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quinta-feira, 19 de outubro de 2017

sonho

   Os risos do lado de fora pararam. Surpresa, eu engoli o choro.
   A escuridão ainda se fazia presente, e por alguns momentos tudo foi silêncio; até que o ranger da porta se abrindo falou mais alto, e seguido a isso veio o som  do canto de pássaros ao longe e o murmúrio do vento circulando com suavidade, como ele faz após uma tempestade; então fui tomada por uma luz forte, de ferir os olhos, que preencheu todos os espaços, iluminou todos os recantos do porão. Por instinto, cobri meu rosto molhado com dedos vacilantes e infantis, e entre o vão deles eu pude ver uma mão saindo do meio de toda aquela claridade. Primeiro eu pensei que a mão estava ali para me ferir, mas ela se aproximou lentamente e parou à minha frente, suspensa, a palma para cima; convidativa.
   Hesitei por alguns segundos, mas aceitei o toque daquela mão quente e firme, que apertou meus dedos entre os seus de forma reconfortante. A mão me puxava, mas eu não queria sair ainda, não sabia o que me esperava lá fora. Meu corpo parou abruptamente. Os dedos dele acariciaram o meu pulso, como que para dizer que estava tudo bem, eu já podia sair.
   Caminhei passos muito lentos, curtos, em direção a luz, e envelheci 21 anos no momento que coloquei meus pés para fora. 
   O porão sumiu atrás de mim e meus olhos se acostumaram a claridade. Eu estava em um campo aberto que se estendia por muitas milhas, e a despeito de todo aquele espaço me fazendo sentir pequena, eu não tive medo; não estava sozinha. Era um campo de trigo; eles subiam, serpenteando por nossas pernas, fazendo cócegas, batiam mesmo em nossas cinturas. Apesar da claridade, o sol não era ardente, e a brisa secou meu rosto com o cheiro de coisas vivas. Cheiro de maçã, de gengibre, de laranja, de coentro e dama-da-noite, cheiro de amor. A mão dele não soltava a minha, que já não era vacilante nem infantil.
   Caminhamos em silêncio, em direção a uma colina muito verde, a qual subimos. No topo, uma árvore que não era frutífera e tinha galhos raros, deixando a luz do sol emitir seus raios entre um e outro. Sem soltar minha mão nós nos deitamos sob a árvore, raios inconstantes refletiam sobre nossos corpos e a brisa contínua trazia, a cada rajada, novos cheiros que pairavam sobre nós — eu com o corpo virado para cima e ele ao meu lado, me olhando atentamente enquanto eu enchia meus pulmões de ar e depois soltava, lenta e calculadamente, querendo absorver tudo aquilo que por tanto tempo esteve fora do meu alcance. Eu via o céu e todas as nuvens que formavam coisas lindas.
   Milimetro por milimetro nossos corpos se aproximaram, sem nunca desatarmos nossas mãos, que suavam uma contra a outra. E pousei minha cabeça sobre seu peito, ouvindo seu coração bater ritmado, sem exageros e sem espantos. Eu não queria queria dormir, tinha medo que tudo estivesse acabado quando eu acordasse, que eu seria levada de volta para o porão. Mas, cansada pelo choro de tantos anos, e embalada pelo vento, pelos cheiros, pelo sol e pelo compasso daquele coração, minhas pálpebras pesaram e cederam. Eu dormi e sonhei. Eu sonhei. 



sexta-feira, 15 de setembro de 2017

intocável

   Toda madrugada, antes de dormir, eu fico na minha cama, em meio ao escuro e o silêncio, fingindo que não estou sozinha. Fingindo que tem dois braços me aninhando; um coração batendo ao alcance do meu ouvido, meu rosto colado na pele nua e morna. O cheiro de vida emanando dela. Uma respiração tranquila pairando sobre mim... Nossas pernas estão sempre entrelaçadas. Eu o abraço com força, como um náufrago se agarrando a uma boia.
   E de tanto imaginar, chego a sentir a pressão desse corpo contra o meu. Ele dorme, eu me contento em ficar ali parada entre braços que me querem.
   Às vezes acordo desse delírio auto-induzido e choro de solidão. Lágrimas tão grossas que mal parecem líquidas, e soluços altos, convulsos, que ecoam pelo meu quarto, pela casa inteira, que talvez ouçam até da rua (...) mas ninguém se manifesta.
   Já fui menos piegas. (Será?). É a idade (alguns diriam). As necessidades passam a ser diferentes (interrogação). 
  Não, eu sempre tive necessidades, mesmo negando tê-las. Elas se manifestavam nas vezes em que eu tinha que me forçar a não tocar a pele exposta de pessoas com os braços erguidos no metrô. Em todas as vezes que eu de fato forcei contato físico com desconhecidos, deixando minha mão escorregar no ferro do ônibus para tocar a de alguém, quando abri mais as pernas no assento, para encostá-la na da pessoa ao lado, nas vezes que coloquei o braço mais para a direita para ultrapassar a linha entre o meu espaço e o espaço do meu colega de sala... E poder dizer, foi sem querer. Dessa forma eu não tinha que admitir para ninguém que precisava de coisas que não podia ter, coisas que sou incapaz de me permitir sem abandonar o nível mínimo de conforto que mantenho. Assim eu podia continuar sendo a pessoa durona que muitos imaginavam. Sozinha por escolha. Ligeiramente autista.
  Nos meus piores momentos, quando duas forças dentro de mim se atraem e se repelem ao mesmo tempo, fazendo-me sentir como se estivessem rasgando a minha alma, eu penso em correr para esses braços que me aninham todas as noites, chorar nesse peito cujas pintas e pêlos eu conheço de cor, deixar que o cheiro de vida que vem desse corpo anestesie o processo magnético que destroça as minhas entranhas. 
   Mas a fantasia não é suficiente. De dia, especialmente, é tudo brutalmente real.
  Eu corro, buscando quem entenda, quem se importe, e não encontro ninguém. Não encontro nada além da fidelidade dos objetos cortantes.  Meu ser implora por contato físico, por um toque. O que está ao meu alcance, porém, é a sensação da pele se abrindo sob a pressão afiada da lâmina.