domingo, 31 de dezembro de 2017

Quando acaba

   Tem algumas coisas que não importa quantas vezes nos digam, nós não iremos entender, a menos que estejamos dentro da situação. Esse ano eu consegui compreender uma coisa que sempre me disseram, e que se eu tivesse assimilado antes, não teria sofrido tanto quanto sofri: homens gostam do que não podem ter. É a chamada "cultura do estupro".
   Quando eu transei pela primeira vez, aos 21 anos, eu não estava pronta. Era de se esperar que eu estivesse, na época em que vivemos. Mas eu não estava, e tampouco estava o meu parceiro apto a entender minhas necessidades e personalidade esquiva.
   O Alexandre não foi o pior cara com quem fiquei. Em retrospecto, ele provavelmente foi o melhor (ou o menos pior?).
   Na época, porém, eu não sabia lidar com os meus desejos nem com os desejos do outro; não sabia lidar com o meu corpo, com a minha imagem perante um homem, mesmo um cujo desejo se mostrava de forma inegável. Se na primeira vez ele foi fofo, justamente por saber que era a primeira vez, o resto do que tivemos foi um jogo que eu não sabia jogar.
   Ele queria que eu me soltasse, queria que eu fosse safada, queria me dominar... Mas eu não conseguia ser dominada, tanto por orgulho quanto por não  levar um cara de um metro e sessenta e cinco tão a sério.
   Eu ia à casa dele e ficávamos ali, um diante do outro, ele esperando que eu dissesse o que eu queria dele, esperando que eu agisse. Eu queria e ele queria, ambos sabíamos, mas essa era a regra dele, a iniciativa teria que ser minha dali em diante. 
   As palavras "me fode" nunca sairiam da minha boca, então não havia foda nenhuma na maioria das vezes. Ele era capaz de abdicar dos próprios desejos para continuar seu jogo. 
   Ele achava, e me disse, que eu não era louca o suficiente, e essa afirmação foi pior para o meu ego do que ele me chamar de gorda, palavra até então pejorativa.
   Tem essa trava em mim. Eu posso dizer qualquer coisa através de palavras escritas, mas quando elas saem em forma de som, um abismo se abre abaixo de mim e eu caio de forma violenta e contínua.
   Era questão de tempo, entretanto, até ele se cansar do nosso jogo de gato e rato, e um dia ele encontrou uma nova jogadora, provavelmente uma que sabia como jogar o jogo da maneira certa. Foi simples, ele foi direto ao ponto e me disse com todas as letras: "o tesão acabou". Foi isso. Engoli seco. Por um tempo sofri, confesso. Não por gostar dele, não porque ele fosse bom de cama, mas porque a minha substituta era tudo que eu queria ser e não era.
   No começo desse ano eu estava me sentindo diferente. Minha vaidade estava voltando, depois de longos anos. A confiança na minha auto-imagem estava sendo reconstruída. E a necessidade de um corpo colado no meu era latente. Eu estava no meio do deserto, sedenta por paixão... e conheci o Emanuel.
   Um cara inteligente e carismático, que sempre sabia o que dizer e que priorizava a minha inteligência acima da minha aparência. Um cara que dizia sentir tesão pelo meu cérebro. Era o meu intelecto que o deixava de pau duro, ele afirmava.
   E muito rapidamente, deslumbrada, eu acreditei em sua sinceridade. Tão rápido quanto, nós saímos dos papos intelectuais e caímos em papos meramente sexuais. Nesse ponto eu recuei com todas as forças que tive. Eu era, novamente, um ratinho assustado diante de suas palavras ardentes. Um misto de tesão e medo tomava conta de mim e o meu cérebro exigia que eu me afastasse imediatamente. O meu coração queria que eu ficasse. 
   O cérebro a princípio ganhou e eu lhe disse que não poderíamos continuar conversando. Ele se recusou a aceitar isso. Não queria — não iria —, me disse, abrir mão de uma mulher como eu.
   Tudo era demais e assustador para mim, mas a minha mente, certamente entorpecida pelo meu coração, me garantia que se eu fosse adiante e o bloqueasse, coisa que fiz (e depois desfiz), eu iria me arrepender futuramente. Infelizmente muitas vezes me falta sensatez.
   Na dança inicial, ele evadindo e eu recuando, muitas vezes chocada e arrebatada pela lascividade de sua abordagem, eu era, ainda assim, ingênua e moldável. E ele um escultor talentoso. Eu dizia não, e quanto mais o dizia, mais ele queria o meu sim. Com sagacidade ele foi conquistando sim após sim, tudo muito rápido.
   O Emanuel é um homem que sabe o que quer e como conseguir. Ele é o dominador que o Alexandre nunca conseguirá ser. Seus jogos mentais são muito efetivos. Ele nunca forçou um "me fode", os tirou de forma graciosa da minha boca... não, do meu corpo inteiro.
   E então eu era completamente dele, e o queria completamente. Descobri que aquele jogo era prazeroso e que eu era boa nele. Ledo engano: estávamos jogando jogos similares, mas com regras ligeiramente diferentes.
   Eu sabia que não iria durar pra sempre. Sabia que era questão de tempo, mas imaginei que fosse durar mais. Eu era tudo o que ele queria que eu fosse, sempre havia sido, mas até então me faltara a pessoa certa para trazer tudo isso à tona... Mas homens querem apenas aquilo que não podem ter. Quando conseguem o que querem, o brinquedo deixa de ser interessante.
   Eu o coloquei em um altar e não escondi nem dele e nem de ninguém. Todo mundo me dizia: "Cíntia, isso não se faz... ele vai pisar em você". Mas eu queria acreditar na palavra dele de que ele "não era um babaca". Eu queria acreditar em alguma coisa, em alguém...
   As coisas logo começaram a escapar entre os meus dedos. A atenção que ele me dispensava começou a ser dosada. Eu sabia que estávamos em um novo nível do jogo, e aquele não me agradava em nada. Não era um jogo que proporcionava prazer, era um jogo mental e doentio, que também me deixava doentia.
   Então ficou óbvio que as coisas estavam caminhando para o fim porque eu alimentei demais o ego dele. E eu pensava nas palavras do Alexandre: "o tesão acabou", e imaginava o que o Emanuel me diria quando estivesse definitivamente farto. O que eu não esperava era o que veio.
   Eu posso ter jogado a parte sexual muito bem, mas falhei miseravelmente em aderir aos métodos sociais, os quais sempre repudiei. Nós vivemos em uma sociedade na qual você não pode expressar seus sentimentos verdadeiros. É necessário sempre fingir que gostamos menos do que realmente gostamos, senão corremos o risco de ficar sem nada. Excesso de querer causa repulsa.
   Com rejeição eu consigo lidar. A vida inteira eu fui rejeitada: pela minha família, por meus amigos, por colegas de escola, pela sociedade inteira e por mim mesma. O que eu não consigo encarar é o silêncio, a ausência, a omissão, ainda mais partindo de uma pessoa que tem total domínio sobre as palavras e que poderia, se quisesse, aliviar meu sofrimento. Não sei me frear diante de incertezas, eu vou indo até ouvir um não definitivo.
   O Emanuel nunca me disse não. Ele nunca disse que o tesão acabou. Ele me deu "talvez" e "um dia"... nunca colocou um ponto final. Pelo contrário, ele alimentou as minhas esperanças até o fim, me deixando de joelhos calejados diante de si, servindo o objetivo único de satisfazer seu ego e mostrar que no jogo, ele é o mestre. Já eu, nunca tive muita sorte no jogo. Eu sempre perco.
   Quando acaba, ouvir que o tesão se esgotou faz sentido. Negar um "não" é pura crueldade.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

na volta a gente compra

   Às vezes eu preciso me tratar feito criança. Sabe a típica frase, "na volta a gente compra", que todo adulto diz, porém nunca concretiza? 
   Na volta eles sempre fazem outro caminho, e o objeto de desejo da criança, lá na outra direção, fica fora de alcance.
   O meu objeto de desejo está sempre na minha gaveta, ao alcance das minhas mãos, e particularmente de madrugada, ele grita meu nome. 
   Olho para a lista de contatos do meu Facebook, mas não tem ninguém disponível, nem online e nem emocionalmente. Penso em entrar no Bate Papo Uol e falar putaria para atrair a atenção de alguém e ter com quem conversar. Ouço música e navego por todas as minhas redes sociais: nenhuma notificação. Adulta, tento distrair a criança do que ela quer.
   Mas não distraio nem minha cabeça e nem a minha pele do que elas querem. As lâminas, que estão na gaveta, chamam o meu nome.
   Enquanto eu finjo distração, vejo flashes da caixinha dentro da gaveta, das lâminas enroladas no papelzinho protetor. Gosto de lâminas novas, de abrir o papelzinho colado e sentir a cola sendo rompida. E gosto do barulho da lâmina sendo partida ao meio, o estralo que faz entre os meus dedos. Como tudo na vida, o ritual é mais prazeroso do que a ação. 
   Eu digo: "hoje não, Cíntia. Amanhã". E às vezes eu consigo me enganar, sendo ao mesmo tempo a adulta que tenta pregar a peça, e a criança, que, esperançosa, sempre cai na mentira.
   Todos os dias eu me digo "amanhã", e assim eu vou levando até que a tortura psicológica chegue ao limite e eu abra a gaveta, tirando-as lá de dentro, colocando o ritual em prática.
   Hoje eu só consigo pensar nessa maldita caixinha. Se eu estender o braço, alcanço-a. Amanhã. Amanhã. Eu já ouvi dois álbuns, já vi todas as minhas redes sociais vazias. Na volta. Eu já vi, com um misto de tristeza e raiva, a minha curta lista de contatos. Amanhã. Eu abri algumas janelas e vi mensagens minhas não respondidas, de dias ou até semanas atrás. Amanhã. 
   O magnetismo insuportável dentro do meu corpo vai ficando mais forte. Eu deixo todas as coisas para amanhã, e quando eu vou dormir, choro e peço ao Universo para não acordar amanhã.
   A adulta estava indo muito bem em sua mentira bem-intencionada, mas a criança fica impaciente e começa a gritar e chorar na rua. HOJE.
   Eu quase consigo sentir. Já vejo a lâmina deslizando na minha pele, e o sangue escorrendo, quente e lento a princípio e depois muito rápido, pingando no chão. Um corte não é suficiente, eu continuo, outro e outro, e quando acaba, o abismo que existe na minha alma se torna ainda mais profundo.
   Limpo o sangue e fico nervosa porque ele não para de escorrer. Já acabou, chega. Mas ele continua, vai manchar meu lençol.
   As lâminas cumpriram sua função. A caixinha volta pra gaveta — mas nem a adulta e nem a criança saíram ganhando.
   

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

e os namoradinhos?

   Devo admitir que diferente da maioria de vocês, eu não tenho parentaiada para me perguntar "e os namoradinhos?" no natal e no ano novo, porque não comemoro tais datas com parentes.
   Mas logo na curva, em março, tem o aniversário da minha avó, o que sempre gera um churrasco com direito a parentes de até quinto grau que eu nem lembro que tenho no resto do ano (e que muitas vezes só sei que é parente porque alguém me conta durante o churrasco). 
   Sendo minha vó, minha mãe de consideração, eu não tenho escapatória. Fico no meio do evento fervilhando de Liras e Oliveiras e Marcianos e Nascimentos, a maioria com caras, vozes e hábitos muito semelhantes, e vizinhos que se convidam ou vão mesmo entrando sem aviso nenhum.
   Muitos deles, conhecendo meu gênio ruim, evitam, sabiamente, qualquer tipo de aproximação e se limitam a um cumprimento de longe com um aceno de cabeça, ou fingem que não me viram, favor que retribuo.
   Mas tem sempre alguém para forçar amizade. Geralmente pessoas que eu nem sei o nome, mas eles sabem o meu: "Cíntia, como você está bonita. E os namoradinhos?".
   Porque a minha vó tem punho de ferro, procuro não ser rude além do limite e muitas vezes apenas sorrio e espero a pessoa prosseguir com seus assuntos vazios até que eu possa arrumar uma desculpa para me desvencilhar de sua presença.
    Mas essa noite eu tive um flash genial. 
   Eu poderia contratar dois caras e deixá-los conversando a um canto. O primeiro que me perguntasse "e os namoradinhos?", e eu abriria o meu sorriso mais forçado e diria "ah, está ali. Vou te apresentar!" e chamaria, em direção aos dois: "Amor..." e eles viriam até nós. Eu me colocaria entre eles e faria as apresentações: "fulano, sicrano e beltrano" etc. E o parente perguntaria: "ah, e qual dos dois é o seu namorado?", ao que responderia: "os dois!", e daríamos um beijo triplo cheio de língua e saliva e mãos bobas bem no meio do quintal. 
   Haveria silêncio, pratos caindo, crianças chorando, o olhar da minha vó e fim.


    Contrata-se namorado de aluguel
    Pagamento em beijos, cervejas e lágrimas da família tradicional brasileira (plus: todos os meus parentes são evangélicos)

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

traição

   Somos traidores de nós mesmos. Nossas cabeças nos trai constantemente, nossos corações mais ainda... Porém nada em nossos corpos ou essência jamais nos trairá mais do que nossos olhos. 
   Chamem de clichê se quiserem, mas é a mais pura verdade: os olhos são as janelas para as nossas almas. Bom, ou ao menos para nossos sentimentos e intenções mais genuínas - e o que é alma?
  Posso atestar isso, e acho que qualquer pessoa que foi criada por uma figura feminina (seja mãe, tia, vó, irmã etc) também pode, se puxar um pouco na memória: mulheres têm esse dom ainda mais aguçado, o de dizer as coisas com o olhar. E isso se estende para relacionamentos amorosos, porque quando uma mulher ama um homem, ela instintivamente assume o papel de "mãe". Se você já se relacionou com uma mulher, você conhece o olhar. Você já recebeu o olhar.
   Não era minha mãe, mas seus olhos, que me viravam do avesso quando eu fazia algo de errado. A antecipação. Eram seus olhos, também, que indicavam ao meu irmão, quando ele aprontava na igreja, que ele deveria se dirigir ao banheiro para apanhar por sua desobediência. Não que ele entendesse sempre, porque garotos são lerdos, mas eu via bem nitidamente aqueles olhos dizendo "ou você vai, ou eu vou te arrastar na frente de todo mundo".
   Muitas vezes a boca diz uma coisa e os olhos dizem outra. Já ouvi, ao mesmo tempo, da mesma pessoa, um "eu te amo" e um "você sabe que não é verdade". As pessoas são transparentes assim, se você souber o que analisar. 
   A vida inteira senti a reprimenda no olhar das pessoas. A decepção nos olhos do meu professor ao me pegar colando foi o maior castigo que ele poderia me dar. O olhar de um amigo diante de uma fala minha me fez sentir mais estúpida do que se ele tivesse dito qualquer coisa. Nos olhos do meu pai eu me sinto órfã. Quando um dos meus irmãos me olha, às vezes eu vejo que ele me acha verdadeiramente linda. 
   E também já recebi uma séria acusação: "eu vi nos seus olhos que você me achou repulsiva". ...
   Sábado eu coloquei um dos meus vestidos novos e decidi tentar sair sem sutiã — tenho tentado me livrar deles, com sucesso em casa, porém fracasso na hora de sair em público. Peguei a deixa nas alças ciganinhas do vestido e não coloquei o dito cujo. Por baixo da peça, uma calcinha cavada que marcava o vestido; a faixa de renda nas coxas que ficava a mostra quando o vestido subia, nos lábios um batom vermelho berrante, mais destacado ainda pelos meus cabelos negros, e blush cor de rosa no rosto. As botas de salto nos pés. Me olhei no espelho. Me senti vulgar — tão viva —, e vi em meus próprios olhos a aprovação. Eu consigo. É só um sutiã. São só seios. Bolsas de gordura. Foda-se.
   Mas quando eu desci as escadas e saí para o quintal, onde a minha vó estava, em companhia de outras pessoas, ela me olhou dos pés à cabeça e seus olhos revelaram total desgosto. A minha vó é submissa e "educada", porque é de uma época em que mulheres deveriam ser assim em todos os aspectos da vida. Então ela raramente expressa seus pensamentos através da fala, muito menos na frente de outras pessoas. Mas seu olhar sempre diz exatamente o que ela está pensando, e para mim, raramente há elogios. 
   Ali, sem nenhuma palavra, ela me deu um sermão completo sobre moral e bons costumes, que eu não sou uma mulher correta, e que vestidos me deixam mais gorda. E você realmente está sem sutiã?
   Desviei os olhos, me despedi e saí rua afora. Andei em direção ao ponto de ônibus.
   Estava no meio do caminho, e todos que me olhavam pareciam concordar com a minha avó - e não era suas próprias opiniões o que estava me incomodando, mas o lembrete constante da opinião da minha avó e seus olhos severos. Parei, olhei o relógio. Estava atrasada, mas dei meia volta, caminhando rumo à minha casa o mais depressa e naturalmente possível.
   Passei, pela segunda vez, pelo grupinho de garotos que lagarteava na calçada em frente à minha casa, só que dessa vez, subindo, não consegui ignorar seus olhares, e vi em alguns a zombaria e em outros um certo desejo. Abri o portão e me enfiei dentro do quintal novamente. "Esqueci o bilhete", disse, e subi para o meu quarto. Fechei a porta, tirei o vestido, tirei a calcinha, tirei as botas, liguei o ventilador e fiquei na frente dele.
   Então, recomposta, coloquei uma calcinha que não marca, coloquei o sutiã, suavizei a maquiagem, calcei o all star, me olhei no espelho e meus olhos disseram: "covarde". Tomei meu rumo. Os meninos não estavam mais na calçada.
   Eu geralmente evito os olhos das pessoas. Não pelo que poderei ler neles, mas porque me sinto vulnerável, exposta. Quando converso com as pessoas, eu olho para suas bocas, como se quisesse me apegar ao que elas querem que eu acredite. Às vezes me pergunto se elas notam.
   Tenho, porém, um amigo, que com um magnetismo inexplicável agarra os meus olhos e os cola nos seus. Enquanto conversamos, geralmente sentados frente a frente, eu não consigo desprender meus olhos dos dele, por mais que eu tente. Me sinto intimidada. O desconforto me atinge de tal forma, que eu fico subitamente ciente de tudo que compõe meu corpo e minha vida.  Não consigo ouvir muito do que ele diz com a voz, apenas o que seus olhos deixam escapar. Ele é provavelmente a pessoa mais sincera que conheço. 
   E eu, que me exponho tanto na internet, que me acho tão sincera e encho a boca para falar da minha rebeldia, gostaria de fechar meus olhos para que eles não entregassem nada a meu respeito. Vejo meus próprios olhos refletidos nos olhos dele; neles, algo devastador. Às vezes me pergunto se as pessoas notam.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

sabiás

   Você ainda estava aqui, as coisas estavam só começando, mas eu já sabia qual era o gosto do seu descaso. Você se demorava. Eu te esperava, mergulhada em ansiedade. 
   A espera crescia e se transformava em angústia, a qual acabava sempre em revolta. Algo dentro de mim se contorcia com violência, querendo me rasgar, se expulsar de mim com a urgência de uma criança prematura. 
   Eu colocava as músicas mais tristes que conheço para tocar, tirava minha camiseta; a pele eriçada e a garganta pulsando loucamente pelo que estava por vir. Então o cabo USB, dobrado em dois, estralava nas minhas costas. Eu me açoitava com a máxima força que um ser humano é capaz de açoitar a si mesmo, uma vez, duas, três, outras tantas, até cair curvada sobre a cama, sobre mim mesma, a dor latente e a respiração ofegante pelo esforço. Carrasca de mim mesma. 
  Depois permanecia inerte por longos minutos, a respiração ficando suave até quase se extinguir. As costas em chamas e as lágrimas fartas entrando nas minhas narinas e boca. Eu me perguntava o que havia de errado comigo... Como eu podia fazer aquilo? Como eu pude desperdiçar a minha vida inteira ferindo o meu próprio corpo para demonstrar o quanto as pessoas estavam me ferindo por dentro?
   Tudo o que eu conheço desse mundo é a dor que ele produz. Respirar me machuca.
   Você riu e disse que eu deveria te chamar quando sentisse vontade de me açoitar, que você o faria por mim.
   Agora, quando eu penso nas suas palavras vazias, eu penso em toda a violência que existe dentro de mim. Penso em te ferir, te fazer sangrar, em me ferir, em me fazer sangrar. Mas a bagunça seria tão grande, que deixo o tumor da sua existência ferver e crescer dentro de mim... Por enquanto. 
   São três horas da manhã. Não há nada para me distrair dessa agonia de existir. Eu fumo um cigarro a cada vez que penso em você. São muitos cigarros. Tomo algumas doses de conhaque para acompanhá-los, para passar o tempo, para conseguir dormir.
   Os sábias paulistanos também estão acordados.
   E você, anda dormindo bem?
   O problema são as pessoas. O ser humano só sabe fazer zona no mundo, na cabeça uns dos outros.
   Eu queria reunir todos os sabiás dessa cidade e propôr uma fuga em bando. Voaríamos bem alto, para muito longe. Para algum lugar em que nada mais existisse — um lugar onde pudéssemos dormir como os membros sadios de nossas espécies.

sábado, 11 de novembro de 2017

justiça


   Mesmo com todo o meu pessimismo, eu sempre procurei acreditar que as coisas têm uma ordem. Que a vida é feita de ação e reação, e isso me fez relevar, de certa forma, todas as maldades que me impuseram. A esperança de que um dia o mal voltaria para essas pessoas me servia de consolo. A expectativa de que um dia eles receberiam um pouco do próprio veneno me fez aceitar a forma como a minha vida transcorreu. Isso me torna uma pessoa ruim? Querer que as pessoas que me fizeram mal também sofram? Ou me faz conformada, por esperar que a vida se encarregue de me dar "vingança", ao invés de eu mesma buscá-la?
   Um dia, muito tempo atrás, um cara, cansado de me ver sofrer e definhar, me propôs: "você quer que eu mate o seu tio? Se você quiser eu mato. Dou um tiro nele". E eu sei que ele o faria, ele era esse tipo de pessoa. O amei por isso, mas não pude aceitar. Eu tinha 16 anos, cheia de ideais, e matar alguém, ou ordenar a morte de alguém, ainda me era uma coisa incabível. A minha consciência não me deixaria em paz. Eu preferi continuar definhando e esperando que a vida agisse.
   Não se trata de vingança, se trata de justiça. Sim. Eu, logo eu, fui tola o bastante para acreditar, por 27 anos, que pode haver alguma justiça nesse mundo fodido! Mesmo o mundo me mostrando consistentemente nas manchetes de jornais, nos relatos de amigos e na minha própria vida que a justiça é uma utopia. Eu acreditei. Aposto que por essa vocês não esperavam!
   Mas hoje a verdade me atingiu no meio da fuça. Surgiu feito um raio, quando eu menos esperava: não existe justiça. Não há divindades, não há karma, não há energia, não há um sistema cósmico para honrar quem quer que seja...
   Eu luto todos os dias. Luto para continuar viva e para manter minha sanidade. Luto mais do que qualquer pessoa poderá imaginar, mais do que todos pensam. Luto contra mim e por mim, enquanto as pessoas que deram vida e alimento aos meus demônios seguem suas vidas tranquilamente, sempre adiante, sempre prosperando, dormindo feito bebês; enquanto eu não consigo pregar os olhos, com medo das lembranças e indignada enquanto minha vida se esvai.
   Não existe justiça.
   Eles estão sempre felizes, e eu sinto essa angústia que dilacera minha alma.
   Não existe justiça.
   Eles conhecem o amor de uma forma que nunca me será permitido.
   Não existe justiça.
   Eles não se sentem sozinhos ou abandonados nunca.
   Não existe justiça.
   Eu tento ser boa.
   Não existe justiça. E o que eu faço com isso?
   Se não existe justiça, como eu posso continuar lutando, com que forças?
   Não existe justiça. A vida e uma questão de azar ou sorte, tudo da forma mais aleatória possível. Talvez eu devesse arrumar uma arma, no fim das contas, e resolver a questão eu mesma. Porque não existe justiça, e nada mais importa.

"Nem todas as flores têm a mesma sorte,
umas enfeitam a vida e outras enfeitam a morte"   

sábado, 4 de novembro de 2017

só por uma noite

   Conversava com um rapaz cheio de pintas no rosto, primeiro sentados lado a lado, e depois ele se levantou e ficou diante de mim. Um cara que a princípio se mostrou bastante tímido, e por isso atraiu minha atenção. Tentei engatar uma conversa sobre Terrorismo Poético, mas ele não entendeu o tipo de terrorismo que eu estava propondo. Perguntei se ele é artista, ele me disse que gostaria de ser artista de palco, e eu estava a ponto de encorajá-lo, quando um de seus amigos se aproximou de nós e perguntou: "O que significa essa tatuagem no seu pescoço?". "Aberração", informei.
   O cara tímido, que por sinal atende pelo apelido Beto, começou a questionar o porquê de eu tê-la feito, ainda mais num lugar tão exposto. "Não é uma coisa negativa", afirmei. "É uma auto-afirmação. Eu sou uma aberração... de corpo e alma" - disse, omitindo que essa frase é de uma música do Silverchair.
   Ele ficou indignado: "você não é uma aberração, você é linda". E eu repeti: "não se trata disso. Diante da sociedade eu sou uma aberração, sou diferente deles em todos os aspectos, e isso não é ruim. Foda-se a sociedade". "Você está certa, foda-se a sociedade, o padrão. Mas você não é uma aberração", e insistiu: "você é uma mulher linda!".  "Obrigada", respondi "mas realmente não é algo negativo. Você sabia que existem borboletas sem asas?" (e levantei, porque não gosto de conversar com pessoas quando elas estão acima de mim). "Sim" ele disse, embora eu saiba que é mentira. "Pois bem, elas são lindas, mas são consideradas aberrações da natureza, porque são diferentes das demais". 
   O amigo dele voltou a ficar em foco. Não sei se ele permanecera ali ou se tinha acabado de voltar, pois eu estava um pouco alterada e concentrada no rapaz tímido. O amigo dele perguntou: "Quem é esse no seu peito?". "Augusto dos Anjos", eu disse. Um deles questionou "é um poeta, né?", eu assenti. Eles se colocaram à minha frente e leram juntos (o Beto passando o dedo pelas linhas traçadas no meu peito: "O coração do poeta é um hospital onde morreram todos os doentes". Eles ficaram impressionados. "Eu acho que o conheço", alguém me disse. "O poema mais conhecido dele é..." comecei, mas minha mente ficou subitamente vazia; a bebida e a maconha que estava sendo passada de boca em boca surtindo seu efeito... Versos Íntimos, caralho! - "Qual o livro mais famoso dele?", o Beto perguntou, me salvando. "Eu e Outras Poesias", disse. Pelo menos isso! 
   Ele estava muito próximo de mim, nossos corpos roçando. Seu amigo se afastou, ou eu parei de prestar atenção de novo. O Beto continuava inconformado: "queria entender porque você tatuou isso nesse lugar... você queria chocar?" perguntou e passou os dedos sobre a tatuagem. Eu reafirmei os pensamentos anteriores, e ele continuou na tecla: "Tudo bem, mas você não é uma aberração - é uma mulher linda e gostosa". "Eu sei", respondi. Ele beijou meu rosto. "Você é muito gostosa", repetiu, e o meu amigo chegou no meio dessa declaração. Me abraçou pela cintura e disse: "Ai, é mesmo! Minha amiga é maravilhosa, né?", e o Beto disse: "Sim, ela é linda", e ambos beijaram o meu rosto, não sei quem primeiro. O meu amigo saiu de cena e o Beto, cujo corpo continuava esbarrando no meu, passou as mãos pelos meus cabelos e beijou minha testa: "Você é maravilhosa".  "E você tem um monte de pintas", observei. "Tenho pelo corpo todo. Até no pau", e antes que eu pudesse responder esse comentário, que senti que escapou sem intenção pois sua voz morreu no final, ele levantou a camiseta e me disse que tinha uma pinta na altura das costelas. Mas não tinha nenhuma pinta. "Ah, então é do outro lado", e mandou eu levantar sua camiseta, o que eu fiz, e vi a pinta. Um formato bastante peculiar. Ele me contou que aquela era a pinta preferida de sua mãe, que faleceu seis meses atrás. Não soube o que dizer. Passei o dedo na pinta e desci com as unhas por sua pele negra e macia, pensando em como seria bom poder beijar a pinta, lambê-la, descer minha língua por aquela pele lisa, mas afastei meu dedo antes de chegar na altura de seu ventre. Abaixei a camiseta e engoli o excesso de saliva. Ele me mandou levantar de novo e eu repeti o ato. A camiseta abaixada, lhe beijei o rosto. Ele beijou o meu uma, duas, três vezes, me deu um selinho segurando meu rosto, eu retribui, e num instante nossas línguas estavam enlaçadas, nossas bocas traçando beijos ardentes. Ele me abraçou e desceu os braços, pousando suas mãos um pouco abaixo do meu quadril, me puxando para si. Passei meus braços em torno do seu corpo e deslizei a mão para dentro de sua camiseta por um momento, tocando-lhe a pele, mas me contive e subi a mão, tocando seu braço, subindo pro pescoço, parando em seu rosto.
   "Cíntia!", ouvi minha amiga gritar, e interrompemos o beijo. "Sim?". "Você está bem?" ela me perguntou, se aproximando, e eu assenti. O Beto ficou contrariado. "Você está realmente bem?", ela perguntou "ou está muito bêbada?", "estou bem", repeti. "Se você está fazendo isso porque quer tudo bem, mas se não souber o que está fazendo...", o Beto demonstrou sua insatisfação em voz alta, como se tal suposição o ofendesse. "Não estou entendendo, nós somos todos adultos de mente aberta", ele disse, talvez não nessas palavras. "Ela só está preocupada comigo", eu disse. "Se vocês dois querem então tudo bem, continuem", ela disse, nos aproximando, mas eu não sabia como retomar as coisas, e ele não engoliu tão fácil. Ela saiu de cena. "Qual é a dela?", ele me perguntou. "Ela é minha amiga há muito tempo, só está preocupada". O clima não estava morto, mas precisava ser recarregado. E eu queria mais. Ele me mandou anotar seu telefone. "Não estou usando whatsapp no momento", disse. "Pode ser facebook?" perguntei. Peguei meu celular e tentei digitar seu nome na busca do Facebook, mas estava difícil. Pedi para ele digitar, e ele também se enrolou. "Pode ser por e-mail?", questionei. Ele me mandou anotar, e eu estava fazendo isso quando ele me abraçou por trás e um de seus amigos disse: "Olha onde o Beto já está!".
   Eu guardei o celular prometendo que lhe escreveria, mas duvidando que ele se lembraria de mim ou que responderia. Ele pegou na minha mão, entrelaçamos nossos dedos, e fui pega de surpresa quando ele me girou como numa dança, sob o seu braço, me puxou e me beijou. Eu apoiei meu pé no murinho mais próximo porque estava ficando tonta, não sei se pela leve embriaguez ou se pelos beijos. Beijei suas pintas e desci os lábios para o seu pescoço, lambendo e chupando a pele quente e com um gosto salgado de suor; gosto de gente.
   Voltei para os seus lábios e disse com a boca abafada pela dele: "você é lindo", e sem parar de me beijar ele me disse "VOCÊ é linda" beijo "e gostosa" beijo beijo "você é muito..." pausa e beijo "muito." beijo.
   Muito muito. Às vezes as pessoas se referem a mim dessa forma, como se eu fosse tanto, que não existisse um adjetivo que me descrevesse com exatidão. Eu ainda não sei se isso é um elogio ou uma ofensa, mas quando me dizem isso eu me sinto dentro de um roteiro elaboradamente pensado.
    "Você ainda não viu nada", respondi, ficando nas pontas dos pés e o abraçando ao redor dos ombros. Ele me cedeu equilíbrio. Os lábios dele se encaixavam perfeitamente nos meus, entre os meus, nossas línguas em sintonia, as mãos dele me puxando. "Você é... intensa...", ele disse. "É, eu sou intensa... e louca", assenti. "Tem quem não me queira por isso", confidenciei. "Eu te quero por isso", ele disparou, e me atingiu em cheio, em todos os espaços do meu ser. Corpo, mente, o que mais existir...
   Às vezes a vida nos dá exatamente o que queremos. Nem que seja só por uma noite.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

eu não sou de nada

   Não sei porque, mas o meu vestido encolheu. Um ano atrás, quando eu o comprei, ele ficava um pouquinho acima dos meus joelhos. Agora ele mal cobre minha bunda. Se eu ergo os braços, ela fica a um triz de aparecer.
   Gosto dele, apesar de ter sido um erro. Quando eu fui comprar o vestido nessa loja online, pedi um vestido ciganinha preto com glitter e sem estampa, e quando recebi era um vestido-camiseta verde com um tigre feito de lantejoula preta, branca e amarela. Eu não gosto de verde, exceto o verde da parede do vizinho lá de cima, e não morro de amores por tigres. Detesto roupa de adulto com estampa, exceto as nerds, especialmente estampas  feitas de lantejoula. E briguei muito com a vendedora. Eu gritei com ela, ela gritou comigo, mas por fim fiquei com o vestido, porque queria usar em uma festa, nem lembro de quem era, e não dava tempo de comprar em outro lugar. Foi um sucesso. Todo mundo tão contente por ver a Cíntia arrumadinha e felizinha. Parentes distantes e essas coisas.
brincadeira, eu subi um pouquinho nessa foto...
   No fim das contas, tirando o tigre, e tirando o verde, eu gostei bastante de usá-lo. Ele dá um contorno extra ao meu corpo e me faz sentir sexy quando o vento bate de leve. 
   Só que agora ele encolheu, e minhas coxas ficam permanentemente expostas. Ontem eu o coloquei e fui ao centro de Itaim Paulista pagar uma das últimas parcelas dos meus óculos. A pior parte de usar vestido, ainda mais um tão curto, é subir no ônibus. Eu sei que a minha bunda ficou a mostra e eu tentei fazer com que o cara que estava no ponto de ônibus comigo subisse antes de mim, mas ele, muito cavalheiro, insistiu que eu fosse na frente. E quando eu desci, o último degrau sendo muito longe do chão, e eu tendo que dar um pulo, o vestido subiu mais um pouco, e o ponto de ônibus estava razoavelmente cheio. 
   Estava ventando muito e o vestido ficava subindo, e eu puxando pra baixo e ele insistindo em subir e eu tentando segurá-lo, e ele subindo, e o vento batendo e minhas coxas expostas e alguns homens olhando e eu disfarçando o meu desconforto, mais pela desobediência do vestido do que pelos olhares.
   Um cara chegou a parar, me olhou dos pés à cabeça enquanto eu caminhava em sua direção, e voltou seus olhos para os meus olhos, com um sorrisinho muito trambiqueiro; uma cara de quem diz: safada! Mas tirando esse olhar, ele não disse nada. Desviei dele, segui em frente.
   Depois de pagar os óculos eu fui à costumeira lanchonete comer um pedaço de torta, que estava em falta, então sentei para comer um pedaço de pizza, colocando a barra do vestido entre as minhas pernas, minhas coxas aparecendo. Um homem passou com sua namorada e olhou e eu olhei pra ele, e a namorada dele olhou pra mim e eu olhei pra ela, e pensei: "se ela brigar comigo eu digo que estava olhando pra ela e não pra ele", mas ela não disse nada e eles foram embora.
   Na volta foi ainda mais constrangedor subir no ônibus, porque o ponto estava realmente lotado. Mas eu fiz que não liguei e subi, sentindo a brisa na minha bunda.
   Quando eu cheguei em casa continuei de vestido, e depois o meu irmão veio nos visitar, porque havia esquecido as chaves da casa dele no escritório. Eu estava descendo as escadas para fazer sala, e percebi que ele olhou meu vestido, então indaguei: "meu vestido encolheu, né?!" e minha vó entrou no papo (ela é absolutamente contra eu usar vestidos, porque acha que eu fico mais gorda): "você cortou seu vestido? ele está muito curto". E eu disse: "não, acho que encolheu nas lavagens", e ela, desconfiada: "mas mesmo que encolhesse na lavagem, está muito curto...", e eu contei ao meu irmão sobre o cara que me chamou de safada com os olhos, e minha vó fez um "oh!", escandalizada, e meu irmão disse, colocando lenha na fogueira: "a culpa é da senhora que deixa ela sair só de camiseta por aí". E minha vó fez aquela cara de "com coisa que alguém deixa ou desdeixa a Cíntia fazer o que ela quer".
   Depois, no meu quarto, no meio de uma conversa quase quente, eu voltei a me sentir sexy com o vestido. Ainda mais porque tirei o sutiã, e quando esbarrava nos meus próprios seios sentia meus piercings. Eu pensei: "da próxima vez eu poderia sair só de vestido, sem calcinha e sem sutiã", e fiquei entretendo a ideia. A conversa não esquentou o suficiente, mas eu fervi sozinha.
   E hoje, quando fui ao mercado, eu não estava de vestido. Usava um short jeans e uma blusinha comum, e descia a minha rua quando passou um homem muito lindo, indo na direção oposta. Nos olhamos, e ele perguntou: "tudo bem?" e eu respondi: "oi", e ele lambeu os lábios e respondeu: "oi". Desviei o olhar, fiquei olhando pro alto, pras árvores, pro céu, mexi nos meus cabelos e tentei me esconder atrás de mim mesma, sentindo o olhar dele em mim. Mas eu não olhei pra trás, continuei indo. Meu rosto ficou muito quente. Por fim olhei, mas ele já estava terminando de virar a esquina. Fiquei repetindo na minha cabeça oi oi oi oi oi oi e me odiando, sabendo que o meu oi tinha sido o mais seco possível e que eu provavelmente o encarei com uma cara muito brava — faço isso nessas situações. Me remoí por dentro, porque toda vez que um homem fala comigo eu perco a compostura.
   Depois fiquei pensando nele e em todas as coisas que poderíamos fazer. No meu vestido, na língua dele lambendo os próprios lábios antes de me responder: oi.
   Caros leitores. Eu gosto de provocar e gosto de ser provocada, tudo bonitinho... na teoria. Mas na prática, se um homem não me agarrar e...
   Quem me vê falando de meter foder gemer lamber gozar chupar e todas essas palavras que eu uso como bombas de efeito moral, não imagina que quando uma oportunidade surge eu tenho vontade de me esconder debaixo da terra. Ser puta até vai! Agora, ser puta tímida, é de lascar!



quinta-feira, 19 de outubro de 2017

sonho

   Os risos do lado de fora pararam. Surpresa, eu engoli o choro.
   A escuridão ainda se fazia presente, e por alguns momentos tudo foi silêncio; até que o ranger da porta se abrindo falou mais alto, e seguido a isso veio o som  do canto de pássaros ao longe e o murmúrio do vento circulando com suavidade, como ele faz após uma tempestade; então fui tomada por uma luz forte, de ferir os olhos, que preencheu todos os espaços, iluminou todos os recantos do porão. Por instinto, cobri meu rosto molhado com dedos vacilantes e infantis, e entre o vão deles eu pude ver uma mão saindo do meio de toda aquela claridade. Primeiro eu pensei que a mão estava ali para me ferir, mas ela se aproximou lentamente e parou à minha frente, suspensa, a palma para cima; convidativa.
   Hesitei por alguns segundos, mas aceitei o toque daquela mão quente e firme, que apertou meus dedos entre os seus de forma reconfortante. A mão me puxava, mas eu não queria sair ainda, não sabia o que me esperava lá fora. Meu corpo parou abruptamente. Os dedos dele acariciaram o meu pulso, como que para dizer que estava tudo bem, eu já podia sair.
   Caminhei passos muito lentos, curtos, em direção a luz, e envelheci 21 anos no momento que coloquei meus pés para fora. 
   O porão sumiu atrás de mim e meus olhos se acostumaram a claridade. Eu estava em um campo aberto que se estendia por muitas milhas, e a despeito de todo aquele espaço me fazendo sentir pequena, eu não tive medo; não estava sozinha. Era um campo de trigo; eles subiam, serpenteando por nossas pernas, fazendo cócegas, batiam mesmo em nossas cinturas. Apesar da claridade, o sol não era ardente, e a brisa secou meu rosto com o cheiro de coisas vivas. Cheiro de maçã, de gengibre, de laranja, de coentro e dama-da-noite, cheiro de amor. A mão dele não soltava a minha, que já não era vacilante nem infantil.
   Caminhamos em silêncio, em direção a uma colina muito verde, a qual subimos. No topo, uma árvore que não era frutífera e tinha galhos raros, deixando a luz do sol emitir seus raios entre um e outro. Sem soltar minha mão nós nos deitamos sob a árvore, raios inconstantes refletiam sobre nossos corpos e a brisa contínua trazia, a cada rajada, novos cheiros que pairavam sobre nós — eu com o corpo virado para cima e ele ao meu lado, me olhando atentamente enquanto eu enchia meus pulmões de ar e depois soltava, lenta e calculadamente, querendo absorver tudo aquilo que por tanto tempo esteve fora do meu alcance. Eu via o céu e todas as nuvens que formavam coisas lindas.
   Milimetro por milimetro nossos corpos se aproximaram, sem nunca desatarmos nossas mãos, que suavam uma contra a outra. E pousei minha cabeça sobre seu peito, ouvindo seu coração bater ritmado, sem exageros e sem espantos. Eu não queria queria dormir, tinha medo que tudo estivesse acabado quando eu acordasse, que eu seria levada de volta para o porão. Mas, cansada pelo choro de tantos anos, e embalada pelo vento, pelos cheiros, pelo sol e pelo compasso daquele coração, minhas pálpebras pesaram e cederam. Eu dormi e sonhei. Eu sonhei. 



quarta-feira, 18 de outubro de 2017

caixas


   Pedi um tempo do trampo. Todas as cobranças, a ingratidão e a incerteza do que vai acontecer entre um mês e o outro estava me atordoando. Eu não sei viver sob pressão. Simplesmente não consigo, algo dentro de mim fica inquieto e não me deixa em paz. Não durmo, não consigo me concentrar, fico desgastada e como demais ou deixo de comer por completo. Eu consigo sentir o peso da atmosfera, dessa coisa abstrata e incorpórea me esmagando fisicamente, me fazendo ficar com as costas e os ombros curvados. Então eu pedi um tempo. Não sei quando volto. Pode ser amanhã ou pode ser daqui uns meses. Talvez nunca mais.
   Tudo que eu fiz por enquanto foi dormir e tentar ler um livro. Mas estou presa na página 35 e não consigo seguir adiante. O autor é muito prolixo (logo se vê, pois o livro tem 576 páginas). Em alguns momentos prende minha atenção e eu penso: "agora vai", e em outros ele me perde completamente, descrevendo coisas irrelevantes para a história que está tentando contar, ou repetindo pensamentos que já foram estabelecidos. Os autores não entendem que primeiro você tem que fazer o leitor se importar com os personagens, seja através do carisma, da repulsa, ou da admiração, mas algo tem que ser o bastante para alimentar a curiosidade, para fazer com que o leitor tenha disposição para virar a página. E depois, APENAS depois, eles podem se demorar por páginas e páginas descrevendo-os fazendo coisas insignificantes (mas deveriam evitar isso, deixar algumas coisas para a imaginação). Enfim, as coisas têm uma ordem. Não me interessa ler sobre personagens que eu não conheço, e por enquanto os personagens em si mal apareceram, são páginas e páginas de divagações de um protagonista invisível.
   E eu sou uma protagonista invisível, sempre divagando, por isso ninguém me lê.
   Essa tortura literária talvez me caiba perfeitamente, porque apesar de tudo, estou me sentindo culpada por ter cedido e pedido um tempo. Não pelos meus irmãos, que não tiveram consideração comigo, mas por mim mesma. Tenho medo de me tornar mais irrelevante, de não me deixarem voltar, visto que a intenção deles já era me demitir.
   Não posso me divertir muito. Tenho evitado ouvir música. Esse tempo que eu tirei não é para que eu me divirta, é para que eu fique na minha, para que eu pense no que tenho que fazer a seguir. Se eu me mato ou se prossigo nessa existência burocrática, sem sentido, sem carinho, sempre trancafiada entre 4 paredes, em uma casa ou outra.
   O Junior veio aqui no sábado, e sabendo que eu me cortei, me disse: "uma criança fazer isso tudo bem, mas você já é adulta! Já devia ter estabilidade emocional para lidar com os problemas da vida". E o que eu posso responder? O que ele espera que eu faça com isso? Ele acha que vai me curar com tais palavras, que subitamente eu vou ter o que é necessário para viver nesse mundo que me mastiga e me engole, pedaço por pedaço, dia após dia? E que direito ele tem?! Ele, que não sabe mais nada a meu respeito, que mal me viu esse ano! Que não está dentro da minha pele para saber como tudo isso está me matando da forma mais cruel e dolorosa possível!
   Quanta tortura emocional uma pessoa consegue aguentar calada, contando apenas consigo mesma...?
   Estou tomando os meus remédios e tenho permanecido em silêncio absoluto, pensando, pensando, pensando. Penso no Emanuel e nos caras que vierem depois dele. Nos padrões que eu caio. Penso no meu passado e em todas as coisas que eu quero. Penso em tudo que é inatingível, e às vezes me dá muita raiva. Penso em espaços fechados.
   Penso que todo mundo gosta de espaços pequenos, mesmo quem se acha tão selvagem e acima dos engravatados. O mundo é tão grande, mas as pessoas criam limites e barreiras e constroem caixas para viver, para se locomover, para os seus momentos de lazer. As pessoas trabalham dentro de caixas, comem dentro de caixas, fodem dentro de caixas, e usam caixas menores para distrair suas mentes, que também são como caixas muito, muito pequenas. Elas não são tão diferentes de mim. Eu apenas permaneço dentro de uma só caixa por longos períodos de tempo, enquanto elas transitam entre uma caixa e outra. E mesmo quem compra mansões, provavelmente vive a maior parte do tempo em um dos cômodos, o quarto ou a sala ou a biblioteca, atrás de portas fechadas.
   E eu sei porque nós gostamos de espaços pequenos. Nós viemos de um espaço pequeno, o útero. E quando fomos jogados nesse mundo tão imenso, fedorento, barulhento e cruel, perdemos aquela sensação de conforto. Os recém-nascidos precisam de um cobertor que lhes deixe bem apertadinhos para que se sintam confortáveis. E nós, adultos,  precisamos de nossas caixas de concreto ou de metal. E quando morremos, somos enfiados em uma caixa de madeira.
   E eu... eu gosto de espaços pequenos porque sair do útero foi um grande choque, e porque passei boa parte da minha vida em um cômodo pouco maior do que o banheiro de muita gente, com meus dois irmãos e minha mãe e os meus tios me tocando e inserindo suas partes em mim e muitas caixas de brinquedos que nunca tivemos permissão para abrir. E quando a dona do útero para o qual eu sempre penso em voltar não estava lá, eu era colocada dentro de um espaço ainda menor, escuro e úmido, com ratos e baratas e choro do lado de dentro e risos do lado de fora.
   E desde então eu não soube me sentir nem mesmo minimamente confortável em espaços abertos.
  É por isso que eu fico no meu quarto, sentindo o mesmo desconforto e desespero de quando me trancavam naquele porão que eu não consigo esquecer, e com o qual sempre sonho.
   Eu sempre vou ser aquela garota de 6 anos trancada dentro de um porão escuro. E eu fico contente que você, Junior, não seja mais aquele garoto de 5 anos trancado em um porão escuro, e que o Felipe não seja mais aquele garoto de 3 anos trancado dentro de um porão escuro. Mas não me venha falar sobre estabilidade emocional, porque você também tem suas caixas!



ciclo

   Even though you've got a million best friends 
I don't want the label I just want your presence
I see you as a brother just as much as a best friend 
So I will fight the deeper urge to say "come home" 
'Cause I know you have to go, I know you have to go ♫

   Um ano atrás eu fui lá, montagem fofinha com nossas fotos e as coisas que gostamos, textão professando meu amor por você — e você, em contrapartida, me dizendo que estava chorando com a mensagem, que, veja bem, era sincera.
   Eu lembro da primeira vez que te vi. Eu imediatamente notei que a sua aura é azul. Suas mãos eram como sempre foram: mãos de artista. Seu jeans era apertado e tinha uma mancha de tinta. Você conversava com os seus amigos, um pouco acelerado, toda uma expressão corporal, e eu o observei e pensei que um cara como você nunca iria notar uma pessoa como eu.
   E com surpresa recebi a sua solicitação de amizade. Você diz que desde a primeira vez que me viu quis ser meu amigo. Me enfiei no seu grupo só para tê-lo por perto, mas você, relapso, mal ficava entre eles, sempre atrasado, sempre correndo. 
   Mas às vezes você ia fumar e me chamava para ir com você, e mesmo asmática eu ia, porque gostava de te ver fumando e falando suavemente naqueles momentos, com tanta classe. Como um personagem de filme dos anos 50; com trejeitos felinos.
neverland 42
   E no ano passado nós rimos, nos lembrando daquela vez que marcamos de nos encontrar na sua casa, logo no início de tudo, e eu, na pressa de te ver, sempre ansiosa e deslumbrada, cheguei uma hora antes, dando de cara com a porta, pois você não estava em casa ainda. Eu tenho uma foto da porta fechada, o número 42 pendurado. Tirei enquanto estava sentada nos degraus, onde fiquei te esperando, lendo um livro, nem lembro qual. 
   Nós mal nos conhecíamos naquela época. Quando você chegou compartilhamos um abraço breve e frouxo. Mas você esteve lá de forma constante e firme. Por um tempo. Como naquela vez, entre as muitas em que eu bebi muito e vomitei sobre mim mesma; mas naquela vez eu não me limitei a beber e vomitar e capotar, acordando duas horas depois enjoada. Naquela noite eu entrei em um quarto, tranquei a porta e tentei me jogar da janela do seu apartamento. Você, que nem me conhecia, arrombou a porta e me puxou, expulsou as pessoas assustadas e curiosas, despiu minha camiseta e colocou em mim a sua camisa azul. Eu ainda tenho a camisa. Eu ainda lembro do que te disse, os meus motivos, e ainda lembro que você tentou me consolar. Eu fiquei mortificada no dia seguinte, mas você entendeu sem me julgar.
   E assim seguimos, nos conhecendo, construindo confiança, rindo, bebendo até cair, quase chorando às vezes, ouvindo um ao outro; e com o passar do tempo, melhores amigos, desafiando um ao outro, ora artisticamente, ora com comentários passivo-agressivos. Você sempre atrasado e eu sempre adiantada. Eu querendo te abraçar forte, e você se desvencilhando dos meus braços muito rápido. Isso nunca mudou, nem com os anos de amizade. E toda vez que nos abraçamos eu me pergunto, com mágoa, por que você se afasta tão rápido. Eu te olho abraçar outras pessoas e são abraços demorados. Abraços como abraços devem ser.
   Vieram outras amizades — para você, e eu me tornei figurante. Eu não sei mais o que acontece na sua vida. Você também não sabe o que acontece na minha.
   Em algum momento nós desconstruímos a confiança e o riso ficou mais fraco e paramos de beber juntos. Só eu caía, você ficava em pé a noite inteira. Eu chorei, você eu não sei. Nossos desafios deixaram de ser ligeiramente agressivos e se tornaram abertamente tóxicos. Nós não sabemos porque continuamos. Você me pergunta o que eu quero de você, porque não o deleto como faço com todos, e eu não sei responder. É que eu te amo. Às vezes.
   Mas não consigo deixar de sentir que não pertenço ao seu mundo de pessoas inteligentes e interessantes e bonitas; atores, modelos, artistas plásticos, fotógrafos e músicos.... e gin e tônica e coisas sofisticadas. Eu não consigo deixar de sentir as coisas deslizando para bem longe do meu alcance. Eu não consigo sua atenção, uma resposta, reciprocidade. Quando nos encontramos eu não te sinto empolgado por me ver. Como se não importasse. Às vezes eu te amo muito, e às vezes te amo quase nada.
   Você cresceu, e eu permaneci pequena. Você foi a lugares, eu continuei parada. O número 42 não está mais lá, nem mesmo com a porta fechada para que eu fique apenas olhando. Eu nem sei onde você mora mais. 
   Então esse ano eu não fiz montagem engraçadinha e nem textão. Eu te mandei uma mensagem breve, disse que te amo. Você não respondeu. Você quase nunca responde. Sempre correndo.
   Mas tudo bem, não é por isso que você vai ter um aniversário menos emotivo. Outras pessoas te mandaram montagens e textões, seus novos melhores amigos e os antigos que você, de alguma forma, conseguiu tempo para manter.
    Feliz aniversário. Eu te amo?

domingo, 15 de outubro de 2017

rastros

     A paixão é como uma bolha de sabão.
   Um sopro suave faz com que ela se expanda, ganhando forma lentamente, brilhantemente, ficando maior e maior, gotejante de cores vibrantes... 
   Ela flutua sob o céu de um dia claro, voa para o mais distante que consegue, à mercê da violência do vento, e no ápice de sua beleza ela estoura, deixando para trás rastros incertos de sua existência fugaz.




rastros

sábado, 14 de outubro de 2017

vizinhos? melhor não tê-los! mas se não os temos, como sabê-los?

   Ontem eu estava indo comprar cerveja e subi pela minha rua, caminho que eu nunca faço. Eu sempre a desço. E lá pra cima, território semi-desconhecido, eu vi uma casa pintada com o verde mais bonito e brilhante de todo o mundo. É um verde tão verde, que reluz e deixa verde a parede branca do outro lado da rua (a minha rua não tem vizinhos de frente).
   Quando pintaram a "minha" casa de verde, eu odiei. Achei brega. Parecia um abacate gigante e disforme. Mas se fosse esse verde, bem que eu teria gostado.
   Talvez, ponderei, aquela casa tenha sido recém-pintada. Ou, talvez, a parede do vizinho seja sempre mais verde.
   Os meus vizinhos, que vivem entre ficar no mais completo silêncio e gritar baboseiras, hoje estão animadíssimos. Tem alguém tocando violão, eles estão cantando Legião Urbana, e sempre que acabam uma música, batem palmas e dão gritinhos empolgados. 
   Não conheço meus vizinhos, nenhum deles. Só conheço suas vozes, que gritam coisas uns para os outros, e eu ouço através da parede, que nem é tão fina assim. Não os conheço, mas os detesto por existirem. Entretanto, hoje bem que me deu vontade de vestir uma das minhas roupas novas e chegar lá como quem não quer nada. Não iria querer o churrasco e nem a cerveja não, eu só queria sentar com eles, cantar Legião Urbana e bater palmas entre uma música e outra. 
   É interessante como essas rodinhas que se propõem a tocar e cantar Legião Urbana sempre fazem as músicas da banda soarem mais felizes do que são. Porque ouvir Legião Urbana sozinho, trancado no seu quarto, é pedir para acabar com o pulso cortado.
   Mas nas rodinhas não. Nas rodinhas, Legião Urbana é a banda mais animada e positiva que já existiu. Até eu ficava empolgada quando cantava Legião em coro com meus colegas. Uma vez nós cantamos música após música de pé, pulando, e fizemos uma guerrinha de tinta no apartamento do Sillas ao som de nossas próprias vozes cantando Tempo Perdido. Éramos tão jovens! O telhado ficou com marcas de tinta vermelha por uns bons anos, até que ele teve que pintar de branco para entregar o apartamento...
   E esses vizinhos, eles são inventivos. Até fizeram um medley com Tempo Perdido e uma música do Michel Teló, o que eu teria achado uma barbaridade uns anos atrás, mas hoje me provocou indiferença. É isso que a vida fez com o meu espírito.
   

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

esmurrando portas


   O que mais eu posso escrever, que já não tenha escrito das mais variadas formas, utilizando os mais variados sinônimos e adjetivos, e até dispondo de palavras inventadas, nos últimos 21 anos?
   Tudo o que eu fiz na vida foi escrever. Escrever, escrever, sentir e escrever, escrever e sentir, mesmo quando o que eu estava escrevendo e sentindo era ridículo, maçante ou simplesmente indigno de ser trazido ao mundo, que dirá lido...
   Chega um momento que a mente pede arrego. O corpo segue o embalo. O meu está como não ficava há muito tempo, a ponto de se curvar sobre si mesmo, a ponto de quebrar como se fosse um objeto de gesso que derrubam no chão.
   Estava chorando de novo. Eu queria socar a parede, quebrar coisas, me quebrar, levantar da posição fetal em que me mantinha, e pegar minhas lâminas. Cortar minha barriga até que as tripas saíssem para fora, até que a mágoa se extinguisse. Pensei em pular da janela do meu quarto, mas é só um andar. Talvez eu quebrasse o pescoço ou rachasse meu crânio. O mais provável é que eu quebrasse os meus dentes. Os da frente.
   Pensei, também, em pular na frente de um trem. Com a minha sorte, acabaria com as duas pernas amputadas, porém viva, e uma multidão secretamente sedenta por sangue me xingaria por lhes causar tamanho inconveniente (mas bem que eles filmariam tudo e se sentiriam importantes quando recebessem alguns likes).
   Eu penso repetidamente em pegar uma faca, a de cabo cor de laranja que a minha vó vive escondendo, a única de ponta afiada, e enfiar no meu coração, dar uma torcida, ou me apunhalar quantas vezes tivesse forças para fazê-lo, sentindo o sangue jorrar para todos os lados, atingindo minha própria cara. Talvez um dia, quando eu estiver desesperada o suficiente...
   Hoje eu não estou desesperada, eu estou triste. Meu corpo está leve, mole como macarrão cozido. As palavras que eu ouço são sempre as mesmas desculpas esfarrapadas, e os atos são sempre os mesmos, contraditórios, e as pessoas são sempre iguais, covardes, e nada disso me traz acalento. E eu? Quem sou eu para essas pessoas? No fim, eu sou a louca que cruzou seus caminhos, e que um dia, um dia bem próximo, eles vão ignorar porque é mais fácil assim.
   Eu permaneci na minha cama, as lágrimas grossas não paravam de rolar, e fiquei assim, chorando abraçada a um travesseiro, tentando fingir que tinha um ser humano entre os meus braços. Tentando simular calor humano.
   Amanhã eu vou ao cemitério, é lá o meu porto seguro, não nos braços do fantasma sem rosto que eu imagino todas as noites. O bom filho à casa torna, é o que dizem.
   Eu vou sentar em um dos bancos, porque acho desrespeitoso deitar sobre túmulos, e vou beber minhas cervejas quentes e tomar meus 20 comprimidos de diazepam. Vou apagar, capotar no chão e acordar quando começar a chover na minha cara ou quando alguém começar a respirar sofregamente sobre mim. Mas tudo bem, eu gosto da chuva. E estou acostumada ao resto.
   Eu estava a caminho do psiquiatra quando vi uma velha falando sozinha na rua. Falava e gesticulava consigo mesma. Era uma sem-teto. Eu pensei, temerosa: "essa serei eu daqui uns anos", mas ao analisá-la melhor, prossegui com o pensamento: "exceto que eu não seria tão elegante". Uma mendiga elegante! Esse é o tipo de coisa que vemos em São Paulo. Ela estava com os cabelos desgrenhados, a pele suja e não tinha dentes, mas trajava um sobretudo sobre o seu corpo curvilíneo, o que lhe garantia elegância suficiente.
   Eu não estou criando arte aqui. Eu estou escrevendo porque preciso escrever. Me entenda, eu preciso escrever! 
   Eu estou cansada de esmurrar portas de aço com dobradiças soldadas.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Chokito

   O meu avô, seu Ciço, diz em alto e bom tom, para quem quiser ouvir, que eu sou sua neta preferida. 
   Essa predileção não é baseada em convivência; não é porque ele me conhece e me acha uma garota incrível e inteligente ou bonita. Não é porque eu sou bem-sucedida e lhe dou mil orgulhos. Não é por eu ter sido publicada em dois livros que ele não compareceu ao lançamento, ou por eu ter sido exposta com minhas pinturas, coisa que ele nunca soube; não é porque eu fui engajada politicamente na escola, quando o único argumento político dele é criticar o PT. Não é porque fui aceita em duas universidades, às quais não levei ao fim. 
   A preferência ocorre pelo simples fato de que eu fui sua primeira neta.
   E de fato, eu fui a primeira filha, a primeira sobrinha, a primeira neta... Eu sou a primogênita, em ambas as famílias Santos (embora não carregue o sobrenome) e Lira (o qual ostento com orgulho), e foda-se se você acha que o verdadeiro primogênito tem que ser um homem. Eu estava nesse mundo seis meses antes do Rodrigo chegar, e um ano antes do Junior chegar e três anos antes do Felipe surgir. Foda-se o patriarcado!
   O meu avô não me conhece. Não diria que somos exatamente distantes, mas também não somos próximos. A última vez que nos vimos tem mais de dois anos, eu ainda tinha cabelo roxo — conto as datas de acordo com a cor do meu cabelo quando um determinado evento ocorreu, o que me deixa um pouco perdida, porque há quase dois anos eu parei de mudar a cor deles quinzenalmente.
   Nos falamos por telefone depois disso, mas se não sou eu ligar, ele não liga. E quando eu ligo, ressentida por este fato, ele logo diz alguma coisa que ativa um gatilho emocional, e eu dou alguma desculpa, me despeço e desligo.
   Ele diz que me ama muito. Não apenas sou sua neta preferida, ele me ama —  afirma. E eu digo "também te amo, vô", e digo com facilidade, não com o embaraço que declaro meu amor aos meus irmãos. Porque no caso dele, não é verdade, embora também não seja mentira.
   Eu tenho muitas lembranças sombrias e mágoas profundas em relação a ele. Quando ele diz que me ama, eu não penso muito no assunto, porque se eu parar para pensar, eu não acredito. 
   Mas às vezes eu fico pensando em alguns momentos, talvez meia dúzia deles, em que eu me senti amada por ele, e nos quais o amei de verdade, sem meios termos.
   Como quando eu cheguei da Igreja uma vez, em 1998, e ele estava assistindo Chiquititas e me deixou assistir com ele, enfrentando a restrição da minha mãe... Isso não era rotineiro. O meu vô gosta de ter as coisas dele só para ele. A TV, o rádio, a coleção de vinil, o gosto musical, o programa, o filme, o momento, o espaço, o chão que ele sentava para assistir Chiquititas. Mas naquele dia ele dividiu o chão comigo, e nós assistimos Chiquititas juntos.
   Ou outra vez, que eu nem tenho muita certeza de que aconteceu de verdade, porque faz tanto tempo e foi tão incomum... Ele estava sentado numa cadeira, e eu estava deitada nas pernas dele, de bruços, as minhas pernas penduradas no ar, e ele acariciava minhas costas e meus cabelos com gentileza, com mãos de vô, em silêncio. Um momento tão atípico, que eu fiquei torcendo para que durasse uma eternidade ou duas. Mas talvez eu tenha inventado este momento.
   E teve aquela vez, eu tinha 16 para 17 anos, era o meio da tarde e eu ainda estava dormindo. Me acordaram dizendo: "o seu vô está aqui", e, atordoada, eu não acreditei no que ouvi e perguntei: "quem?", "seu vô", "meu vô...? o Cemar?". Como se eu tivesse outro avô! Mas aquela foi a primeira e única vez que ele me visitou, então não estranhem muito minha reação sonolenta. 
   Eu levantei da cama, e tudo que lembro daquela tarde é que eu não escovei os dentes nem alinhei os cabelos antes de ir encontrá-lo na sala; que o admirei como quem vê uma miragem; e que quando lhe contei que estava aprendendo a tocar violão (e por aprendendo, leia-se, eu estava dedilhando o violão a esmo), ele, que toca muito decentemente, pediu meu violão emprestado e tocou alguma música dos Beatles. 
   Alguns dias mais tarde, quando eu o visitei, ele me mostrou, mas não me deu, uma revistinha com cifras de músicas dos Beatles. 
   E eu comecei a ouvir os Beatles para ter algo em comum com ele, na esperança de que um dia pudéssemos ouvir The Beatles juntos. Eu comecei a ouvir Carpenters porque pensei que poderíamos ouvir juntos, e comecei a ouvir Bob Dylan e Rolling Stones porque pensei que poderíamos ouvir juntos! Até decorei músicas e títulos, pensando em impressioná-lo caso ele testasse meus conhecimentos. Ele nunca o fez.
   Uma das memórias mais marcantes que tenho do meu vô é dele sentado no chão de sua sala ouvindo "I Should Have Known Better", do Jim Diamond, no último volume. A casa chegava a tremer. Ele estava de pernas cruzadas e tinha os braços ao redor delas; os olhos fechados e expressão cheia de tormenta, balançando a cabeça e o corpo para a frente e para trás, ignorando completamente o resto do mundo. Ele parecia possuído. Essa visão ficou na minha cabeça por muitos anos antes de eu criar coragem e lhe perguntar o nome da música (e não sabendo falar inglês à época, eu só sabia cantar a parte do "I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I")...
   Nós nunca ouvimos música juntos em um de seus estéreos potentes (toda semana ele arrumava um novo, roleiro que é), no chão de sua sala. Eu propus algumas vezes, e ele concordava, mas quando eu chegava à sua casa ele já havia esquecido tais planos, e passávamos a tarde, eu, ele e minha vó, sentados à mesa falando de coisas e pessoas que não me interessavam; vez por outra um dos dois me pedia um bisneto e eu respondia com silêncio indignado ou sorriso amarelo, e ali eu não sentia amor fluindo em nenhuma direção.
vó, Cíntia, seu Ciço
   Mas com tudo isso, quando o meu avô diz que me ama, e a minha mãe me garante que eu sou a paixão da vida do seu Ciço, e se eu estou propensa a acreditar na hora, o que me vem em mente mesmo é ele chegando da rua com um chokito para mim. Enterneço pelo fato de que ele sabia que chokito era o meu chocolate preferido, e o fato de que eu, mesmo muito nova, sabia que chokito não era barato; Por ele ter passado por algum lugar — uma padaria ou um bar —, ter visto um chokito e ter pensado em mim, sua neta preferida. O fato de ele ter vários netos e trazer chokito só pra mim. Ele fazia isso às vezes.
   Ontem eu comprei um monte de chocolate, porque estava triste. Comprei dois prestígios e uma caixa de um genérico de bis, que é bem gostosinho. Comprei um chokito. Acordei hoje e comi todos, menos o chokito, e agora o meu estômago está doendo. Eu olho para o chokito e sinto um nó nas tripas. Um nó na garganta.
   Eu acho que vou guardar esse chokito na minha lata de lembranças, com todas as fotos da minha infância, e comê-lo daqui uns dez anos, quando o seu Ciço tiver morrido, e só me restar a culpa por todas as vezes que não fui visitá-lo, mesmo querendo, porque ele não conseguia atingir minhas expectativas. Só porque ele nunca quis ouvir Beatles comigo, sentado no chão da sala. Ele, que me ama apesar de eu ser a primogênita e não o primogênito. Apesar de eu não ser bem-sucedida, apesar de não lhe dar mil orgulhos. Apesar de eu não ser incrível, nem inteligente, nem bonita como suas outras netas. Apesar de não carregar seu sobrenome. Apesar de não ter me formado, apesar de nunca ter aprendido a tocar violão, apesar de não ter lhe dado um bisneto, apesar de nunca ter tido um namorado para lhe apresentar, apesar de ter os braços cheios de cicatrizes que ele não entende, apesar de não ser normal. Ele, que me ama, apesar de não me conhecer.
   Vai sobrar apenas a culpa e o chokito.
   Eu vou esperar, e vou cometer suicídio com uma barra de chokito, nestlé! Essa barra aqui, que carrega o seu nome!