpo, marcou minha alma, matou minhas possibilidades. Mudou o rumo da minha vida inteira. Tudo que eu tenho, tudo que eu sou, tudo que eu amo, está manchado pelo que você me fez. Tudo que eu não tenho, foi você que me roubou. Você roubou uma criança de 6 anos de ter uma vida saudável e plena. Você esvaziou minha alma de tudo que era bom e no lugar colocou apenas podridão. Você me roubou minha família, que preferiu ficar ao seu lado e acreditar que eu sou mentirosa e torpe. Você me roubou a possibilidade de construir uma nova família, longe de você, porque me deixou louca, sem nada para oferecer para uma criança, para alguém. Você, com a sua imundície, nunca está realmente longe de mim.
Nunca pensei muito sobre sua morte, mas muitas vezes pensei em te ferir. Parada e muito quieta, por anos tenho perdido meu tempo mergulhada no mesmo devaneio. Nele eu vou atrás de você com um pedaço de pau, e, aproveitando do seu estado físico lastimável, te acerto repetidamente e sem piedade, fazendo a madeira subir e descer com vigor, atingindo seu corpo, dilacerando sua pele, quebrando seus ossos enquanto te ouço implorando que eu pare e sinto o seu sangue jorrar e espirrar em mim. Mas eu ignoro suas súplicas e continuo até você apagar. A energia desse devaneio é tão forte, que quando volto a mim, sinto cansaço pelo esforço físico de te agredir.
Eu sempre pensei em tornar esse devaneio uma realidade.
Agora você me roubou até essa possibilidade.
Morrer engasgado com um pedaço de pizza é pouco. É aleatório e misericordioso. Saber da sua morte é pouco. Eu queria ter causado sua morte, eu queria ter te assistido morrer. 
Você morrer não é suficiente. Nada seria suficiente.
Hoje, como tantas vezes, eu estou chorando sozinha. As pessoas choram por você. Minha mãe chora por você, meus avós choram por você. Choram sobre o seu corpo. Ninguém chora por mim. Não tem ninguém para me abraçar e me aquecer. 
Não estou chorando por você. Estou chorando por mim. Pela Cíntia de 6 anos, sendo manipulada e violada por você. Pela Cíntia de 15 anos, sendo desacreditada por sua própria mãe após tentar se matar. Pela Cíntia de 21 anos... suja como você, entorpecida de álcool e cocaína como você. Pela Cíntia de 32 anos, que te odeia, que tem te odiado uma vida inteira, mas sente esse vínculo eterno com você.
Eu te odeio. Te odeio, mas meu ódio vai te manter vivo. Quem te ama vai morrer. As pessoas vão te esquecer. Essa é a verdadeira morte, ser enterrado e esquecido! Exceto que eu não vou te esquecer. Você vai permanecer em mim da forma mais vil. Nos meus pesadelos, nos meus pensamentos, nas lembranças que me tomam de súbito e corrompem meus melhores momentos... na minha auto-destruição, no meu fracasso!
Você não vai morrer de fato, até que eu morra e seja esquecida por todos. Porque você roubou minha vida, e mesmo quando eu morrer, você vai continuar vivo na minha história. Quando pensarem em mim, sua existência vai estar atada à minha.
Não existe justiça possível.
Você não morreu.
Você não acabou. Você acabou comigo antes mesmo de eu começar.





segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

espetada

   Acho que engoli um palito de dente enquanto comia uma batata recheada. A princípio não parece nada, porém pesquisei no Google, e veio logo o anúncio da catástrofe. Eu sinto o palito enfiado no meu coração, espetando-o, rasgando-o, do epicárdio ao endocárdio. Meu coração sangrento, sangra, sangra... 
   Talvez eu morra.
   Sozinha no escuro, o coração espetado, eu fico em silêncio, aguardando. Silêncio aqui dentro, quero dizer. Lá fora os fogos já estouram, ao longe. Não olho pela janela, só ouço, bem parada, a respiração bastante controlada...
   Falta pouco. Cinco minutos e isso acaba, só para depois começar de novo.
    Não ouço os risos, mas certamente eles também ecoam lá, bem longe do meu coração que descompassa com a ferida e com a angústia.
   Eu os imagino, os vejo — no âmago da minha loucura. Estão lado a lado, as cabeças erguidas, observando os fogos... e quando o relógio anuncia, por fim, a meia-noite, ela, com um sorriso extremamente largo, se joga nos braços dele. Ele se diz solitário, mas não é, não de verdade. Com ela nos braços, ele nunca está sozinho. Beijam-se. Ela sente o calor do abraço dele lhe envolver por completo. Eu sinto o calor da ansiedade subindo pelo meu corpo, se concentrando nas minhas duas bochechas, tão vermelhas quanto o meu coração sangrando, sangrando. 
   Desejam-se feliz ano novo, sorriem com os lábios e os olhos.
   O meu coração está doendo, talvez eu morra. O palito espeta minha alma. Sozinha, talvez eu morra. 

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

urbana

Vagando por essa cidade caótica
Eu vejo você

Nos olhares infantis
No vento cheio de poluição que espanca minha pele
No cheiro dos cigarros acesos
No meu próprio caminhar,
Refletido nas portas espelhadas de edifícios instáveis

Parada no ponto de ônibus 
Eu
Sinto você
Quando toco as pérolas pendendo do meu pescoço
E te imagino, me puxando
Para muito perto

Violência, necessidade

O colar partindo
As bolinhas marfim rolando
... Para dentro do esgoto.

Eu não ligo.

-- 

Sentada à janela
Eu ouço você

Enquanto aproveito o balanço
Para...
...

Meu corpo arqueia
Um gemido rebelde se faz ouvir
Me olham
Minhas bochechas não coram

A dor é iminente

Mas eu acho que todo mundo deveria acordar atordoado
Às quatro horas de uma tarde
Ao som de um poema recitado

Todo mundo deveria se perder,
Uma vez ou outra

Eu me perco na constelação do seu corpo.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

fumaça

   As coisas invariavelmente começam como se nada estivesse acontecendo. É simples assim. Você não é ninguém pra mim, e eu não sou ninguém para você. Bate até um desconforto, de tanta mensagem chegando, e do impulso de respondê-las. Te vejo como um todo — um amontoado de características. Um homem como qualquer outro. 
    Mas aos poucos... O papo passa do morno para o muito quente — a sensação é, ao mesmo tempo, sufocante e deliciosa, como são as melhores coisas. Palavras bem aplicadas, surge a identificação. Você entra na minha cabeça. Forjamos a conexão... 
   ... Talvez seja por hábito, que nós fazemos essas coisas. Continuamos, porque a opção é o vazio. O nada perde espaço, se torna alguma coisa... Dez minutos já não são o suficiente. Eu quero mais, quero todos os seus minutos e todos os seus pensamentos. 
   Vou isolando suas características, passa a me agradar o que sinto e o que vejo. Pintas, olhos, dedos. Desejo. O jeito que os seus lábios soltam a fumaça... 
   Sozinha na minha cama, fantasio, ao som de Portishead, sobre o seu cheiro. Sobre sua voz, a textura da sua pele... a temperatura do seu abraço. Fico imaginando o tom do seu gemido. Tudo em você é meio encenado...
   Quando noto, você está sob a minha pele. Meu ser anseia por você. A mais inocente lembrança da sua existência eriça todos os meus pelos. O meu coração descompassa, o meu cérebro fica dormente. O seu nome encharca a minha calcinha...
   É tudo muito breve, as coisas são intensas. Mas eu descobri, ao longo da vida, que intensidade é algo que não dura...
    É brutal, a porrada que atinge o meu estômago. O sentimento é um raio atravessando o meu corpo repetidamente. Meu coração ganha mais um remendo. O buraco no qual venho caindo fica mais profundo.
   E de repente, são cinco horas da manhã. Eu fumo meu primeiro cigarro em muitos meses, para me sentir mais perto de você. Olho suas fotos, revivendo as palavras, e penso no absurdo das coisas. Há pouco tempo você nem existia. 
   O fluido transparente escorre pelas minhas coxas, enquanto você dorme com ela.
   Solto a fumaça.



   

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

e os namoradinhos?

   Devo admitir que diferente da maioria de vocês, eu não tenho parentaiada para me perguntar "e os namoradinhos?" no natal e no ano novo, porque não comemoro tais datas com parentes.
   Mas logo na curva, em março, tem o aniversário da minha avó, o que sempre gera um churrasco com direito a parentes de até quinto grau que eu nem lembro que tenho no resto do ano (e que muitas vezes só sei que é parente porque alguém me conta durante o churrasco). 
   Sendo minha vó, minha mãe de consideração, eu não tenho escapatória. Fico no meio do evento fervilhando de Liras e Oliveiras e Marcianos e Nascimentos, a maioria com caras, vozes e hábitos muito semelhantes, e vizinhos que se convidam ou vão mesmo entrando sem aviso nenhum.
   Muitos deles, conhecendo meu gênio ruim, evitam, sabiamente, qualquer tipo de aproximação e se limitam a um cumprimento de longe com um aceno de cabeça, ou fingem que não me viram, favor que retribuo.
   Mas tem sempre alguém para forçar amizade. Geralmente pessoas que eu nem sei o nome, mas eles sabem o meu: "Cíntia, como você está bonita. E os namoradinhos?".
   Porque a minha vó tem punho de ferro, procuro não ser rude além do limite e muitas vezes apenas sorrio e espero a pessoa prosseguir com seus assuntos vazios até que eu possa arrumar uma desculpa para me desvencilhar de sua presença.
    Mas essa noite eu tive um flash genial. 
   Eu poderia contratar dois caras e deixá-los conversando a um canto. O primeiro que me perguntasse "e os namoradinhos?", e eu abriria o meu sorriso mais forçado e diria "ah, está ali. Vou te apresentar!" e chamaria, em direção aos dois: "Amor..." e eles viriam até nós. Eu me colocaria entre eles e faria as apresentações: "fulano, sicrano e beltrano" etc. E o parente perguntaria: "ah, e qual dos dois é o seu namorado?", ao que responderia: "os dois!", e daríamos um beijo triplo cheio de língua e saliva e mãos bobas bem no meio do quintal. 
   Haveria silêncio, pratos caindo, crianças chorando, o olhar da minha vó e fim.


    Contrata-se namorado de aluguel
    Pagamento em beijos, cervejas e lágrimas da família tradicional brasileira (plus: todos os meus parentes são evangélicos)

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

sonho

   Os risos do lado de fora pararam. Surpresa, eu engoli o choro.
   A escuridão ainda se fazia presente, e por alguns momentos tudo foi silêncio; até que o ranger da porta se abrindo falou mais alto, e seguido a isso veio o som  do canto de pássaros ao longe e o murmúrio do vento circulando com suavidade, como ele faz após uma tempestade; então fui tomada por uma luz forte, de ferir os olhos, que preencheu todos os espaços, iluminou todos os recantos do porão. Por instinto, cobri meu rosto molhado com dedos vacilantes e infantis, e entre o vão deles eu pude ver uma mão saindo do meio de toda aquela claridade. Primeiro eu pensei que a mão estava ali para me ferir, mas ela se aproximou lentamente e parou à minha frente, suspensa, a palma para cima; convidativa.
   Hesitei por alguns segundos, mas aceitei o toque daquela mão quente e firme, que apertou meus dedos entre os seus de forma reconfortante. A mão me puxava, mas eu não queria sair ainda, não sabia o que me esperava lá fora. Meu corpo parou abruptamente. Os dedos dele acariciaram o meu pulso, como que para dizer que estava tudo bem, eu já podia sair.
   Caminhei passos muito lentos, curtos, em direção a luz, e envelheci 21 anos no momento que coloquei meus pés para fora. 
   O porão sumiu atrás de mim e meus olhos se acostumaram a claridade. Eu estava em um campo aberto que se estendia por muitas milhas, e a despeito de todo aquele espaço me fazendo sentir pequena, eu não tive medo; não estava sozinha. Era um campo de trigo; eles subiam, serpenteando por nossas pernas, fazendo cócegas, batiam mesmo em nossas cinturas. Apesar da claridade, o sol não era ardente, e a brisa secou meu rosto com o cheiro de coisas vivas. Cheiro de maçã, de gengibre, de laranja, de coentro e dama-da-noite, cheiro de amor. A mão dele não soltava a minha, que já não era vacilante nem infantil.
   Caminhamos em silêncio, em direção a uma colina muito verde, a qual subimos. No topo, uma árvore que não era frutífera e tinha galhos raros, deixando a luz do sol emitir seus raios entre um e outro. Sem soltar minha mão nós nos deitamos sob a árvore, raios inconstantes refletiam sobre nossos corpos e a brisa contínua trazia, a cada rajada, novos cheiros que pairavam sobre nós — eu com o corpo virado para cima e ele ao meu lado, me olhando atentamente enquanto eu enchia meus pulmões de ar e depois soltava, lenta e calculadamente, querendo absorver tudo aquilo que por tanto tempo esteve fora do meu alcance. Eu via o céu e todas as nuvens que formavam coisas lindas.
   Milimetro por milimetro nossos corpos se aproximaram, sem nunca desatarmos nossas mãos, que suavam uma contra a outra. E pousei minha cabeça sobre seu peito, ouvindo seu coração bater ritmado, sem exageros e sem espantos. Eu não queria queria dormir, tinha medo que tudo estivesse acabado quando eu acordasse, que eu seria levada de volta para o porão. Mas, cansada pelo choro de tantos anos, e embalada pelo vento, pelos cheiros, pelo sol e pelo compasso daquele coração, minhas pálpebras pesaram e cederam. Eu dormi e sonhei. Eu sonhei. 



sábado, 7 de outubro de 2017

lucky strike

   Eu tenho asma, sabe...
   Quando eu era criança, enrolava um pedaço de folha de caderno, acendia e tragava, imitando as pessoas que eu via fumando nos filmes — e ao meu redor. Muita gente fumava nos anos 90, não é como hoje em dia que todo mundo se preocupa tanto.
  Quando eu não acendia, porque o papel queimava muito rápido e a fumaça era literalmente intragável, eu ficava com o cigarro de mentira entre os dedos. Sentava, levava à boca, imaginava minhas tragadas. Fingia que estava em um restaurante chique, com uma taça de vinho francês e um prato de macarronada à minha frente.
   Alguns anos antes, quando eu ainda frequentava a igreja, participei de uma peça de teatro com o Francis, na qual éramos adolescentes rebeldes e sem futuro que fumavam cigarros e falavam palavrões, e outros jovens nos salvavam da perdição com o evangelho. Mas ali, naquela época, fumando cigarros de mentirinha, eu era livre da igreja, era livre da condenação.
   Hoje é um desses dias em que eu me perguntei constantemente o que exatamente eu estou fazendo no mundo. Eu fico vivendo um dia de cada vez, esperando que o próximo seja melhor. Fico imaginando cenários, imaginando pessoas, que fora da minha imaginação são completamente ordinárias, mas dentro, como elas são incríveis...
   Lavei meus cabelos. Estava chovendo e eu pensava que a energia elétrica iria cair, como é de costume no meu bairro, e eu não teria como secá-los. Afora isso, meus pensamentos estavam povoados com dinheiro; com a quantia que preciso para comprar meus cosméticos e pagar meus óculos, colocar crédito no bilhete, comer alguma besteira para não passar vontade, tomar uma cerveja de vez em quando e agora eu tenho que pagar a geladeira também, e pensava como nunca tem dinheiro suficiente para que eu faça o curso que quero fazer — para dar continuidade à minha vida e ganhar dinheiro de verdade para ter planos maiores do que comprar meus cosméticos e pagar meus óculos e contar os centavos para inteirar a condução e pagar a geladeira que ninguém me consultou ao comprar, e que ficam tirando da posição que eu coloquei — para que a porta não bata no móvel que fica em frente a ela. 
   Ir embora da casa da minha avó. Levar todos os meus livros, meus DVDS, meus pôsteres (especialmente o do Adrien Brody), meu computador, meus cosméticos, e deixar o resto. Embora a minha atual cama seja muito boa. Ela sustenta o meu peso sem reclamar, e também não reclama quando há companhia somada ao meu peso. Talvez eu levasse a cama. Eu poderia comprar um guarda-roupas sem gavetas. Eu odeio gavetas. 
   Pois eu estava secando os cabelos, porque a chuva parou e a energia não caiu, ainda bem, e estava  pensando que preciso de aproximadamente três potes de creme de pentear por mês e 4 desodorantes, e duas caixas de lenço de papel para limpar meus óculos, e que tenho creme hidratante o suficiente para alguns meses, e que só vou ter dinheiro no fim do mês, e nem sei quanto. Pensava em tudo isso, e numa certa pessoa, quando, para secar uma área específica do cabelo, eu virei minha cabeça, olhei para a minha estante magnificamente abarrotada e vi o maço de lucky strike, que eu guardei embaixo de um livro do Nick Hornby, como souvenir de uns meses atrás, quando eu fumei por algum tempo feito uma chaminé, mesmo tendo asma. Cigarro me deixa tonta, mas a sensação não é das piores. 
   Eu sempre odiei o cheiro de cigarro aceso, o cheiro de cigarro quando as pessoas estão fumando, mas algo no cheiro de cigarro impregnado nas roupas das pessoas que fumam há muito tempo me causa conforto. Eu gosto de abraçar fumantes. É como... encontrar aquilo que eu posso chamar de lar. Não importa quem seja. Eu posso fechar meus olhos abraçando um fumante e vou me sentir em casa. Se a pessoa estiver usando uma jaqueta jeans, então...
   Desliguei o secador. Eu tentei diversas marcas de cigarro quando comecei a fumar, em março desse ano, quando eu não sabia o que fazer comigo mesma. Fumei primeiro o camel, que comprei solto num bar que só tinha homem e eles ficavam olhando com estranhamento enquanto eu bebia minha cerveja, como se eu estivesse invadindo um espaço sagrado. 
   Em 2009 eu havia tentado fumar derby, que roubei do meu tio e pensei tudo bem eu roubar os cigarros dele, ele roubou minha inocência, e não gostei nada, nada. Minha língua ficou pastosa, eu odiei o gosto, o cheiro e a forma como entrava nos meus pulmões. Acabei apagando-o no meu pulso, e que dor foi aquela!... 
   Então, após tal experiência, comprei apenas 2 cigarros, 50 centavos cada, e pensei que nem iria fumá-los. Contei para o Danillo e ele me disse que eu sou uma otária, com o que eu fui obrigada a concordar. Mas dessa vez foi diferente. Me senti diferente. Gostei de fumar. Me senti adulta. Mesmo assim, queimei meus braços com a brasa, porque eu sou assim. 
   Com a nova reação, comprei um maço de White. É um cigarro muito gostosinho de fumar. Leve, macio, entra com sutileza. Só depois de fumar quase o maço inteiro eu notei que ele estava vencido, e perguntei ao Danillo o que aconteceria se uma pessoa fumasse cigarro vencido, ao que ele me respondeu: "o que acontece com quem toma veneno de rato vencido?"... e eu ri, mas pensando bem, acho que depende da sorte de quem toma o veneno. 
   Acabado este, e não conseguindo achá-lo mais (a bem da verdade, eu só fiquei com preguiça de ir onde havia comprado antes, e fui em outro lugar mais perto), comprei o Minister, que não é um bom cigarro. Ele é forte e fedorento e as tragadas são estranhas. Então eu decidi que não iria mais fumar. Mas numa noite de euforia, agitadíssima e sem saber o que fazer comigo mesma, fumei 5 cigarros, acendendo um no final do outro, até que passei mal, e vale dizer que eu não tenho mais bombinha de salbutamol, então foi um momento delicado.
   Quando o Minister acabou, eu comprei o Winston blue, que também é muito bom. Eu estava sempre jurando que não precisava de cigarro, mas quando um maço acabava e eu ficava sem, batia uma certa angústia... 
   No dia em que eu fui internada, em abril, comprei quatro camel, e senti o quanto são horríveis enquanto os fumava, um atrás do outro, com um coquetel de maracujá enojante para acompanhar, sentada nos degraus do cemitério, me aquecendo para dar início ao show enquanto lia O Lobo da Estepe no escuro e tinha minha cabeça explodida das mais variadas maneiras.
   E no hospital, internada, os pacientes podiam fumar — em algumas horas do dia. Depois do almoço e depois do jantar, mas alguns enfermeiros mais legais deixavam a qualquer hora do dia, especialmente quando eles próprios queriam fumar. Era o momento de socialização, quando todos os loucos se reuniam numa área de fumante toda pichada com palavras incompreensíveis e profecias e versículos e desenhos de pintos e bancos quebrados e cinza de cigarro no ar. Quem não tinha cigarro aparecia para implorar um trago, quem não fumava aparecia só pela conversa, que fatalmente acabava com alguém surtando e saindo na porrada com outro alguém, e umas vezes eu tentava apartar. Noutras eu só assistia, tragando meu cigarro.
   Dentro do hospital, ao menos na ala psiquiátrica, o cigarro era a base de troca. Quem não fumava, mas tinha cigarros, os dava em troca de comida e outras coisas. Eu sempre conseguia cigarros, mesmo quando não tinha vontade de fumar, pois fiz amizade com muitas pessoas. Entre os loucos eu estava no meu lugar. Estava confortável. E devo dizer, que talvez pela medicação na cabeça, três caras me queriam, e para provar a devoção, me ofereciam cigarros, beijos roubados e chocolates contrabandeados.
   Lá nós fumávamos, em geral, eight, que é o cigarro mais nojento e pesado que já fumei na vida. Mas era barato, e os enfermeiros mais legais até levavam um maço para distribuir aos pacientes. Quando recebi alta, eu, que cheguei sem nada além do meu exemplar de O Lobo da Estepe e um desodorante, havia ganhado tantos cigarros, que tinha um maço cheio e outro pela metade; do eight ao winston blue. Deixei para um louco consciente, sob o olhar reprovador da minha avó.
   Fora do hospital, eu disse para mim mesma que estava farta de cigarros, mas comprei um maço de lucky strike, porque é a marca que sempre associei ao requinte dos fumantes abastados. E afinal, é a marca que o Thiago Mattos cita no meu poema preferido de sua autoria (não, da autoria do Paco Bernardo). Mas, devo dizer, deixou a desejar. É um cigarro muito forte para o meu gosto asmático, e não conseguia sequer fumar um inteiro, porque ficava de saco cheio na metade.
   Pensei em dar para alguém, mas quis guardar porque é o lucky strike e o Thiago Mattos o citou no meu poema preferido. 
  Até que hoje eu virei a cabeça enquanto secava os cabelos, e sentindo um vazio incontrolável e não sabendo o que fazer comigo mesma, logo quando eu estava tão empolgada, e nas tantas preocupações financeiras, é claro, eu o tirei de sob o livro do Nick Hornby, peguei um e decidi fumar lá no quintal, porque não quero impregnar meu quarto com cheiro de cigarro novamente.
   Sentei num dos bancos do quintal, olhando para o abacateiro picotado, com ódio e tristeza ao mesmo tempo, e para a ausência de estrelas e ausência da Lua. Hoje eu fui abandonada por todos. E pensei que é justamente nos dias em que preciso de conforto que as pessoas e as coisas me abandonam. Pensei na ala psiquiátrica enquanto apagava o cigarro, que continua muito forte para o meu gosto, mas que fumei até o fim, com certo prazer pelo estrago.
   Subi para o meu quarto. Sentei à minha mesa, respirando alto, pausada e intensamente, sentindo meu rosto ficar vermelho e ardente. Eu fico assim quando me bate uma raiva desmedida. A raiva era das pessoas, mas acima de tudo, de mim mesma. Eu não consigo me libertar! Eu sempre serei o lixo descartado das pessoas! Encarei as cartelas de remédios à minha frente e pensei em tomar todos, especialmente o diazepam. Me imaginei o fazendo. E aquela velha voz interior disse, em alto e bom tom: "a resposta para este pensamento está no seu último post, sua imbecil".
   Me contive. Eu não sei o que fazer comigo mesma. Por dentro eu quero gritar e socar tudo e todos até que as minhas juntas sangrem e minha visão fique embaçada pelo suor. Eu quero destruir o meu quarto e depois a minha casa e depois o abacateiro, porque agora ele está arruinado, e quero destruir o mundo e todos que o habitam, porque estão todos mais arruinados ainda! Todas as coisas são inúteis! Eu queria destruir todo e qualquer traço de sentimento que existe dentro de mim!
   Mas por fora, eu fiquei paralisada, o olhar fixo no nada, só imaginando como seria destruir todos e depois destruir a mim mesma.
   Peguei mais um cigarro, fui para o quintal. Havia passado um tempo, e agora a Lua se mostrava, embora fosse ofuscada por umas nuvens espessas. Um avião passava, lá no alto. Eu odeio aviões, barulho de aviões e sua capacidade de cair em cima das coisas. Mas não liguei. Eu fumei, tragando e olhando para o cigarro queimando, pensando em apagá-lo na minha própria cara. Uma formiga escalou minha perna e eu a joguei para longe. Eu odeio formigas.
  Hoje eu odeio todas as coisas e todas as coisas me odeiam. Pensei no conforto de abraçar fumantes, enquanto fumava meu cigarro, e quando terminei, senti o cheiro, o mesmo cheiro que me causa conforto, nos meus cabelos. Eu queria que alguém sentisse conforto em me abraçar e sentir o cheiro dos meus cabelos. Joguei o cigarro, finalizado, no chão.

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Não era esse tipo de conversa que o poetinha tinha, deitado nu com seu amigo, mas acho que ele aprovaria

   Estávamos em duas pontas opostas do quarto; eu, escondida atrás de um livro, como de costume, e você eu não sei o que fazia para dizimar o seu nervosismo. Agora, atraídos feito ímãs, estamos no centro, nos encarando. Sou tomada por um impulso ou por seus braços, não sei, mas te beijo e você me beija, primeiro muito lentamente e sem saber o que fazer com as mãos, e depois com mais intensidade e meus braços ao redor de você. Assim começa a conversa. Sua barba por fazer arranhando suavemente o meu rosto, meu batom desmanchando na sua boca, seu lábio inferior entre os meus lábios canibais, duas línguas trabalhando sem premeditação, porque essas coisas acontecem de forma natural, mesmo se pensadas muitas vezes antes. Meus óculos ficam embaçados, marcados pela oleosidade natural da sua pele.
   Paramos para respirar. Tento limpar as manchas de batom de mim, em vão. A sua boca e o seu rosto também estão ligeiramente vermelhos, pelo batom, ou não, mas eu não ligo, apenas o admiro através das minhas lentes borradas. O livro, que eu ainda segurava durante o ato, tal qual uma criança com seu cobertor da sorte, jaz atrás de você.
   A primeira coisa que você despe do meu corpo são os meus óculos. Os coloca, cuidadosamente — pernas fechadas e lentes para cima —, sobre uma mesinha ou uma estante ou o que estiver disponível, não sei em que quarto tudo se dá, mas eles ficam em segurança.
   Eu vou ter que chegar muito, muito perto de você para conseguir te enxergar bem. É a miopia. Analiso seu rosto. Passo meus dedos pelos seus olhos cansados, beijo-os, esperando que sempre tenham esse ar inocente.
   Nossos corpos colados, suas mãos se precipitam sob a minha saia azul, subindo  por minhas pernas com firmeza, e parando por um momento na cinta-liga preta, mas por fim encontrando seu caminho para a calcinha de renda e o que ela esconde. Você fala comigo através dos seus dedos, me toca, mãos de trabalho escravo, me aperta, mostrando que os anos de peão valeram de alguma coisa. E eu reajo com um olhar tímido ou uma mão entre as suas pernas, provavelmente os dois, encontrando ali, no volume pulsante ou na ausência do mesmo, a resposta para a minha dúvida. A saia cai aos meus pés.
  Te guio para a cama, não pisamos no livro — por instinto. Você cai sentado, desajeitadamente, e com menos graça ainda me coloco no seu colo, mãos nos seus ombros, e te beijo, me esfregando em você, já sem pudor. Suas mãos encontram os cadarços das minhas botas novas, tiram-as, e às minhas meias. Você gosta de pés, eu tenho dois.
   Arranco sua camiseta, não sem antes sentir o seu cheiro, memorizando-o de forma abstrata, e você tira a minha blusa e meu sutiã e lambe os meus piercings; nossas peles roçando uma na outra iniciam seu próprio diálogo. 
   Deitamos na cama, conversando através de nossos seis sentidos: Visão, Olfato, Paladar, Audição, Tato e Poética.
   A cinta-liga vai pelos ares, a calcinha de renda também. Nos lemos em braile, cegos de tesão. Minhas cicatrizes provocam interesse, você se demora nelas, e com saliva eu rabisco mil poemas que sabem que são efêmeros e insistem em sê-lo, na sua pele quente. Desço os lábios cada vez mais, olhando nos seus olhos vez por outra. Seus dedos agora se enroscam nos meus cachos, que também caem sobre o seu corpo, provocando-lhe cócegas.
   Abro o botão da sua calça, desço o zíper. Te liberto de uma só vez dela e da sua cueca. Observo, ajoelhada, com uma de suas pernas entre as minhas. Demoro minha mão direita no seu peito, na sua barriga, desço com as unhas longas e pretas para as suas coxas, suas pernas, e delicadamente me curvo, meu rosto acima de você, respirando mais rápido do que o normal, te provocando um arrepio na espinha, e por fim mergulho, te ouvindo com o meu paladar. Sua respiração perde a calma, sons descontrolados escapam por entre os seus lábios; seu diafragma se contrai e expande, apoiado sobre as suas vísceras, enquanto você pousa uma mão no topo da minha cabeça. A sua porra tem gosto de amora. 
   Deito ao seu lado e compartilho contigo o gosto, beijando sua boca calculadamente. Seus dedos apertam meu rosto e sua boca devora a minha. Aprendemos novos idiomas no corpo um do outro, e mesmo exaustos não desistimos da preleção.
   Eu escalo o seu corpo e te insiro dentro de mim, camisinha não, só pele e mãos e olho no olho e suor e peças de dois corpos se encaixando num vai-e-vem ritmado, como um quebra-cabeças dinâmico que faz circular eletricidade, de mim para você, e o oposto também, culminando em uma explosão violenta que estoura fogos de artifício nos nossos cérebros.
   Agora a exaustão é paralisante. Anestesiados, dormimos; não agarrados, mas sinto seu braço tocar o meu. Há conforto.
   Acordo, não sei quantas horas ou quantos dias depois, deitada de bruços. Algumas partes de mim ainda estão vibrando. Você paira sobre mim, consigo sentir a concentração enquanto a ponta de uma caneta corre nas minhas costas. Você está nu. Suas ideias chegam em cascata, com clareza e energia. E eu sinto, dentro de mim, cada vírgula da sua genialidade.

domingo, 17 de setembro de 2017

eu quero te beijar debaixo de uma árvore

   Difícil, né?
   Ler as pessoas. Saber o que elas estão pensando — ou, antes, sentindo. Especialmente na impossibilidade de demorar o olhar nelas, analisando detalhadamente o que o corpo geralmente fala e passa batido: os olhos, que quase sempre gritam; uma leve curvatura do canto da boca, formando um meio sorriso (ou um esboço de escárnio?); sobrancelhas erguidas repentinamente diante de alguma frase especialmente brilhante ou dolorosamente estúpida; uma língua lambendo, ligeiramente, lábios que preferem calar; uma respiração mais demorada, ou retida de forma tão brusca, que parece que o oxigênio da Terra foi temporariamente suspenso. Dedos sendo levados à testa ou à orelha, esfregando-as para esconder o embaraço. Pernas que não aquietam.
   Eu me jogo em incertezas e sonho acordada por horas a fio, derretendo sob o telhado de barro do meu quarto, onde o sol bate incessantemente. Concluo: te beijar não seria terrível.
  E se eu te encurralasse, pressionando seu corpo contra uma árvore, meus lábios vermelhos, com bochechas rosadas para combinar? 
   É claro que eu teria vergonha. Mas decidi, agora que já tenho 27 anos, que chegou a hora de ser atrevida-vida-vida-vida.
   E repentinamente lembro de um beijo; um beijo roubado, um beijo amargo — tinha gosto de angústia. 
   Decido: não quero te roubar um beijo, quero ofertá-lo. Fica a seu critério.
  Então, diante da árvore, eu não te encurralo. Te ofereço lábios entreabertos, gloss com glitter, sabor menta. 
   (Você não entende a oferta e eu quebro o momento. Tudo em nome do livre-arbítrio!) Tá vendo essa boca aqui? Ela foi feita para beijar. Eu acho que a sua também foi
   Que graça teria?, alguns perguntariam. Onde fica o elemento surpresa?
   O elemento surpresa, meus caros, não está na resposta de se ele aceitaria meu beijo ou não. Isso é pura agonia. A verdadeira surpresa está em qual seria o gosto desse beijo. Em qual seria a textura dessa língua se enfiando na minha boca. Em quanto tempo duraria a troca de saliva, e que tipo de sensações transcorreriam por nossos corpos. Onde nossas mãos pousariam? Está em quantas vezes repetiríamos essa dança, e se, ao fim, ficaríamos querendo mais.
   Mas é difícil ler as pessoas. Livros são mais fáceis.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

delírios literários


   A Saraiva solicita uma carta de apresentação e eu já começo a imaginar todo um futuro. São anos e anos e anos sonhando em trabalhar com livros, ajudar a vendê-los, sentir seu cheiro, seu toque, cuidar deles, ver a empolgação em outras pessoas quando conseguem grana pra comprar aquele livro que queriam há tempos. E também, preciso de dinheiro (para comprar meus livros desejados).
  
   Mas vem o pânico.
   Na minha cabeça todo um roteiro deslancha: sou chamada para entrevista. O recrutador pergunta, pra conferir se minha paixão é real: "qual seu livro preferido?"
   Antecipei, dentro de minha antecipação, aquela pergunta, é claro. 
   Se eu respondesse prontamente ficaria óbvio que aquele script foi ensaiado. Então fingiria surpresa. Alguns momentos de pausa, cara pensativa.

   O problema, porém, é real. Como leitora há, vamos arredondar, 20 anos, tenho tantos queridinhos literários... *suspiro*

    Respondo:
   "Pergunta difícil... *sorrisinho amarelo* Acho que... Matilda".
   E consigo ver a cara de censura do recrutador: "Matilda é um livro infantil! Cresça, mulher!"
  
    Passo a borracha, sentindo culpa.
   
   Tento de novo:
   "A Menina que Roubava Livros?!" (assim mesmo, como se esperando aprovação antes de dar certeza).
   A Menina que Roubava Livros - posso sentir seu desdém - Best seller recomendado pela revista Veja. Isso mesmo.

   Dois possíveis resultados: 

   Sendo a Saraiva uma empresa inovadora, porém comercial, talvez fosse um bom indicativo, ainda que totalmente errôneo, de que eu estaria sempre ligada nos livros do momento, sendo, assim, uma ótima vendedora.

   Mas por outro lado, o preconceito em torno de livros comerciais poderia ser um ponto negativo para a primeira impressão: "ela só lê livros comerciais! Ela provavelmente é fã de 50 Tons de Cinza". Mas meu caro, até Stephen King falou bem desse livro. AHAM. Eu não levaria uma pessoa que se baseia em TOPs da Veja a sério também, sinceramente. 
   Foi com espanto, para começo de conversa, que eu caí de joelhos perante  A Menina que Roubava Livros: meus professores me indicaram, porque "cof a personagem principal também rouba livros cof" - ops! se algum recrutador estiver lendo isso, eu juro que já estou curada... mais ou menos -, amigos indicaram: "ela ama livros como você!", e eu circulei o exemplar na biblioteca municipal por muito tempo, até que um dia o peguei nas mãos  - suadas e trêmulas - e a sinopse me conquistou, tão inesperada e forte quanto um ataque cardíaco: "Quando a Morte conta uma história, você deve parar para ler". Muito bem. A Veja estava certa e eu estava errada, esse livro é uma obra-prima. 
  
   Mas apago novamente. A coisa tem que ser certeira.
   "Meu livro preferido é High Fidelity".
   Ele não conhece o livro. Me olha como se eu o tivesse ofendido, tentando demonstrar superioridade intelectual citando um livro em inglês.

    Eu chego na entrevista. Tudo corre relativamente bem. Enfeito as palavras um pouco, demonstrando mais doçura do que possuo... e ele pergunta:
    "Para finalizar, qual seu livro preferido?"
    Eu faço silêncio por um momento... Alcanço o bolso traseiro da calça e tiro um papel, o qual lhe entrego. Ele o desdobra e o que encontra é



      TOP 10
          POR: CÍNTIA LIRA


10) Acordar ou Morrer, Stella Carr
09) Alta Fidelidade, Nick Hornby
08) Mais Pesado que o Céu, Charles R. Cross 
07) Eu, Christiane F, treze anos, drogada, prostituída..., Kai Hermann e Horst Rieck
06) Pirapato - O Menino Sem Alma, Chico Anes 
05) O Caso dos Dez Negrinhos, Agatha Christie
04) Eu e Outras Poesias - Augusto dos Anjos
03) Os Sonhos Morrem Primeiro, Harold Robbins
02) A Menina que Roubava Livros, Markus Zusak
01) Matilda - Roald Dahl


   Ele pode ter fingido que leu. Ele pode ter achado a lista muito eclética. Ou intelectualmente duvidosa. A única certeza: ele compreende que sou louca. Não consigo o emprego.
   Eu chego em casa, deito na cama e fico me torturando. Não pela incapacidade de conseguir um emprego, as contas se acumulando, o tempo passando, a incerteza do futuro, mas pela ordem e livros escolhidos. Faltou O Estudante. Faltou Sonho de uma Noite de Verão. Faltou A Filosofia na Alcova, Um Copo de Cólera, Casa de Meninas, A Lira dos Vinte Anos, Os Doze Trabalhos de Hércules, PORRA, faltou A METAMORFOSE! E eu deveria ter roubado no meu próprio jogo e colocado Estação das Brumas, que não é um livro e sim uma história em quadrinhos.
    
                    F   U   C   K