terça-feira, 26 de março de 2019

o copo

Encarei o copo demoradamente, sabendo que seria muito bom. Meu corpo ficaria anestesiado, e por algumas horas, nada importaria. Então eu dormiria. Não o sono agitado de sempre, mas uma espécie de coma temporário, capaz de me tirar do mundo e da minha cabeça.
No ímpeto, levei o copo à boca, uma, duas, dez vezes, parando sempre antes de ele tocar meus lábios. Meus dedos trêmulos e escorregadios seguraram o copo a poucos centímetros do meu nariz, o cheiro do conhaque me instigando.
Passei a maior parte da vida bebendo para amenizar a minha dor. Uma garrafa de vodka por dia, e nem sempre era o suficiente.
"As pessoas não querem saber disso, Cíntia. Elas não precisam saber disso". Queria ser  linear, com uma vida sempre colorida, sorrisos e esperança em excesso.
Coloquei o copo de volta na mesa, uma, duas, dez vezes, ouvindo o baque contra a madeira.
Será que eu queria mesmo?
Imersa em desesperança, a irritabilidade crescendo, repeti o ritual por muitas horas, a mente e o corpo em conflito, desejando e repelindo o conforto líquido. Vislumbrei meu futuro. 
Nós sabemos onde tudo isso leva. A loucura e a inércia tomam conta. São dias, semanas e meses de cama, de vômito, de suor e culpa. Sangue e internação.
Ser forte nos bons momentos não é tão difícil. Eu sou forte o suficiente para manter o controle nos momentos em que o corpo dói de tanto desespero? Nos momentos em que a esperança parece uma tolice?
Não posso ser sempre positiva, porque a vida não funciona assim. Eu não sou uma influenciadora digital, sou um ser humano.
Acendi um cigarro. Senti as lágrimas grossas rolando pelo meu rosto.
Uma das lâmpadas do meu quarto queimou, mas ao menos ainda tenho energia elétrica. Meu estômago ronca de fome. Tive que largar o meu curso. O meu quarto continua mofado, sem móveis... Emprego não tem, e dizem me amar, mas nunca me querem o suficiente para transformar palavras em atos.
E eu, me amo o suficiente para transformar palavras em atos?
Joguei o conhaque na pia do banheiro, e o observei descendo rapidamente pelo ralo. 
O que se tira disso?
Nada.
Hoje eu não posso levantar ninguém, porque estou usando todas as minhas forças para levantar a mim mesma.