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terça-feira, 26 de março de 2019

o copo

Encarei o copo demoradamente, sabendo que seria muito bom. Meu corpo ficaria anestesiado, e por algumas horas, nada importaria. Então eu dormiria. Não o sono agitado de sempre, mas uma espécie de coma temporário, capaz de me tirar do mundo e da minha cabeça.
No ímpeto, levei o copo à boca, uma, duas, dez vezes, parando sempre antes de ele tocar meus lábios. Meus dedos trêmulos e escorregadios seguraram o copo a poucos centímetros do meu nariz, o cheiro do conhaque me instigando.
Passei a maior parte da vida bebendo para amenizar a minha dor. Uma garrafa de vodka por dia, e nem sempre era o suficiente.
"As pessoas não querem saber disso, Cíntia. Elas não precisam saber disso". Queria ser  linear, com uma vida sempre colorida, sorrisos e esperança em excesso.
Coloquei o copo de volta na mesa, uma, duas, dez vezes, ouvindo o baque contra a madeira.
Será que eu queria mesmo?
Imersa em desesperança, a irritabilidade crescendo, repeti o ritual por muitas horas, a mente e o corpo em conflito, desejando e repelindo o conforto líquido. Vislumbrei meu futuro. 
Nós sabemos onde tudo isso leva. A loucura e a inércia tomam conta. São dias, semanas e meses de cama, de vômito, de suor e culpa. Sangue e internação.
Ser forte nos bons momentos não é tão difícil. Eu sou forte o suficiente para manter o controle nos momentos em que o corpo dói de tanto desespero? Nos momentos em que a esperança parece uma tolice?
Não posso ser sempre positiva, porque a vida não funciona assim. Eu não sou uma influenciadora digital, sou um ser humano.
Acendi um cigarro. Senti as lágrimas grossas rolando pelo meu rosto.
Uma das lâmpadas do meu quarto queimou, mas ao menos ainda tenho energia elétrica. Meu estômago ronca de fome. Tive que largar o meu curso. O meu quarto continua mofado, sem móveis... Emprego não tem, e dizem me amar, mas nunca me querem o suficiente para transformar palavras em atos.
E eu, me amo o suficiente para transformar palavras em atos?
Joguei o conhaque na pia do banheiro, e o observei descendo rapidamente pelo ralo. 
O que se tira disso?
Nada.
Hoje eu não posso levantar ninguém, porque estou usando todas as minhas forças para levantar a mim mesma. 

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

espetada

   Acho que engoli um palito de dente enquanto comia uma batata recheada. A princípio não parece nada, porém pesquisei no Google, e veio logo o anúncio da catástrofe. Eu sinto o palito enfiado no meu coração, espetando-o, rasgando-o, do epicárdio ao endocárdio. Meu coração sangrento, sangra, sangra... 
   Talvez eu morra.
   Sozinha no escuro, o coração espetado, eu fico em silêncio, aguardando. Silêncio aqui dentro, quero dizer. Lá fora os fogos já estouram, ao longe. Não olho pela janela, só ouço, bem parada, a respiração bastante controlada...
   Falta pouco. Cinco minutos e isso acaba, só para depois começar de novo.
    Não ouço os risos, mas certamente eles também ecoam lá, bem longe do meu coração que descompassa com a ferida e com a angústia.
   Eu os imagino, os vejo — no âmago da minha loucura. Estão lado a lado, as cabeças erguidas, observando os fogos... e quando o relógio anuncia, por fim, a meia-noite, ela, com um sorriso extremamente largo, se joga nos braços dele. Ele se diz solitário, mas não é, não de verdade. Com ela nos braços, ele nunca está sozinho. Beijam-se. Ela sente o calor do abraço dele lhe envolver por completo. Eu sinto o calor da ansiedade subindo pelo meu corpo, se concentrando nas minhas duas bochechas, tão vermelhas quanto o meu coração sangrando, sangrando. 
   Desejam-se feliz ano novo, sorriem com os lábios e os olhos.
   O meu coração está doendo, talvez eu morra. O palito espeta minha alma. Sozinha, talvez eu morra. 

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

auto-conhecimento

   Não dormi, mas comecei o dia gargalhando. Seis horas da manhã e minha risada alta preenchia meu quarto, provavelmente se fazendo ouvir fora dele. Ri tanto, que a minha barriga começou a doer, enquanto as lágrimas escorriam pelas minhas bochechas e embaçavam meus óculos. Eu tentava não rir, porque o motivo do riso desenfreado era a desgraça de algumas pessoas que caíram com a freada violenta de um ônibus. Parava por alguns minutos, segurando o riso com a consciência pesada, mas depois não aguentava, e o ritual descontrolado recomeçava.
   Ouvi os passos em frente à janela do meu quarto. Ouvi minha avó na cozinha, senti o cheiro do café. Eu não tomo café, mas devo admitir que o cheiro de café, especialmente pela manhã, aguça alguma coisa boa dentro de mim.
   Entre o riso e o silêncio culpado, ouvi o barulho das xícaras na cozinha, e o som de pessoas cochichando. Tentei ouvir o que diziam, mas não deu.
   Eu ainda estava indecisa se deveria ir à consulta com a psiquiatra ou não, mas pensei: "ainda tenho bastante tempo", e depois me ocorreu que é justamente quando eu tenho tempo de sobra que me atraso. Eu me conheço, estou sempre certa. Me atrasei, depois de colocar uma roupa qualquer e sair correndo, de cara lavada, na chuva que tornava o chão escorregadio sob o meu all star velho demais para ter algum efeito anti-derrapante. Quase escorreguei algumas vezes. Teria sido um belo castigo, ser filmada escorregando para abastecer o riso de alguém depois, na internet.
   Mas não caí. 
   Cheguei ao posto de saúde, tirei os óculos escuros respingados da chuva, e peguei a senha eletrônica. Agora tem isso lá, e eu me sinto de alguma forma traída por esse avanço tecnológico. Tira o aspecto familiar da coisa. 
   Mais traída ainda me senti quando minha senha foi chamada, e a recepcionista não lembrou meu nome. Ela me olhou, olhou para a tela do computador por uns segundos, e me olhou de novo, soltando um odioso: "esqueci seu nome...". Ela me conhece há dez anos. Eu sei o nome dela e de todas as pessoas no posto de saúde. Aos poucos, eles esquecem o meu. 
   "Cíntia, prontuário 19-119".
   Enquanto esperava, irritadiça pela noite não dormida, observei as pessoas passando. Auxiliares de enfermagem, as moças da limpeza, o pessoal da administração, e as agentes de saúde. Recebi dois abraços genuínos, fortes, e muitos sorrisos amarelos: "você anda sumida!". Eu sempre busco amor nos lugares mais improváveis.
   O posto está cheio de enfeites florais feitos de papel crepom; dois tons de rosa e um branco, para a campanha de prevenção de câncer de mama. Fiquei com vontade de roubar alguns dos enfeites, colar na parede do meu quarto. Eu sou assim. Uns anos atrás roubei um dos enfeites da já precária árvore de natal do posto de saúde, porque eu preciso ter esses souvenirs para me lembrar dos momentos. Para tornar as minhas memórias tangíveis. Ou para manter a ilusão ativa.
   Pensei em todos os anos esperando por aqueles corredores, vendo as pessoas passando e preocupando-se comigo. Pensei nos meus professores do ensino fundamental. O meu sentimento era o mesmo por ambos os ambientes e seus habitantes. O mesmo amor por pessoas que são pagas para notar a minha existência, e que esquecem do meu nome assim que o meu caso deixa de ser prioridade em suas mesas.
   Comecei a andar de um lado para o outro, inquieta com a demora. Apertei o aparelho de álcool gel, mas não saiu nada, como sempre. Tem uma mesa no corredor, ao alcance dos pacientes, e eu sempre me perguntei o que tinha naquelas gavetas, sem coragem de abrir para ver. Olhei para os dois lados do corredor cheio de pacientes cuidando de suas próprias dores. Abri a primeira gaveta, e, adivinha só, não tinha merda nenhuma. Foi o suficiente para acabar com qualquer traço de tesão detetivesco.
   Me pus a ler os cartazes de prevenção de câncer de mama, e depois o mural cheio de post-its com mensagens "motivacionais". Cuide-se!, dizia um dos post-its. Ame-se! A vida importa! AUTO-CONHECIMENTO! Eu nunca fiz o auto-exame. Pensei em roubar um ou dois, quem sabe três post-its rosa choque. Mas talvez a mensagem fizesse falta para outras pessoas. Eu sou hipocondríaca. Quando eu penso em fazer o auto-exame, penso na possibilidade de encontrar um nódulo, e começo a surtar. A bem da verdade, se eu procurasse eu provavelmente encontraria mil nódulos, a minha ansiedade os colocaria ali.
   Eu me conheço, mas às vezes não quero conhecer demais. Pensei nas minhas seguidoras.
   A psiquiatra me chamou. Ela não lembrava exatamente sobre o meu caso, ficou lendo por cima as páginas do meu prontuário, me fazendo as mesmas perguntas mil vezes, e eu as respondia, sentindo a exasperação crescer. É como se ela não ficasse contente com as minhas respostas, então continuasse perguntando para ver se eu as mudava. Você está pensando em suicídio, ou está planejando suicídio? Qual é a merda da diferença? Perdi a calma com ela, e me arrependi em seguida, porque apenas parte da minha exasperação era pela condescendência dela, a outra parte era pela noite não dormida. Eu sou como uma criança que vai ficando rabugenta à medida que o sono chega, e que precisa deitar e pegar no sono assim que esses momentos batem.
   Ela continuou fazendo as mesmas perguntas e as mesmas propostas. Eu parei de responder, adotando a tática de simplesmente encará-la. Ela continuou na expectativa de uma resposta, e eu continuei oferecendo silêncio, sabendo que meus olhos estavam tão vazios quanto às vezes me acusam.
   Foi uma consulta absurdamente longa, em que nada foi abordado. A minha impaciência crescente, louca para sair dali. Comecei a concordar com ela, era o único passaporte para a saída daquele lugar. Funcionou. Até mais, Cíntia. Obrigada. Tchau.
   Peguei meus remédios, não tinha todos. Estava exausta. Passara horas ali, e a consulta com a psiquiatra no fim me deixou pior do que quando eu cheguei. Com os bolsos da jaqueta jeans molhada cheios de remédios, coloquei os óculos escuros e saí. Eu não suporto claridade, especialmente quando não durmo.
   Ia chegar em casa, tirar toda a roupa e me jogar na cama ao som de Florence + the Machine. Isso não aconteceu. Enrolei o dia inteiro, cansada, sem fazer nada, sem ter noção de como as horas passaram. Dava tempo de ir pro curso ainda, mas eu simplesmente não teria energia física ou intelectual para acompanhar a aula.
   No fim da tarde eu tirei as roupas ainda molhadas, e deitei, cobrindo a cabeça. Meu corpo começou a pesar, minha mente começou a desligar, e o celular apitou. Relutei por alguns momentos, mas descobri a cabeça e estiquei o braço, pegando o aparelho.
   Era ele. Meu coração acelerou. Ele gostou da minha foto de 4. Instigada, minha mente acendeu, voltou a funcionar a todo vapor. Minha buceta a acompanhou. Em alguns minutos ele conseguiu me fazer esquecer da mágoa de situações anteriores, do sono, do cansaço, da exasperação, e tudo isso deu lugar a um tesão violento, que provocava ondas de prazer pelo meu corpo sem que eu ao menos me tocasse. 
   Eu te quero. Você me faz sentir um tesão desmedido. Seu pau está pulsando? Quero me esfregar em você. Imagina, imagina, imagine! Imaginei o coturno dele pressionando meu corpo, me imobilizando contra a parede, deixando as marcas da sola na minha pele. Estava molhada novamente, mas dessa vez não era culpa da chuva, que ainda batia  contra a minha janela.
   E as mensagens começaram a ficar mais espaçadas... 
   Ocupado.
   Ok...
   Abri as pernas, coloquei os dedos para trabalhar, imaginando. AUTO-CONHECIMENTO!
    Os dedos deslizando com facilidade. AUTO-CONHECIMENTO!
   Me esparramei na cama, me desfazendo entre os lençóis e cobertas. AUTO-CONHECIMENTO!
   Soltei gemidos e suspiros... AUTO-CONHECIMENTO!
   A atenção dele nunca é só minha. Eu sempre tenho que dividi-la com outras pessoas, com outras coisas.... AME-SE!
   É só sobre ele. O prazer dele, o sentimento dele, o momento dele, a vida dele. Ame-se ame-se ame-se ame-se ame-se ame-se ame-se, AME-SE, porra!
   Tomada pelo tesão e pela tristeza de uma só vez, comecei a chorar enquanto me tocava, enquanto os dedos entravam em saíam, e o tesão começava a ser vencido pela tristeza. O som do meu choro preencheu meu quarto, talvez se fizesse ouvir lá fora. Chorei tanto, que a minha garganta começou a doer, as lágrimas escorrendo em abundância pelas laterais do meu rosto. Parava por alguns segundos, mas depois não aguentava, e os soluços convulsos recomeçavam. No escuro, no silêncio.
   Os dedos desistiram. Fechei as pernas, deitei em posição fetal e cobri a cabeçaEu sempre busco amor nos lugares mais improváveis. Chorei tanto, que dormi. Por dois dias.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

na volta a gente compra

   Às vezes eu preciso me tratar feito criança. Sabe a típica frase, "na volta a gente compra", que todo adulto diz, porém nunca concretiza? 
   Na volta eles sempre fazem outro caminho, e o objeto de desejo da criança, lá na outra direção, fica fora de alcance.
   O meu objeto de desejo está sempre na minha gaveta, ao alcance das minhas mãos, e particularmente de madrugada, ele grita meu nome. 
   Olho para a lista de contatos do meu Facebook, mas não tem ninguém disponível, nem online e nem emocionalmente. Penso em entrar no Bate Papo Uol e falar putaria para atrair a atenção de alguém e ter com quem conversar. Ouço música e navego por todas as minhas redes sociais: nenhuma notificação. Adulta, tento distrair a criança do que ela quer.
   Mas não distraio nem minha cabeça e nem a minha pele do que elas querem. As lâminas, que estão na gaveta, chamam o meu nome.
   Enquanto eu finjo distração, vejo flashes da caixinha dentro da gaveta, das lâminas enroladas no papelzinho protetor. Gosto de lâminas novas, de abrir o papelzinho colado e sentir a cola sendo rompida. E gosto do barulho da lâmina sendo partida ao meio, o estralo que faz entre os meus dedos. Como tudo na vida, o ritual é mais prazeroso do que a ação. 
   Eu digo: "hoje não, Cíntia. Amanhã". E às vezes eu consigo me enganar, sendo ao mesmo tempo a adulta que tenta pregar a peça, e a criança, que, esperançosa, sempre cai na mentira.
   Todos os dias eu me digo "amanhã", e assim eu vou levando até que a tortura psicológica chegue ao limite e eu abra a gaveta, tirando-as lá de dentro, colocando o ritual em prática.
   Hoje eu só consigo pensar nessa maldita caixinha. Se eu estender o braço, alcanço-a. Amanhã. Amanhã. Eu já ouvi dois álbuns, já vi todas as minhas redes sociais vazias. Na volta. Eu já vi, com um misto de tristeza e raiva, a minha curta lista de contatos. Amanhã. Eu abri algumas janelas e vi mensagens minhas não respondidas, de dias ou até semanas atrás. Amanhã. 
   O magnetismo insuportável dentro do meu corpo vai ficando mais forte. Eu deixo todas as coisas para amanhã, e quando eu vou dormir, choro e peço ao Universo para não acordar amanhã.
   A adulta estava indo muito bem em sua mentira bem-intencionada, mas a criança fica impaciente e começa a gritar e chorar na rua. HOJE.
   Eu quase consigo sentir. Já vejo a lâmina deslizando na minha pele, e o sangue escorrendo, quente e lento a princípio e depois muito rápido, pingando no chão. Um corte não é suficiente, eu continuo, outro e outro, e quando acaba, o abismo que existe na minha alma se torna ainda mais profundo.
   Limpo o sangue e fico nervosa porque ele não para de escorrer. Já acabou, chega. Mas ele continua, vai manchar meu lençol.
   As lâminas cumpriram sua função. A caixinha volta pra gaveta — mas nem a adulta e nem a criança saíram ganhando.
   

sábado, 7 de outubro de 2017

lucky strike

   Eu tenho asma, sabe...
   Quando eu era criança, enrolava um pedaço de folha de caderno, acendia e tragava, imitando as pessoas que eu via fumando nos filmes — e ao meu redor. Muita gente fumava nos anos 90, não é como hoje em dia que todo mundo se preocupa tanto.
  Quando eu não acendia, porque o papel queimava muito rápido e a fumaça era literalmente intragável, eu ficava com o cigarro de mentira entre os dedos. Sentava, levava à boca, imaginava minhas tragadas. Fingia que estava em um restaurante chique, com uma taça de vinho francês e um prato de macarronada à minha frente.
   Alguns anos antes, quando eu ainda frequentava a igreja, participei de uma peça de teatro com o Francis, na qual éramos adolescentes rebeldes e sem futuro que fumavam cigarros e falavam palavrões, e outros jovens nos salvavam da perdição com o evangelho. Mas ali, naquela época, fumando cigarros de mentirinha, eu era livre da igreja, era livre da condenação.
   Hoje é um desses dias em que eu me perguntei constantemente o que exatamente eu estou fazendo no mundo. Eu fico vivendo um dia de cada vez, esperando que o próximo seja melhor. Fico imaginando cenários, imaginando pessoas, que fora da minha imaginação são completamente ordinárias, mas dentro, como elas são incríveis...
   Lavei meus cabelos. Estava chovendo e eu pensava que a energia elétrica iria cair, como é de costume no meu bairro, e eu não teria como secá-los. Afora isso, meus pensamentos estavam povoados com dinheiro; com a quantia que preciso para comprar meus cosméticos e pagar meus óculos, colocar crédito no bilhete, comer alguma besteira para não passar vontade, tomar uma cerveja de vez em quando e agora eu tenho que pagar a geladeira também, e pensava como nunca tem dinheiro suficiente para que eu faça o curso que quero fazer — para dar continuidade à minha vida e ganhar dinheiro de verdade para ter planos maiores do que comprar meus cosméticos e pagar meus óculos e contar os centavos para inteirar a condução e pagar a geladeira que ninguém me consultou ao comprar, e que ficam tirando da posição que eu coloquei — para que a porta não bata no móvel que fica em frente a ela. 
   Ir embora da casa da minha avó. Levar todos os meus livros, meus DVDS, meus pôsteres (especialmente o do Adrien Brody), meu computador, meus cosméticos, e deixar o resto. Embora a minha atual cama seja muito boa. Ela sustenta o meu peso sem reclamar, e também não reclama quando há companhia somada ao meu peso. Talvez eu levasse a cama. Eu poderia comprar um guarda-roupas sem gavetas. Eu odeio gavetas. 
   Pois eu estava secando os cabelos, porque a chuva parou e a energia não caiu, ainda bem, e estava  pensando que preciso de aproximadamente três potes de creme de pentear por mês e 4 desodorantes, e duas caixas de lenço de papel para limpar meus óculos, e que tenho creme hidratante o suficiente para alguns meses, e que só vou ter dinheiro no fim do mês, e nem sei quanto. Pensava em tudo isso, e numa certa pessoa, quando, para secar uma área específica do cabelo, eu virei minha cabeça, olhei para a minha estante magnificamente abarrotada e vi o maço de lucky strike, que eu guardei embaixo de um livro do Nick Hornby, como souvenir de uns meses atrás, quando eu fumei por algum tempo feito uma chaminé, mesmo tendo asma. Cigarro me deixa tonta, mas a sensação não é das piores. 
   Eu sempre odiei o cheiro de cigarro aceso, o cheiro de cigarro quando as pessoas estão fumando, mas algo no cheiro de cigarro impregnado nas roupas das pessoas que fumam há muito tempo me causa conforto. Eu gosto de abraçar fumantes. É como... encontrar aquilo que eu posso chamar de lar. Não importa quem seja. Eu posso fechar meus olhos abraçando um fumante e vou me sentir em casa. Se a pessoa estiver usando uma jaqueta jeans, então...
   Desliguei o secador. Eu tentei diversas marcas de cigarro quando comecei a fumar, em março desse ano, quando eu não sabia o que fazer comigo mesma. Fumei primeiro o camel, que comprei solto num bar que só tinha homem e eles ficavam olhando com estranhamento enquanto eu bebia minha cerveja, como se eu estivesse invadindo um espaço sagrado. 
   Em 2009 eu havia tentado fumar derby, que roubei do meu tio e pensei tudo bem eu roubar os cigarros dele, ele roubou minha inocência, e não gostei nada, nada. Minha língua ficou pastosa, eu odiei o gosto, o cheiro e a forma como entrava nos meus pulmões. Acabei apagando-o no meu pulso, e que dor foi aquela!... 
   Então, após tal experiência, comprei apenas 2 cigarros, 50 centavos cada, e pensei que nem iria fumá-los. Contei para o Danillo e ele me disse que eu sou uma otária, com o que eu fui obrigada a concordar. Mas dessa vez foi diferente. Me senti diferente. Gostei de fumar. Me senti adulta. Mesmo assim, queimei meus braços com a brasa, porque eu sou assim. 
   Com a nova reação, comprei um maço de White. É um cigarro muito gostosinho de fumar. Leve, macio, entra com sutileza. Só depois de fumar quase o maço inteiro eu notei que ele estava vencido, e perguntei ao Danillo o que aconteceria se uma pessoa fumasse cigarro vencido, ao que ele me respondeu: "o que acontece com quem toma veneno de rato vencido?"... e eu ri, mas pensando bem, acho que depende da sorte de quem toma o veneno. 
   Acabado este, e não conseguindo achá-lo mais (a bem da verdade, eu só fiquei com preguiça de ir onde havia comprado antes, e fui em outro lugar mais perto), comprei o Minister, que não é um bom cigarro. Ele é forte e fedorento e as tragadas são estranhas. Então eu decidi que não iria mais fumar. Mas numa noite de euforia, agitadíssima e sem saber o que fazer comigo mesma, fumei 5 cigarros, acendendo um no final do outro, até que passei mal, e vale dizer que eu não tenho mais bombinha de salbutamol, então foi um momento delicado.
   Quando o Minister acabou, eu comprei o Winston blue, que também é muito bom. Eu estava sempre jurando que não precisava de cigarro, mas quando um maço acabava e eu ficava sem, batia uma certa angústia... 
   No dia em que eu fui internada, em abril, comprei quatro camel, e senti o quanto são horríveis enquanto os fumava, um atrás do outro, com um coquetel de maracujá enojante para acompanhar, sentada nos degraus do cemitério, me aquecendo para dar início ao show enquanto lia O Lobo da Estepe no escuro e tinha minha cabeça explodida das mais variadas maneiras.
   E no hospital, internada, os pacientes podiam fumar — em algumas horas do dia. Depois do almoço e depois do jantar, mas alguns enfermeiros mais legais deixavam a qualquer hora do dia, especialmente quando eles próprios queriam fumar. Era o momento de socialização, quando todos os loucos se reuniam numa área de fumante toda pichada com palavras incompreensíveis e profecias e versículos e desenhos de pintos e bancos quebrados e cinza de cigarro no ar. Quem não tinha cigarro aparecia para implorar um trago, quem não fumava aparecia só pela conversa, que fatalmente acabava com alguém surtando e saindo na porrada com outro alguém, e umas vezes eu tentava apartar. Noutras eu só assistia, tragando meu cigarro.
   Dentro do hospital, ao menos na ala psiquiátrica, o cigarro era a base de troca. Quem não fumava, mas tinha cigarros, os dava em troca de comida e outras coisas. Eu sempre conseguia cigarros, mesmo quando não tinha vontade de fumar, pois fiz amizade com muitas pessoas. Entre os loucos eu estava no meu lugar. Estava confortável. E devo dizer, que talvez pela medicação na cabeça, três caras me queriam, e para provar a devoção, me ofereciam cigarros, beijos roubados e chocolates contrabandeados.
   Lá nós fumávamos, em geral, eight, que é o cigarro mais nojento e pesado que já fumei na vida. Mas era barato, e os enfermeiros mais legais até levavam um maço para distribuir aos pacientes. Quando recebi alta, eu, que cheguei sem nada além do meu exemplar de O Lobo da Estepe e um desodorante, havia ganhado tantos cigarros, que tinha um maço cheio e outro pela metade; do eight ao winston blue. Deixei para um louco consciente, sob o olhar reprovador da minha avó.
   Fora do hospital, eu disse para mim mesma que estava farta de cigarros, mas comprei um maço de lucky strike, porque é a marca que sempre associei ao requinte dos fumantes abastados. E afinal, é a marca que o Thiago Mattos cita no meu poema preferido de sua autoria (não, da autoria do Paco Bernardo). Mas, devo dizer, deixou a desejar. É um cigarro muito forte para o meu gosto asmático, e não conseguia sequer fumar um inteiro, porque ficava de saco cheio na metade.
   Pensei em dar para alguém, mas quis guardar porque é o lucky strike e o Thiago Mattos o citou no meu poema preferido. 
  Até que hoje eu virei a cabeça enquanto secava os cabelos, e sentindo um vazio incontrolável e não sabendo o que fazer comigo mesma, logo quando eu estava tão empolgada, e nas tantas preocupações financeiras, é claro, eu o tirei de sob o livro do Nick Hornby, peguei um e decidi fumar lá no quintal, porque não quero impregnar meu quarto com cheiro de cigarro novamente.
   Sentei num dos bancos do quintal, olhando para o abacateiro picotado, com ódio e tristeza ao mesmo tempo, e para a ausência de estrelas e ausência da Lua. Hoje eu fui abandonada por todos. E pensei que é justamente nos dias em que preciso de conforto que as pessoas e as coisas me abandonam. Pensei na ala psiquiátrica enquanto apagava o cigarro, que continua muito forte para o meu gosto, mas que fumei até o fim, com certo prazer pelo estrago.
   Subi para o meu quarto. Sentei à minha mesa, respirando alto, pausada e intensamente, sentindo meu rosto ficar vermelho e ardente. Eu fico assim quando me bate uma raiva desmedida. A raiva era das pessoas, mas acima de tudo, de mim mesma. Eu não consigo me libertar! Eu sempre serei o lixo descartado das pessoas! Encarei as cartelas de remédios à minha frente e pensei em tomar todos, especialmente o diazepam. Me imaginei o fazendo. E aquela velha voz interior disse, em alto e bom tom: "a resposta para este pensamento está no seu último post, sua imbecil".
   Me contive. Eu não sei o que fazer comigo mesma. Por dentro eu quero gritar e socar tudo e todos até que as minhas juntas sangrem e minha visão fique embaçada pelo suor. Eu quero destruir o meu quarto e depois a minha casa e depois o abacateiro, porque agora ele está arruinado, e quero destruir o mundo e todos que o habitam, porque estão todos mais arruinados ainda! Todas as coisas são inúteis! Eu queria destruir todo e qualquer traço de sentimento que existe dentro de mim!
   Mas por fora, eu fiquei paralisada, o olhar fixo no nada, só imaginando como seria destruir todos e depois destruir a mim mesma.
   Peguei mais um cigarro, fui para o quintal. Havia passado um tempo, e agora a Lua se mostrava, embora fosse ofuscada por umas nuvens espessas. Um avião passava, lá no alto. Eu odeio aviões, barulho de aviões e sua capacidade de cair em cima das coisas. Mas não liguei. Eu fumei, tragando e olhando para o cigarro queimando, pensando em apagá-lo na minha própria cara. Uma formiga escalou minha perna e eu a joguei para longe. Eu odeio formigas.
  Hoje eu odeio todas as coisas e todas as coisas me odeiam. Pensei no conforto de abraçar fumantes, enquanto fumava meu cigarro, e quando terminei, senti o cheiro, o mesmo cheiro que me causa conforto, nos meus cabelos. Eu queria que alguém sentisse conforto em me abraçar e sentir o cheiro dos meus cabelos. Joguei o cigarro, finalizado, no chão.

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

a morte do intelecto

Eu estive lá.
Eu sofri 
um pouco.
Eu sentei em cadeiras desconfortáveis.
Eu sou uma lágrima do sol.
Sou uma colina pela qual 
os poetas correm.
 Inventei o alfabeto 
depois de observar o vôo das garças 
que fizeram letras com suas pernas.
 Sou um lago na planície.
Uma palavra 
numa árvore.
Sou uma montanha de poesia.
Sou uma blitz
no inarticulado. 
Eu sonhei 
que todos os meus dentes caíram 
mas a língua sobreviveu 
para contar a história. 
Porque sou um silêncio 
poético. 

(Autobiografia - Lawrence Ferlinghetti)

   A noite passada eu tive um sonho, a princípio triste. O conteúdo principal não interessa. Mas eu chorava, e tinha alguma coisa prendendo minha fala. Eu puxava minha língua para fora, ela era gigantesca, e eu estava a ponto de cortá-la com uma tesoura. Impedia a mim mesma. Acordei. Voltei a dormir. Sonhei que tinha uma gosma preta e enorme, feito chiclete, no céu da minha boca. Eu puxava, puxava e ela não saia por completo nunca. Me angustiava, me sufocava, me impedia de falar. Eu estava na escola Benedito Calixto, e abandonava a aula na metade, puxando a gosma, mas quanto mais eu puxava, mais ela vinha.
   Estava na rua. Tinha um monte de terreno baldio e gente suspeita. Tentava esconder o celular dentro da calcinha, mas não conseguia, e o colocava no bolso da minha mochila. Caminhava desconfiada, olhando para os lados, ainda puxando a gosma e tentando encontrar o meu caminho. Alguns homens me seguiam. Ouvia um deles perguntar para um grupo de outros homens se eu era dali, diziam que não. Dois deles me paravam num corredor estreito, anunciavam o assalto, e eu protegia minha mochila, tornando óbvio que o que interessava estava ali dentro. Tentava lidar com a gosma e com a situação.
   Eu dizia: "por favor, me deixem ir! eu sou apenas uma estudante!". Esperava pelo momento em que eles sacariam suas armas, mas o que eles tiraram dos bolsos foram mesmo adagas, prontos para me picotar se eu não lhes entregasse alguma coisa. Mas eu teimava, não lhes daria nada.
   Me atiraram ao chão. Eu protegia minha mochila. Eles pairavam acima de mim com suas adagas e eu implorava: "não me matem, eu sou apenas uma estudante! não me matem, por favor! sou apenas uma estudante!". Implorava, mas não cedia.
  Eles me achavam patética, implorando ridiculamente no chão, com gosma grudenta saindo da boca, e sangue, que viera de algum lugar. Então  eles jogaram as adagas ao meu lado e foram embora, enojados com a minha covardia.
   Eu ainda estava no chão, recolhendo as coisas que haviam caído da minha bolsa, quando surgiu outro homem, com outras intenções, e com arma em punho. Eu peguei a adaga e o matei antes que ele tivesse chance de qualquer coisa. Corri, temendo que seus companheiros chegassem para me matar.
   Quando penso na morte, de forma natural, num acidente ou num assassinato, eu penso que não quero morrer. E quando eu penso na existência, eu penso em suicídio. Tem uma grande diferença entre morrer e se matar. Entre existir e viver.    
   A última vez que eu tentei suicídio, não tive medo. Eu tive certeza. Depois de uma festa familiar — acho que o aniversário da minha avó —, eu subi para o meu quarto com algumas latinhas de cerveja e tomei cartelas dos mais variados medicamentos, que tinha à minha disposição graças aos meus meses de rato de laboratório no HC, sob a supervisão do meu manipulador, mas querido doutor Marcelo (que por sinal, eu acredito que deveria tomar tantos remédios quanto eu, para tratar de sua sociopatia. É apenas o meu diagnóstico, você pode procurar uma segunda opinião, querido). 
  Entre o repertório: Topiramato, bupropiona, lítio, quetiapina, abilify, gabapentina e o temido heimer, que serve para tratar, como o nome sugere, alzheimer, mas estava sendo testado em mim, "simples" paciente portadora de transtorno mental. Àquela altura eu tinha uma sacola de supermercado cheia de medicamentos que sobravam entre uma consulta e outra. Todos eles não caberiam em mim, escolhi, portanto, quase que aleatoriamente.
   Coloquei dois colchões no chão, um ao lado do outro, para que eu não fosse ouvida me debatendo caso tivesse uma convulsão. Tranquei a porta do meu quarto, mas sabia que ninguém entraria, a não ser que eu passasse muitos dias sem dar o ar da minha graça na cozinha. Coloquei música para tocar on repeat no celular: o álbum era o Meteora, do Linkin Park. E por fim deitei, coloquei os fones e dormi quase que de imediato. Não sei se os remédios já faziam algum efeito ou se eu simplesmente fui capaz, por uma vez na vida, de desligar o meu cérebro. Não chorei. Eu estava certa do que queria e estava certa de que aquela vez era para valer; não pediria ajuda no último momento, não acordaria nunca mais. 
   Ledo engano. Dormi, descobri depois, por aproximadamente 30 horas, e acordei, ah, sim, eu acordei, ao som de Linkin Park. Estava atordoada. Não é figura de linguagem, eu estava atordoada. Era como se eu estivesse bêbada, só que muito pior. Minha cabeça girava insanamente, feito um pião, e ao me levantar, com esforço, cambaleei pelo meu quarto, tentando me segurar à alguma coisa, mas nada parecia estar ao meu alcance. Não conseguia focar minha visão em lugar algum; quando eu olhava para as coisas era como se estivesse vendo-as multiplicadas por mil. Minha pele ardia, como se eu tivesse ficado exposta ao sol por todo o tempo que dormi. A despeito disso, tremia loucamente, morrendo de frio. Meu coração vibrava rapidamente, desconfortável dentro da minha caixa torácica. Não havia o menor traço de estabilidade no meu corpo, por dentro ou por fora, e menos ainda na minha mente. Eu estava confusa, não sabia quanto tempo havia se passado. Não sabia se estava viva ou morta. Tentava respirar fundo, fazer todas aquelas sensações passarem, mas era inútil. Comecei a chorar. Por estar tão fodida, pela agonia de tudo que estava acontecendo ao meu corpo.
   Consegui, com alguma dificuldade, destrancar e abrir a porta, e chamei minha madrasta, que estava no quarto ao fim do corredor do meu. Ela veio, e eu, deitada, porque não conseguia mais me manter de pé, expliquei, voz pastosa e difícil de sair pela garganta, o que havia feito e que precisava de ajuda. Meu irmão caçula, à época com uns 4 ou 5 anos, me assistia, e eu sentia vergonha e pesar por fazê-lo me ver daquela forma. Ela disse "ai meu Deus", e me explicou que eu não havia saído do meu quarto por mais de um dia. Foi chamar meu pai, que surgiu em seguida, nervoso, dizendo coisas como "eu não acredito que vou ter que passar por isso de novo", e outros despautérios que não cabiam na boca de um pai vendo sua filha naquela situação, e que de forma geral não ajudaria em nada. A muito custo, minha madrasta o convenceu a me levar ao hospital. Ele relutava com a ideia, desgostoso de ter que perder seu tempo dirigindo seu estorvo de filha, que não estava morrendo.
  Minha vó estava no andar abaixo, aflita. Entramos no carro, eu, meu pai e minha madrasta. Meu pai dizia palavras duras, brigava comigo, mas aquela era a menor de minhas aflições. Os efeitos físicos eram muito mais devastadores.
   Chegamos ao hospital. Meu pai avisou que não ficaria ali. Entramos, ele apresentou a situação, deu meus dados, me deixou sentada numa cadeira esperando pelo atendimento do cardiologista, e foi embora. Me buscaria mais tarde.
   Eu mal conseguia ficar sentada, pois meu corpo estava pesado e cambaleava. Para a frente, para os lados. Eu tentava segurar minha onda. 
   Passadas algumas horas, fui atendida. O médico me perguntou o que eu havia tomado. Confusa, respondi alguns dos nomes que lembrava. O heimer me preocupava mais, por seus efeitos neurológicos. Ele me disse que era impossível eu ter tomado todos os remédios que alegava, pois se o tivesse feito, estaria morta. Além do mais, já era tarde para lavagem estomacal, então não havia nada a ser feito. Pois, doutor, eu tomei, e talvez eu esteja mesmo morta, porque esse mundo se encaixa perfeitamente na minha visão de inferno.
   O médico descrente fez o exame cardiológico, não sei dizer o nome. Analisou o que viu e me dispensou. Eu fui até o balcão de atendimento e expliquei que recebera alta, mas que não tinha condições de voltar sozinha para casa. Me disseram alguns sinto-muitos, não levamos pacientes às suas casas, e na falta de escolha, fui caminhando, em zigue-zague, para a rua. Estava em frente ao hospital, desnorteada, quando chegou o meu pai com seu carro, e dessa vez, em silêncio, dirigiu. Chegamos em casa. Eu subi para o meu quarto. Os efeitos duraram por meses. 
   Meus olhos ficaram fundos e negros, minha pele estava laranja, meu corpo não parava quieto nem mesmo por um segundo; eu era incapaz de ficar sentada por mais do que alguns minutos. Meu coração não desacelerava. Minha mente era incapaz de seguir uma linha de raciocínio. Eu não conseguia dormir, falava pouco, minha visão estava sempre turva. O pânico de que nunca mais voltaria ao normal era o que mais me afligia.
   Em casa ninguém falou nada sobre nada. Aos poucos, muito lentamente, em meio à solidão, a maioria dos efeitos foram se dissipando. Não estive completamente só, é verdade, porque tive Charles Chaplin. Quando minha visão deixou de ser borrada e minha cabeça parou de girar, aproveitei que tinha baixado, uns meses antes, todos os curtas de Chaplin, e os assisti. Com a inquietação de um corpo que não parava de tremer e se sacudir, mas assisti. E aqueles curtas fizeram bem ao meu espírito. O meu preferido é One A.M.
   Após muitos meses, minhas pernas foram aquietando. Meu corpo foi parando de tremer. Meu coração desacelerou. Eu voltei a conseguir sentar e assistir coisas mais longas do que 10 minutos. Mas nem tudo voltou ao normal. Minha mente não é tão rápida quanto já foi, eu mantenho problemas severos de concentração, que me afetam intelectualmente, e minha fala se tornou lenta e confusa; eu esqueço as palavras, repito pensamentos e gaguejo. Se já não gostava de falar antes, hoje em dia tal ato me provoca maior apreensão. Eu tentei matar meu corpo, e matei parte do meu intelecto. Esse corpo resiste, ele teima em continuar.
   

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

intocável

   Toda madrugada, antes de dormir, eu fico na minha cama, em meio ao escuro e o silêncio, fingindo que não estou sozinha. Fingindo que tem dois braços me aninhando; um coração batendo ao alcance do meu ouvido, meu rosto colado na pele nua e morna. O cheiro de vida emanando dela. Uma respiração tranquila pairando sobre mim... Nossas pernas estão sempre entrelaçadas. Eu o abraço com força, como um náufrago se agarrando a uma boia.
   E de tanto imaginar, chego a sentir a pressão desse corpo contra o meu. Ele dorme, eu me contento em ficar ali parada entre braços que me querem.
   Às vezes acordo desse delírio auto-induzido e choro de solidão. Lágrimas tão grossas que mal parecem líquidas, e soluços altos, convulsos, que ecoam pelo meu quarto, pela casa inteira, que talvez ouçam até da rua (...) mas ninguém se manifesta.
   Já fui menos piegas. (Será?). É a idade (alguns diriam). As necessidades passam a ser diferentes (interrogação). 
  Não, eu sempre tive necessidades, mesmo negando tê-las. Elas se manifestavam nas vezes em que eu tinha que me forçar a não tocar a pele exposta de pessoas com os braços erguidos no metrô. Em todas as vezes que eu de fato forcei contato físico com desconhecidos, deixando minha mão escorregar no ferro do ônibus para tocar a de alguém, quando abri mais as pernas no assento, para encostá-la na da pessoa ao lado, nas vezes que coloquei o braço mais para a direita para ultrapassar a linha entre o meu espaço e o espaço do meu colega de sala... E poder dizer, foi sem querer. Dessa forma eu não tinha que admitir para ninguém que precisava de coisas que não podia ter, coisas que sou incapaz de me permitir sem abandonar o nível mínimo de conforto que mantenho. Assim eu podia continuar sendo a pessoa durona que muitos imaginavam. Sozinha por escolha. Ligeiramente autista.
  Nos meus piores momentos, quando duas forças dentro de mim se atraem e se repelem ao mesmo tempo, fazendo-me sentir como se estivessem rasgando a minha alma, eu penso em correr para esses braços que me aninham todas as noites, chorar nesse peito cujas pintas e pêlos eu conheço de cor, deixar que o cheiro de vida que vem desse corpo anestesie o processo magnético que destroça as minhas entranhas. 
   Mas a fantasia não é suficiente. De dia, especialmente, é tudo brutalmente real.
  Eu corro, buscando quem entenda, quem se importe, e não encontro ninguém. Não encontro nada além da fidelidade dos objetos cortantes.  Meu ser implora por contato físico, por um toque. O que está ao meu alcance, porém, é a sensação da pele se abrindo sob a pressão afiada da lâmina. 
  

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

descuido

Inclinada e pensativa,
sobre a proa eu fiquei;
Perdi minha palavra 
entre as águas do oceano!...
Quando dei por falta, 
chorando, aos prantos,
Pulei no azul profundo  
— o desespero foi tanto...

Perdi todas as forças 
nadando contra a corrente
E para meu desgosto, 
a palavra, no fluxo das águas
Morrera e fora comida por peixes.

Olhei para o Céu praguejando heresias
E minhas lágrimas quentes
se juntaram às águas frias.

E mesmo ali, banhada e gélida
Pude sentir que estava seca,
Insensível para a poesia...

O navio há muito partira,
Minha alma também se foi;

Só eu fiquei ali, inerte e vazia.

Meu espírito, inquieto e triste,
não pôde se elevar:
Perder a palavra...
maior descuido não há!

sábado, 5 de junho de 2010

descontrolada

FODA-SE! EU QUERO QUE A SOCIEDADE SE FODA!
Ah, se eu falasse tudo o que penso, como seria maravilhoso! Como eu evitaria toda essa dor, todo esse ódio reprimido por pelo menos 5 anos!
Como eu estaria sozinha, sozinha, sozinha e FELIZ! Sem esse peso maldito do mundo sobre meus ombros! Sem essas pessoas medíocres, sem esses seres passivos, ordinários, mesquinhos, otários, trouxas!
E eu, por que sou tão trouxa? Eu pago pra ser trouxa! EU sou a maior otária da face da Terra!
Ficando sempre calada, sempre quieta, engolindo os sapos, o meu orgulho, sem um pingo de vergonha na cara, sem um vestígio de fibra moral nesse corpo obeso!
Ah, mas eu não relei ainda nem um dedo em você! Em nenhum de vocês! Com essa moral baixa, fico me encolhendo quando deveria mesmo gritar e mandar todos vocês irem comer merda!
Dizer que eu não acredito em vocês!
Ou que vocês não merecem nem um pingo da minha alegria, quando essa existe, porque sempre lutaram arduamente para que tudo desse errado na minha vida! E agora eu fico quieta enquanto passo fome? Não! Eu cobro na lata o que é meu por direito!
Vão todos, absolutamente todos às favas! Seus filhos da puta sádicos!
Eu não preciso dar satisfação daquilo que faço, porque faço, como faço, se faço, se não faço, porque sou ou deixo de ser! Eu não preciso me justificar pra ninguém, essa porra de cabeça acima do meu pescoço é meu guia! Essa porra defasada, todo esse cinismo me pertence e eu enfio no meu cu se eu quiser e sumo no mundo sem deixar nem bilhete de despedida!
Vão discutir política numa sala de aula e me deixem em paz! E vocês, cristãos de merda, peguem esse deus inútil e soquem no meio do rabo! Papai Noel é mais eficiente, ele ao menos dá uma justificativa quando não aparece! Suas mulas sem vontade própria!
Vão converter o capeta, porra!


FODAM-SE, MORRAM, SUMAM DA MINHA FRENTE, SUMAM DO PLANETA, SE EXPLODAM POR INTEIRO, VOCÊS TODOS, SEIS BILHÕES E MEIO, VALEM MENOS DO QUE UM MICRÓBIO À BEIRA DA MORTE!