Mostrando postagens com marcador Tristeza. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Tristeza. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 17 de junho de 2019

parece amor, mas é doença

Noite passada eu não sonhei com ele
Foi a primeira vez em alguns meses
Tive, entretanto, uma terrível dor de garganta
No meio de sonhos entrecortados
Sobre coisa nenhuma
Ouvi uma voz robótica

É câncer

Pensei, culpada,
Em todos os cigarros que fumei
No último ano
Em cada tragada dedicada
A Ele

Em todas as pontas
E as cinzas
Transbordando
Numa caixa
Esperando para virar arte
Contemporânea

É câncer

Prometi ao Universo
"Se não for câncer
Nunca mais acendo um cigarro"

Nunca mais acendo dois, três
Madrugada adentro
Ao som de Jeff Buckley e Vanilla Fudge
Sempre as mesmas canções
E a voz dele recitando Bukowski
Numa rebeldia ensaiada
E um inglês mediano

Ele é bom demais para ler Bukowski em português
E eu gosto disso nele

I will never see it again

Acordei, atrasada 
E mole
Atrasada e sem pressa
Atrasada e de garganta mais arranhada do que um disco velho

Acordei e permaneci de olhos fechados

O pensamento foi logo nele

Meus dedos tatearam
Alcançaram o maço
de cigarros
Instintivamente, sacaram um
Levaram-no à minha boca
E o acenderam com o
Isqueiro vermelho

Meus lábios semicerrados tragaram com fúria teatral
Aprendi com ele

Jeff Buckley começou a gemer

Don't fool yourself

No quarto fechado
Janelas fechadas
Cortinas fechadas
A fumaça se instalou, primeiro na minha garganta dolorida
Então
Invadiu meus pulmões
Meus cabelos
Minhas roupas
E meus livros
Como ele

É câncer.

terça-feira, 7 de maio de 2019

a solidão da pessoa gorda


   Quando se fala em solidão da pessoa gorda, a primeira, e geralmente única coisa que abordam, é a afetividade no sentido romântico. Esse é um aspecto urgente e cruel da nossa solidão, mas não é o único, especialmente para quem foi uma criança e/ou adolescente gorde.
   Tudo começa dentro de casa, com a rejeição de pais ou responsáveis que ridicularizam crianças gordas sempre que têm uma chance, fazendo-as sentir culpa ao comer, desencorajando-as em todos os sentidos, mas especialmente, reafirmando a lógica do "você não tem corpo para isso" e "a culpa é sua, que não se esforça para emagrecer", ou ainda, comparando-as a todo momento com outras crianças, seja irmãos, primos ou colegas. Isso não só afeta a auto-estima estética e intelectual dessas crianças e adolescentes, como gera o sentimento de competição e até mesmo rancor em relação a quem está sendo usado como "exemplo", levando a rivalidade permanente entre irmãs/irmãos e primas/os.
   É muito triste quando as pessoas que mais deveriam te amar, incentivar e proteger, te negam afeto e só têm coisas ruins para dizer sobre você e o seu corpo. Isso gera uma distância emocional que com o tempo é impossível de transpor, o que causa isolamento familiar e afeta toda a vida desses indivíduos, em particular a forma como se relacionam com as outras pessoas e com o mundo.
   Para além disso, uma criança gorda é excluída de brincadeiras e repelida de grupinhos, seja na escola ou em ambientes recreativos. E mesmo crianças sofrem com a falta de acessibilidade. Enquanto criança gorda, muitas vezes me impediram de usar brinquedos de festas ou parques porque "não suportariam meu peso", ou porque de fato meu corpo não se encaixava nos mesmos. Então eu ficava de lado, enquanto as outras crianças brincavam e criavam laços.
   Isso sem contar as piadas e agressões físicas. Crianças muitas vezes conseguem ser mais cruéis do que adultos, ainda mais porque têm permissão social para sê-lo. Os adultos veem o comportamento tóxico de crianças, e ao invés de repreender, acham "engraçadinho", "bonitinho", "coisa de criança".
   Não sendo ensinadas a respeitar as diferenças, crianças entram na adolescência sem um pingo de empatia.
   Adolescente gorda, eu fui rejeitada não apenas por pessoas que eu tinha interesse romântico, mas também pelas pessoas que me criavam, pela minha família estendida, e pelos grupos de meninas. Tive que atravessar todas as mudanças do meu corpo e da minha psique sozinha, tentando descobrir o que era normal e o que não era, e como me portar diante de tais mudanças.
   Eu era a única gorda em uma sala cheia de meninas que praticavam a feminilidade padrão, e para piorar, era dois anos mais velha do que elas. Em alguns momentos elas até me permitiam fazer parte do grupo, mas no primeiro desentendimento que tinha (mesmo quando eu não estava envolvida na briga), eu era a primeira a ser excluída, ou obrigada a tomar partido, sob pressão, pois independente de quem eu escolhesse, seria "punida" quando elas voltassem a se falar.
   Eu era a pessoa que as ajudava nos deveres de casa, cedia minha casa para elas ficarem com meninos que haviam me rejeitado (e elas sabiam), e até vigiava o portão para garantir que suas mães não as pegasse fazendo isso. Eu era a pessoa que escrevia poemas apaixonados para elas entregarem para os namorados. Eu tirava fotos delas, nunca aparecendo nas mesmas. Era a pessoa que ouvia e nunca era ouvida. Nunca fui a melhor amiga. Nunca era convidada para as festinhas e passeios, nunca era escolhida nas atividades de educação física.   Mesmo depois, já no fim da adolescência, ou mesmo nos primeiros anos da vida adulta, eu era a pessoa que garotas usavam para se sentir melhor sobre seus próprios corpos, para silenciar suas inseguranças. As observava se olhando no espelho, erguendo a blusa e apertando gorduras inexistentes, enquanto diziam "nossa, eu estou tão gorda! Olha isso!", e então me olhavam furtivamente. E, inevitavelmente, quando eu as irritava de alguma forma, ouvia que elas nunca gostaram de mim mesmo, e que eu não passava de uma "gordona do caralho". Isso fez com que eu me distanciasse de mulheres.
   Ao longo da vida tive vários amigos homens, e vale ressaltar que só tenho irmãos. Me masculinizei para "ser um dos caras", e assim ser aceita. Mas tais amizades também me traziam solidão, pois as vivências divergiam muito. Eles não eram capazes de entender muitas das coisas que eu vivia. Além disso, os via idealizando mulheres magras, padrão, "femininas", tudo que eu não era, sabendo que aquele era o pensamento coletivo, o que reforçava a minha certeza de que eu nunca seria amada, por não ser como essas garotas que eles queriam. Também era excluída de situações que eu não era "masculinizada o suficiente" para participar, e os via frequentemente constrangidos quando alguém achava que tínhamos envolvimento amoroso ou sexual.
   Há também a solidão de nunca ver pessoas como nós nos ambientes que frequentamos, ou mesmo na mídia. Não porque existam poucas pessoas gordas no mundo, mas porque somos invisibilizados, expulsos dos ambientes, e dessa forma poucos ousam sequer sair de casa para ocupar tais espaços.
   Essa dinâmica nunca muda. Os anos passam, as figuras mudam, mas a forma que a pessoa gorda é tratada por quem a rodeia permanece.
   No ambiente de trabalho, quando conseguimos emprego, temos que lidar com superiores hierárquicos e colegas de trabalho que continuam nos usando para se sentir melhor consigo mesmos, e agora, não podendo usar de violência física para nos agredir, abusam de um comportamento passivo-agressivo e criam um meio tóxico, sempre dando dicas de dieta, fazendo "piadas" e recriminando nossos corpos. Se reclamamos, estamos exagerando.
   Não encontramos apoio familiar, nem de amigos, e muito menos apoio profissional, já que psicólogos também recriminam nossos corpos.
   Uma pessoa gorda tem, por fim, toda espécie de afeto negado, ou no mínimo limitado. A solidão da pessoa gorda é a solidão no sentido mais pleno da palavra. É tão grande, que se torna tangível... fisicamente dolorosa.

quarta-feira, 1 de maio de 2019

eu prometi que esse seria o último maço

Minha cabeça está cheia
Meu coração também
Meus pulmões estão cheios
O cinzeiro está transbordando


Eu estou poluída
Por você

Feito fumaça
Tu entra
Se instala
Em todos os espaços

Você some
Mas teu cheiro fica
O gosto fica
A necessidade fica
O veneno nunca sai

Dos meus prazeres nocivos
Você é o pior

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

humana

   Eu sei que você não deve mais pensar em mim, mas eu penso em você todos os dias que estou acordada. Fico parada no escuro, no silêncio, a pele eriçada pelo pensamento do abraço que você me prometeu. E nos dias que escolho não despertar, eu sonho com você. Nós dois juntos na cama, lendo poemas entre um beijo e outro. Lábios explorando pintas.
   Ainda fico tentando imaginar seu cheiro e a textura da sua pele. A imagino quente e macia, e chego a sentir, de um jeito muito abstrato, o conforto do seu corpo no meu.

   Ouço músicas que me fazem pensar em você, mesmo sabendo que você não gostaria delas, e penso em todas as coisas que poderiam ter sido e nunca serão...
   Vejo você surgindo um dia, mesmo que leve muitos anos, e dizendo que agora é diferente. Eu sei que é bobo, e eu sei que você nunca vai surgir dizendo isso, mesmo que as coisas sejam diferentes! Imagino você racionalizando e escolhendo me ignorar.
   Toda vez que acendo um cigarro eu lembro da sua voz e dos seus lábios se movendo, ... e agora foram muitos cigarros.
   Às vezes eu estou na rua, na fila do ônibus ou numa livraria e vejo mãos parecidas com as suas... Minhas pernas fraquejam. Sinto um nó na garganta. Lembro dos seus dedos segurando cigarros e os tragando, daquele jeito encenado que me cativou. As lágrimas surgem e ficam presas nos meus olhos até que eu inevitavelmente pisque, então elas escorrem, um filete de cada lado, inundando meu rosto e indo parar no meu peito. 
   E às vezes eu lembro da sua risada, ao lado da sua namorada, e novamente sinto aquela sensação. Minha pele sendo arrancada do meu corpo.
   Eu só queria que você soubesse.


domingo, 11 de novembro de 2018

previsão

Minha mãe me disse
Um dia você vai ser como eu
Sozinha
Com um monte de filhos
Vai saber o que é sofrer
Você vai me entender

Eu tinha dez anos
Coisa estranha de se dizer

Passei a vida fugindo
Da sina
Do destino
Da repetição

Eu não queria ser ela

Sempre fui sozinha
Especialmente quando me via acompanhada

Não tive filhos
Mas descobri o que é sofrer

Aos vinte o entendimento veio
De forma súbita

Não justifica.

28. Estou salva.
Sou diferente.

Até que ele apareceu,
Me fez como ela

Me fez ser a outra
Assistindo a intimidade
De fora

Intocada.

Me fez ser a outra
Como minha mãe

Ele me fez cair
Ele completou o meu destino

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

a doença

Tem dias que o impulso é
Destruir

Lugares
Coisas
Pessoas

As propriedades
Os Proprietários
O que não tem dono

Destruir o Mundo
Da mesma forma que ele me destruiu

Destruir
-
Me

Eu posso jogar as lâminas fora
Cortar minhas unhas bem curtas
Trocar o álcool por água
Não comprar cigarros
Eu posso me achar bonita
Colocar as melhores roupas

Eu posso sorrir
E gargalhar

Posso inventar novos métodos

E as pessoas ainda vão dizer
Seus olhos são vazios

A Destruição está dentro de mim

Nas relações que eu vivo
No meu jeito errado de amar
Na esperança de ser correspondida
Na bagunça do meu quarto

Lágrimas, olhos vermelhos,
A música tocando

A Doença
Não me deixa
Viver

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

auto-conhecimento

   Não dormi, mas comecei o dia gargalhando. Seis horas da manhã e minha risada alta preenchia meu quarto, provavelmente se fazendo ouvir fora dele. Ri tanto, que a minha barriga começou a doer, enquanto as lágrimas escorriam pelas minhas bochechas e embaçavam meus óculos. Eu tentava não rir, porque o motivo do riso desenfreado era a desgraça de algumas pessoas que caíram com a freada violenta de um ônibus. Parava por alguns minutos, segurando o riso com a consciência pesada, mas depois não aguentava, e o ritual descontrolado recomeçava.
   Ouvi os passos em frente à janela do meu quarto. Ouvi minha avó na cozinha, senti o cheiro do café. Eu não tomo café, mas devo admitir que o cheiro de café, especialmente pela manhã, aguça alguma coisa boa dentro de mim.
   Entre o riso e o silêncio culpado, ouvi o barulho das xícaras na cozinha, e o som de pessoas cochichando. Tentei ouvir o que diziam, mas não deu.
   Eu ainda estava indecisa se deveria ir à consulta com a psiquiatra ou não, mas pensei: "ainda tenho bastante tempo", e depois me ocorreu que é justamente quando eu tenho tempo de sobra que me atraso. Eu me conheço, estou sempre certa. Me atrasei, depois de colocar uma roupa qualquer e sair correndo, de cara lavada, na chuva que tornava o chão escorregadio sob o meu all star velho demais para ter algum efeito anti-derrapante. Quase escorreguei algumas vezes. Teria sido um belo castigo, ser filmada escorregando para abastecer o riso de alguém depois, na internet.
   Mas não caí. 
   Cheguei ao posto de saúde, tirei os óculos escuros respingados da chuva, e peguei a senha eletrônica. Agora tem isso lá, e eu me sinto de alguma forma traída por esse avanço tecnológico. Tira o aspecto familiar da coisa. 
   Mais traída ainda me senti quando minha senha foi chamada, e a recepcionista não lembrou meu nome. Ela me olhou, olhou para a tela do computador por uns segundos, e me olhou de novo, soltando um odioso: "esqueci seu nome...". Ela me conhece há dez anos. Eu sei o nome dela e de todas as pessoas no posto de saúde. Aos poucos, eles esquecem o meu. 
   "Cíntia, prontuário 19-119".
   Enquanto esperava, irritadiça pela noite não dormida, observei as pessoas passando. Auxiliares de enfermagem, as moças da limpeza, o pessoal da administração, e as agentes de saúde. Recebi dois abraços genuínos, fortes, e muitos sorrisos amarelos: "você anda sumida!". Eu sempre busco amor nos lugares mais improváveis.
   O posto está cheio de enfeites florais feitos de papel crepom; dois tons de rosa e um branco, para a campanha de prevenção de câncer de mama. Fiquei com vontade de roubar alguns dos enfeites, colar na parede do meu quarto. Eu sou assim. Uns anos atrás roubei um dos enfeites da já precária árvore de natal do posto de saúde, porque eu preciso ter esses souvenirs para me lembrar dos momentos. Para tornar as minhas memórias tangíveis. Ou para manter a ilusão ativa.
   Pensei em todos os anos esperando por aqueles corredores, vendo as pessoas passando e preocupando-se comigo. Pensei nos meus professores do ensino fundamental. O meu sentimento era o mesmo por ambos os ambientes e seus habitantes. O mesmo amor por pessoas que são pagas para notar a minha existência, e que esquecem do meu nome assim que o meu caso deixa de ser prioridade em suas mesas.
   Comecei a andar de um lado para o outro, inquieta com a demora. Apertei o aparelho de álcool gel, mas não saiu nada, como sempre. Tem uma mesa no corredor, ao alcance dos pacientes, e eu sempre me perguntei o que tinha naquelas gavetas, sem coragem de abrir para ver. Olhei para os dois lados do corredor cheio de pacientes cuidando de suas próprias dores. Abri a primeira gaveta, e, adivinha só, não tinha merda nenhuma. Foi o suficiente para acabar com qualquer traço de tesão detetivesco.
   Me pus a ler os cartazes de prevenção de câncer de mama, e depois o mural cheio de post-its com mensagens "motivacionais". Cuide-se!, dizia um dos post-its. Ame-se! A vida importa! AUTO-CONHECIMENTO! Eu nunca fiz o auto-exame. Pensei em roubar um ou dois, quem sabe três post-its rosa choque. Mas talvez a mensagem fizesse falta para outras pessoas. Eu sou hipocondríaca. Quando eu penso em fazer o auto-exame, penso na possibilidade de encontrar um nódulo, e começo a surtar. A bem da verdade, se eu procurasse eu provavelmente encontraria mil nódulos, a minha ansiedade os colocaria ali.
   Eu me conheço, mas às vezes não quero conhecer demais. Pensei nas minhas seguidoras.
   A psiquiatra me chamou. Ela não lembrava exatamente sobre o meu caso, ficou lendo por cima as páginas do meu prontuário, me fazendo as mesmas perguntas mil vezes, e eu as respondia, sentindo a exasperação crescer. É como se ela não ficasse contente com as minhas respostas, então continuasse perguntando para ver se eu as mudava. Você está pensando em suicídio, ou está planejando suicídio? Qual é a merda da diferença? Perdi a calma com ela, e me arrependi em seguida, porque apenas parte da minha exasperação era pela condescendência dela, a outra parte era pela noite não dormida. Eu sou como uma criança que vai ficando rabugenta à medida que o sono chega, e que precisa deitar e pegar no sono assim que esses momentos batem.
   Ela continuou fazendo as mesmas perguntas e as mesmas propostas. Eu parei de responder, adotando a tática de simplesmente encará-la. Ela continuou na expectativa de uma resposta, e eu continuei oferecendo silêncio, sabendo que meus olhos estavam tão vazios quanto às vezes me acusam.
   Foi uma consulta absurdamente longa, em que nada foi abordado. A minha impaciência crescente, louca para sair dali. Comecei a concordar com ela, era o único passaporte para a saída daquele lugar. Funcionou. Até mais, Cíntia. Obrigada. Tchau.
   Peguei meus remédios, não tinha todos. Estava exausta. Passara horas ali, e a consulta com a psiquiatra no fim me deixou pior do que quando eu cheguei. Com os bolsos da jaqueta jeans molhada cheios de remédios, coloquei os óculos escuros e saí. Eu não suporto claridade, especialmente quando não durmo.
   Ia chegar em casa, tirar toda a roupa e me jogar na cama ao som de Florence + the Machine. Isso não aconteceu. Enrolei o dia inteiro, cansada, sem fazer nada, sem ter noção de como as horas passaram. Dava tempo de ir pro curso ainda, mas eu simplesmente não teria energia física ou intelectual para acompanhar a aula.
   No fim da tarde eu tirei as roupas ainda molhadas, e deitei, cobrindo a cabeça. Meu corpo começou a pesar, minha mente começou a desligar, e o celular apitou. Relutei por alguns momentos, mas descobri a cabeça e estiquei o braço, pegando o aparelho.
   Era ele. Meu coração acelerou. Ele gostou da minha foto de 4. Instigada, minha mente acendeu, voltou a funcionar a todo vapor. Minha buceta a acompanhou. Em alguns minutos ele conseguiu me fazer esquecer da mágoa de situações anteriores, do sono, do cansaço, da exasperação, e tudo isso deu lugar a um tesão violento, que provocava ondas de prazer pelo meu corpo sem que eu ao menos me tocasse. 
   Eu te quero. Você me faz sentir um tesão desmedido. Seu pau está pulsando? Quero me esfregar em você. Imagina, imagina, imagine! Imaginei o coturno dele pressionando meu corpo, me imobilizando contra a parede, deixando as marcas da sola na minha pele. Estava molhada novamente, mas dessa vez não era culpa da chuva, que ainda batia  contra a minha janela.
   E as mensagens começaram a ficar mais espaçadas... 
   Ocupado.
   Ok...
   Abri as pernas, coloquei os dedos para trabalhar, imaginando. AUTO-CONHECIMENTO!
    Os dedos deslizando com facilidade. AUTO-CONHECIMENTO!
   Me esparramei na cama, me desfazendo entre os lençóis e cobertas. AUTO-CONHECIMENTO!
   Soltei gemidos e suspiros... AUTO-CONHECIMENTO!
   A atenção dele nunca é só minha. Eu sempre tenho que dividi-la com outras pessoas, com outras coisas.... AME-SE!
   É só sobre ele. O prazer dele, o sentimento dele, o momento dele, a vida dele. Ame-se ame-se ame-se ame-se ame-se ame-se ame-se, AME-SE, porra!
   Tomada pelo tesão e pela tristeza de uma só vez, comecei a chorar enquanto me tocava, enquanto os dedos entravam em saíam, e o tesão começava a ser vencido pela tristeza. O som do meu choro preencheu meu quarto, talvez se fizesse ouvir lá fora. Chorei tanto, que a minha garganta começou a doer, as lágrimas escorrendo em abundância pelas laterais do meu rosto. Parava por alguns segundos, mas depois não aguentava, e os soluços convulsos recomeçavam. No escuro, no silêncio.
   Os dedos desistiram. Fechei as pernas, deitei em posição fetal e cobri a cabeçaEu sempre busco amor nos lugares mais improváveis. Chorei tanto, que dormi. Por dois dias.

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

você... ou eu

Comprei um maço de cigarro
Fazia sentido...

tirei o lacre

Talvez um dia alguém sinta conforto em mim
no cheiro 
das minhas roupas
dos meus cabelos

Talvez algum dia eu encontre conforto.

Ontem pouco me bastou
Enquanto garoava na minha cabeça
E as gotas, junto à fumaça, embaçavam meus óculos.

Hoje, nada.

Mas
Eu vou te encontrar
Na ponta de cada cigarro que eu fumar
Vou sentir seu beijo
Em cada tragada que eu der
Vou ver seu rosto
Em cada massa abstrata de fumaça que eu soltar

Minha voz ficará menos suave
E em cada verso que eu declamar
Eu vou lembrar da sua rouquidão...

"If I never see you again..."

Quando eu me tocar
Os meus dedos terão o cheiro dos seus dedos
Vai se misturar ao aroma do meu sexo

Levarei meus-seus dedos aos lábios
Vou fechar meus olhos...
Fingir que são suas, as digitais adocicadamente ásperas na minha língua

Sua existência vai resistir

Nos meus pulmões

Eu vou ficar sem ar
Toda vez que o seu nome vier à tona

E quando eu estiver quase morta
Será você o meu câncer
De alma

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

urbana

Vagando por essa cidade caótica
Eu vejo você

Nos olhares infantis
No vento cheio de poluição que espanca minha pele
No cheiro dos cigarros acesos
No meu próprio caminhar,
Refletido nas portas espelhadas de edifícios instáveis

Parada no ponto de ônibus 
Eu
Sinto você
Quando toco as pérolas pendendo do meu pescoço
E te imagino, me puxando
Para muito perto

Violência, necessidade

O colar partindo
As bolinhas marfim rolando
... Para dentro do esgoto.

Eu não ligo.

-- 

Sentada à janela
Eu ouço você

Enquanto aproveito o balanço
Para...
...

Meu corpo arqueia
Um gemido rebelde se faz ouvir
Me olham
Minhas bochechas não coram

A dor é iminente

Mas eu acho que todo mundo deveria acordar atordoado
Às quatro horas de uma tarde
Ao som de um poema recitado

Todo mundo deveria se perder,
Uma vez ou outra

Eu me perco na constelação do seu corpo.

terça-feira, 7 de agosto de 2018

pai


Nós não temos que ser fortes sempre. E chorar não é demonstração de fraqueza.
Eu cresci num impasse. Por um lado sabendo que meu pai é, no mínimo, um pai ruim, mas por outro, consciente de que poderia ser pior. O pai de uma amiga minha, policial, a estuprava à mira de arma de fogo. Perto do pai dela, o meu pai é um amor de pessoa. Mas analisado sozinho, o meu pai continua sendo um pai de merda. E eu nunca me senti no direito de falar muito sobre isso, porque poderia ser pior. Certo?
Se você visse o Facebook do meu pai, ou o conhecesse pessoalmente, teria a imagem de um cara bacana. Ele fala de forma baixa e suave quando conversa com as pessoas de fora. Conhece palavras bonitas, sabe se expressar, é antenado, e de certa forma culto... Politizado e basicamente militante de esquerda, "apoiador" de todas as minorias. Nos bastidores, entretanto, ele mesmo zomba de tanta demagogia. Zomba do gay, humilha o "servente", ameaça esquartejar a própria esposa, acha que os sentimentos das pessoas têm valor monetário, e acima de tudo, ele não tem um pingo de amor para oferecer a quem quer que seja.
Aprendi a não confiar nos homens, tendo-o como pai. Vendo-o agredir meu irmão, física e verbalmente, de forma consistente, enquanto crescíamos. Não o tapinha "disciplinatório". Porrada. Meu irmão sendo seu saco de pancada particular. Foi uma vida ouvindo-o dizer que toda mulher é vagabunda, enquanto traía suas ex-parceiras e gritava com a própria mãe. Tudo na encolha. Tudo sem projetar para o mundo essa realidade. É muito difícil ter auto-estima, crescendo com pais abusivos, e isso não me faltou.
Eu tento manter a paz, apesar das mágoas. As coisas estavam indo bem: mal nos falávamos desde o último incidente, o qual terminou com ele trancando minha madrasta e meu irmão de 9 anos num quarto, sob ameaças. Quando acontecia de nos vermos, conseguíamos manter a cordialidade. Deliberadamente, eu passo muito tempo no meu quarto e evito aparecer na frente dele. Essa noite isso não foi possível. Eu saí do meu quarto ao mesmo tempo que ele saía de sua casa (moramos no mesmo quintal), e quando nos vimos, através de um portão, eu percebi na hora que ele estava virado no capeta, e pronto para descontar em alguém. Geralmente, quando ele entra nesses transes, vai para o seu carro e fica lá. Hoje eu estava no lugar errado, na hora errada, entre ele e o carro, e fui o alvo perfeito. A coisa toda foi surreal. Ele entrou na casa da minha vó - onde moro - e começou a gritar comigo sobre louças que eu não lavo. Eu disse para ele parar de gritar comigo e descontar a raiva em outro, ao passo que ele começou a gritar mais ainda, se aproximando ameaçadoramente. Eu não sou o tipo de pessoa que abaixa a cabeça, então sustentei o olhar, ainda pedindo que ele parasse de gritar. Os pedidos o fizeram gritar mais ainda, histérico como sempre. Quebrei um prato. Eu odeio gritos. Odeio que gritem comigo, especialmente se eu não fiz nada para merecer tais gritos. Gritos ativam em mim, ao mesmo tempo, fúria e medo. O enfrentei. Ele veio pra cima. Ameacei denunciá-lo, ele veio MAIS pra cima.
Enquanto gritava NA MINHA CARA, a saliva atingindo meu rosto, eu via o quão feio ele é. Quão frágil. Quão grande ele se acha. Vi, na mesma proporção, ódio e vazio nos olhos dele. Vi o que eu sempre tentei não ser, o que eu não quero me tornar, apesar da vida me jogar nessa direção!
Quando a mão dele atingiu meu braço, a minha mão atingiu o braço dele, e ali, eu era novamente a adolescente de 14, tendo que sair na mão com o próprio pai para se defender, mais moralmente do que fisicamente. Mas eu não tenho mais 14 anos, tenho 28. E eu definitivamente aguento porrada. Os tapas e socos vieram. As pancadas em si não significam nada. O impacto de verdade, a maior porrada que ele pode me dar, ele já deu tantas vezes, em forma de palavras e ações, que me agredir fisicamente agora, depois de todos esses anos, não representa muita coisa.
Não tenho hematomas para deliciar essa rede social. Ele só bateu o suficiente para se firmar enquanto macho. Se os hematomas vierem, não vão chegar perto do hematoma emocional permanente que ser filha dele me causou.
Aí as pessoas me perguntam "por que ele te bateu?", e eu lembro que quando eu tinha 13 anos, ao descobrir que eu me cortava, ele me deu uma dessas surras épicas, com direito a socos na cara e boa parte do meu corpo coberto de HEMATOMAS. Porque ele sempre quis passar a ideia de que eu pertenço a ele, como um objeto comprado. Eu cheguei na escola roxa, com um pulso enfaixado, e me perguntaram "porque ele tinha me batido". Disseram, como dirão agora, que "alguma coisa eu fiz". Quando um homem bate em uma mulher, seja ela adolescente ou adulta, seja o homem seu pai, namorado, marido ou irmão, e mesmo quando eles estão completamente sozinhos, a sociedade inteira está sendo cúmplice. Porque homens e mulheres são criados para achar que esse tipo de coisa é normal, e dependendo da situação, completamente justificável.
Essa noite eu tive mil gatilhos ativados, fui exposta às minhas inseguranças, procurei as pessoas "mais próximas" e não encontrei ninguém. Chorei e me expus ao ridículo. Eu quis MUITO me cortar, eu quis bater a cabeça na parede de tanta raiva, eu quis sair e beber até cair, ou arrumar alguém para transar e me sentir tão imunda quanto meu pai acha que eu sou... lembrei que nada nessa vida realmente importa. Eu pensei em me matar. Essa noite eu resisti aos meus instintos.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

inteira

   Quando eu me dou para as pessoas, elas nunca me querem inteira. Me querem fragmentada. Eu sou um ser humano completo, com desejos e sentimentos que por vezes  parecem não caminhar juntos, mas que são os mais sinceros que alguém pode oferecer...
   E isso é inaceitável para elas. Querem apenas o que fica entre o bom e o sofrível, quando, ao contrário, eu ofereço excelência. O mundo que existe dentro de mim — esse solo nunca explorado. Eu ofereço mais do que o suficiente. Ofereço uma viagem completa e louca.
   Mas não. Querem que eu escolha uma só fantasia e nunca me dispa dela. Ser a irmã ou ser a puta. Ser a amiga ou ser a amante. Ser fofa ou ser safada. Eu quero ser tudo, quero ser plena. Nós não precisamos seguir uma linha reta, e por que você está tão assustado?
   Eu acordei e estava contente. Mas o contentamento durou pouco e foi engolido pelo buraco negro que habita minha alma. As lágrimas rolaram sobre o travesseiro ao qual eu durmo agarrada, fingindo que é o seu corpo entre meus braços, seu peito sob a minha cabeça...
   O desejo era latente no espaço mais íntimo do meu ser; o desejo de te adorar e ser adorada na mesma proporção; tocar todos os espaços que existem em você e ser tocada como nunca antes... E que ilusão é essa! Desejo que nunca alcanço...
   Brinquei com a possibilidade de te ligar, eu diria: "te quero! e você? algum pedaço de você me quer?"
   Mas eu quero que você me queira por inteiro também...
   Se não te ligo, se não te pergunto e permaneço esperando, é porque sei o que ouviria.
   Então eu me atiraria em direção a um penhasco ou de outros braços: dá na mesma.



segunda-feira, 27 de novembro de 2017

sabiás

   Você ainda estava aqui, as coisas estavam só começando, mas eu já sabia qual era o gosto do seu descaso. Você se demorava. Eu te esperava, mergulhada em ansiedade. 
   A espera crescia e se transformava em angústia, a qual acabava sempre em revolta. Algo dentro de mim se contorcia com violência, querendo me rasgar, se expulsar de mim com a urgência de uma criança prematura. 
   Eu colocava as músicas mais tristes que conheço para tocar, tirava minha camiseta; a pele eriçada e a garganta pulsando loucamente pelo que estava por vir. Então o cabo USB, dobrado em dois, estralava nas minhas costas. Eu me açoitava com a máxima força que um ser humano é capaz de açoitar a si mesmo, uma vez, duas, três, outras tantas, até cair curvada sobre a cama, sobre mim mesma, a dor latente e a respiração ofegante pelo esforço. Carrasca de mim mesma. 
  Depois permanecia inerte por longos minutos, a respiração ficando suave até quase se extinguir. As costas em chamas e as lágrimas fartas entrando nas minhas narinas e boca. Eu me perguntava o que havia de errado comigo... Como eu podia fazer aquilo? Como eu pude desperdiçar a minha vida inteira ferindo o meu próprio corpo para demonstrar o quanto as pessoas estavam me ferindo por dentro?
   Tudo o que eu conheço desse mundo é a dor que ele produz. Respirar me machuca.
   Você riu e disse que eu deveria te chamar quando sentisse vontade de me açoitar, que você o faria por mim.
   Agora, quando eu penso nas suas palavras vazias, eu penso em toda a violência que existe dentro de mim. Penso em te ferir, te fazer sangrar, em me ferir, em me fazer sangrar. Mas a bagunça seria tão grande, que deixo o tumor da sua existência ferver e crescer dentro de mim... Por enquanto. 
   São três horas da manhã. Não há nada para me distrair dessa agonia de existir. Eu fumo um cigarro a cada vez que penso em você. São muitos cigarros. Tomo algumas doses de conhaque para acompanhá-los, para passar o tempo, para conseguir dormir.
   Os sábias paulistanos também estão acordados.
   E você, anda dormindo bem?
   O problema são as pessoas. O ser humano só sabe fazer zona no mundo, na cabeça uns dos outros.
   Eu queria reunir todos os sabiás dessa cidade e propôr uma fuga em bando. Voaríamos bem alto, para muito longe. Para algum lugar em que nada mais existisse — um lugar onde pudéssemos dormir como os membros sadios de nossas espécies.

sábado, 11 de novembro de 2017

justiça


   Mesmo com todo o meu pessimismo, eu sempre procurei acreditar que as coisas têm uma ordem. Que a vida é feita de ação e reação, e isso me fez relevar, de certa forma, todas as maldades que me impuseram. A esperança de que um dia o mal voltaria para essas pessoas me servia de consolo. A expectativa de que um dia eles receberiam um pouco do próprio veneno me fez aceitar a forma como a minha vida transcorreu. Isso me torna uma pessoa ruim? Querer que as pessoas que me fizeram mal também sofram? Ou me faz conformada, por esperar que a vida se encarregue de me dar "vingança", ao invés de eu mesma buscá-la?
   Um dia, muito tempo atrás, um cara, cansado de me ver sofrer e definhar, me propôs: "você quer que eu mate o seu tio? Se você quiser eu mato. Dou um tiro nele". E eu sei que ele o faria, ele era esse tipo de pessoa. O amei por isso, mas não pude aceitar. Eu tinha 16 anos, cheia de ideais, e matar alguém, ou ordenar a morte de alguém, ainda me era uma coisa incabível. A minha consciência não me deixaria em paz. Eu preferi continuar definhando e esperando que a vida agisse.
   Não se trata de vingança, se trata de justiça. Sim. Eu, logo eu, fui tola o bastante para acreditar, por 27 anos, que pode haver alguma justiça nesse mundo fodido! Mesmo o mundo me mostrando consistentemente nas manchetes de jornais, nos relatos de amigos e na minha própria vida que a justiça é uma utopia. Eu acreditei. Aposto que por essa vocês não esperavam!
   Mas hoje a verdade me atingiu no meio da fuça. Surgiu feito um raio, quando eu menos esperava: não existe justiça. Não há divindades, não há karma, não há energia, não há um sistema cósmico para honrar quem quer que seja...
   Eu luto todos os dias. Luto para continuar viva e para manter minha sanidade. Luto mais do que qualquer pessoa poderá imaginar, mais do que todos pensam. Luto contra mim e por mim, enquanto as pessoas que deram vida e alimento aos meus demônios seguem suas vidas tranquilamente, sempre adiante, sempre prosperando, dormindo feito bebês; enquanto eu não consigo pregar os olhos, com medo das lembranças e indignada enquanto minha vida se esvai.
   Não existe justiça.
   Eles estão sempre felizes, e eu sinto essa angústia que dilacera minha alma.
   Não existe justiça.
   Eles conhecem o amor de uma forma que nunca me será permitido.
   Não existe justiça.
   Eles não se sentem sozinhos ou abandonados nunca.
   Não existe justiça.
   Eu tento ser boa.
   Não existe justiça. E o que eu faço com isso?
   Se não existe justiça, como eu posso continuar lutando, com que forças?
   Não existe justiça. A vida e uma questão de azar ou sorte, tudo da forma mais aleatória possível. Talvez eu devesse arrumar uma arma, no fim das contas, e resolver a questão eu mesma. Porque não existe justiça, e nada mais importa.

"Nem todas as flores têm a mesma sorte,
umas enfeitam a vida e outras enfeitam a morte"   

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

caixas


   Pedi um tempo do trampo. Todas as cobranças, a ingratidão e a incerteza do que vai acontecer entre um mês e o outro estava me atordoando. Eu não sei viver sob pressão. Simplesmente não consigo, algo dentro de mim fica inquieto e não me deixa em paz. Não durmo, não consigo me concentrar, fico desgastada e como demais ou deixo de comer por completo. Eu consigo sentir o peso da atmosfera, dessa coisa abstrata e incorpórea me esmagando fisicamente, me fazendo ficar com as costas e os ombros curvados. Então eu pedi um tempo. Não sei quando volto. Pode ser amanhã ou pode ser daqui uns meses. Talvez nunca mais.
   Tudo que eu fiz por enquanto foi dormir e tentar ler um livro. Mas estou presa na página 35 e não consigo seguir adiante. O autor é muito prolixo (logo se vê, pois o livro tem 576 páginas). Em alguns momentos prende minha atenção e eu penso: "agora vai", e em outros ele me perde completamente, descrevendo coisas irrelevantes para a história que está tentando contar, ou repetindo pensamentos que já foram estabelecidos. Os autores não entendem que primeiro você tem que fazer o leitor se importar com os personagens, seja através do carisma, da repulsa, ou da admiração, mas algo tem que ser o bastante para alimentar a curiosidade, para fazer com que o leitor tenha disposição para virar a página. E depois, APENAS depois, eles podem se demorar por páginas e páginas descrevendo-os fazendo coisas insignificantes (mas deveriam evitar isso, deixar algumas coisas para a imaginação). Enfim, as coisas têm uma ordem. Não me interessa ler sobre personagens que eu não conheço, e por enquanto os personagens em si mal apareceram, são páginas e páginas de divagações de um protagonista invisível.
   E eu sou uma protagonista invisível, sempre divagando, por isso ninguém me lê.
   Essa tortura literária talvez me caiba perfeitamente, porque apesar de tudo, estou me sentindo culpada por ter cedido e pedido um tempo. Não pelos meus irmãos, que não tiveram consideração comigo, mas por mim mesma. Tenho medo de me tornar mais irrelevante, de não me deixarem voltar, visto que a intenção deles já era me demitir.
   Não posso me divertir muito. Tenho evitado ouvir música. Esse tempo que eu tirei não é para que eu me divirta, é para que eu fique na minha, para que eu pense no que tenho que fazer a seguir. Se eu me mato ou se prossigo nessa existência burocrática, sem sentido, sem carinho, sempre trancafiada entre 4 paredes, em uma casa ou outra.
   O Junior veio aqui no sábado, e sabendo que eu me cortei, me disse: "uma criança fazer isso tudo bem, mas você já é adulta! Já devia ter estabilidade emocional para lidar com os problemas da vida". E o que eu posso responder? O que ele espera que eu faça com isso? Ele acha que vai me curar com tais palavras, que subitamente eu vou ter o que é necessário para viver nesse mundo que me mastiga e me engole, pedaço por pedaço, dia após dia? E que direito ele tem?! Ele, que não sabe mais nada a meu respeito, que mal me viu esse ano! Que não está dentro da minha pele para saber como tudo isso está me matando da forma mais cruel e dolorosa possível!
   Quanta tortura emocional uma pessoa consegue aguentar calada, contando apenas consigo mesma...?
   Estou tomando os meus remédios e tenho permanecido em silêncio absoluto, pensando, pensando, pensando. Penso no Emanuel e nos caras que vierem depois dele. Nos padrões que eu caio. Penso no meu passado e em todas as coisas que eu quero. Penso em tudo que é inatingível, e às vezes me dá muita raiva. Penso em espaços fechados.
   Penso que todo mundo gosta de espaços pequenos, mesmo quem se acha tão selvagem e acima dos engravatados. O mundo é tão grande, mas as pessoas criam limites e barreiras e constroem caixas para viver, para se locomover, para os seus momentos de lazer. As pessoas trabalham dentro de caixas, comem dentro de caixas, fodem dentro de caixas, e usam caixas menores para distrair suas mentes, que também são como caixas muito, muito pequenas. Elas não são tão diferentes de mim. Eu apenas permaneço dentro de uma só caixa por longos períodos de tempo, enquanto elas transitam entre uma caixa e outra. E mesmo quem compra mansões, provavelmente vive a maior parte do tempo em um dos cômodos, o quarto ou a sala ou a biblioteca, atrás de portas fechadas.
   E eu sei porque nós gostamos de espaços pequenos. Nós viemos de um espaço pequeno, o útero. E quando fomos jogados nesse mundo tão imenso, fedorento, barulhento e cruel, perdemos aquela sensação de conforto. Os recém-nascidos precisam de um cobertor que lhes deixe bem apertadinhos para que se sintam confortáveis. E nós, adultos,  precisamos de nossas caixas de concreto ou de metal. E quando morremos, somos enfiados em uma caixa de madeira.
   E eu... eu gosto de espaços pequenos porque sair do útero foi um grande choque, e porque passei boa parte da minha vida em um cômodo pouco maior do que o banheiro de muita gente, com meus dois irmãos e minha mãe e os meus tios me tocando e inserindo suas partes em mim e muitas caixas de brinquedos que nunca tivemos permissão para abrir. E quando a dona do útero para o qual eu sempre penso em voltar não estava lá, eu era colocada dentro de um espaço ainda menor, escuro e úmido, com ratos e baratas e choro do lado de dentro e risos do lado de fora.
   E desde então eu não soube me sentir nem mesmo minimamente confortável em espaços abertos.
  É por isso que eu fico no meu quarto, sentindo o mesmo desconforto e desespero de quando me trancavam naquele porão que eu não consigo esquecer, e com o qual sempre sonho.
   Eu sempre vou ser aquela garota de 6 anos trancada dentro de um porão escuro. E eu fico contente que você, Junior, não seja mais aquele garoto de 5 anos trancado em um porão escuro, e que o Felipe não seja mais aquele garoto de 3 anos trancado dentro de um porão escuro. Mas não me venha falar sobre estabilidade emocional, porque você também tem suas caixas!



quinta-feira, 12 de outubro de 2017

esmurrando portas


   O que mais eu posso escrever, que já não tenha escrito das mais variadas formas, utilizando os mais variados sinônimos e adjetivos, e até dispondo de palavras inventadas, nos últimos 21 anos?
   Tudo o que eu fiz na vida foi escrever. Escrever, escrever, sentir e escrever, escrever e sentir, mesmo quando o que eu estava escrevendo e sentindo era ridículo, maçante ou simplesmente indigno de ser trazido ao mundo, que dirá lido...
   Chega um momento que a mente pede arrego. O corpo segue o embalo. O meu está como não ficava há muito tempo, a ponto de se curvar sobre si mesmo, a ponto de quebrar como se fosse um objeto de gesso que derrubam no chão.
   Estava chorando de novo. Eu queria socar a parede, quebrar coisas, me quebrar, levantar da posição fetal em que me mantinha, e pegar minhas lâminas. Cortar minha barriga até que as tripas saíssem para fora, até que a mágoa se extinguisse. Pensei em pular da janela do meu quarto, mas é só um andar. Talvez eu quebrasse o pescoço ou rachasse meu crânio. O mais provável é que eu quebrasse os meus dentes. Os da frente.
   Pensei, também, em pular na frente de um trem. Com a minha sorte, acabaria com as duas pernas amputadas, porém viva, e uma multidão secretamente sedenta por sangue me xingaria por lhes causar tamanho inconveniente (mas bem que eles filmariam tudo e se sentiriam importantes quando recebessem alguns likes).
   Eu penso repetidamente em pegar uma faca, a de cabo cor de laranja que a minha vó vive escondendo, a única de ponta afiada, e enfiar no meu coração, dar uma torcida, ou me apunhalar quantas vezes tivesse forças para fazê-lo, sentindo o sangue jorrar para todos os lados, atingindo minha própria cara. Talvez um dia, quando eu estiver desesperada o suficiente...
   Hoje eu não estou desesperada, eu estou triste. Meu corpo está leve, mole como macarrão cozido. As palavras que eu ouço são sempre as mesmas desculpas esfarrapadas, e os atos são sempre os mesmos, contraditórios, e as pessoas são sempre iguais, covardes, e nada disso me traz acalento. E eu? Quem sou eu para essas pessoas? No fim, eu sou a louca que cruzou seus caminhos, e que um dia, um dia bem próximo, eles vão ignorar porque é mais fácil assim.
   Eu permaneci na minha cama, as lágrimas grossas não paravam de rolar, e fiquei assim, chorando abraçada a um travesseiro, tentando fingir que tinha um ser humano entre os meus braços. Tentando simular calor humano.
   Amanhã eu vou ao cemitério, é lá o meu porto seguro, não nos braços do fantasma sem rosto que eu imagino todas as noites. O bom filho à casa torna, é o que dizem.
   Eu vou sentar em um dos bancos, porque acho desrespeitoso deitar sobre túmulos, e vou beber minhas cervejas quentes e tomar meus 20 comprimidos de diazepam. Vou apagar, capotar no chão e acordar quando começar a chover na minha cara ou quando alguém começar a respirar sofregamente sobre mim. Mas tudo bem, eu gosto da chuva. E estou acostumada ao resto.
   Eu estava a caminho do psiquiatra quando vi uma velha falando sozinha na rua. Falava e gesticulava consigo mesma. Era uma sem-teto. Eu pensei, temerosa: "essa serei eu daqui uns anos", mas ao analisá-la melhor, prossegui com o pensamento: "exceto que eu não seria tão elegante". Uma mendiga elegante! Esse é o tipo de coisa que vemos em São Paulo. Ela estava com os cabelos desgrenhados, a pele suja e não tinha dentes, mas trajava um sobretudo sobre o seu corpo curvilíneo, o que lhe garantia elegância suficiente.
   Eu não estou criando arte aqui. Eu estou escrevendo porque preciso escrever. Me entenda, eu preciso escrever! 
   Eu estou cansada de esmurrar portas de aço com dobradiças soldadas.

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

restos

Cíntia.

Quantas vezes

você chorou


na sua vida

Trancada entre 4 paredes


De quartos que não têm fechadura?

Admirando o teto
a parede
o chão
a janela

o céu lá fora
longe,
tão longe
... fora

do seu alcance?




Quantas vezes você não conseguiu ver as estrelas
por que os seus olhos estavam cegos 


de tristeza
inchados
e molhados?

Quantas vezes você embaçou os seus óculos
E respingou suas lentes
com essas lágrimas
espessas

que ninguém vê além de você

e seus amigos mortos?


A Juliana bem te disse

"Você anda muito chorona"

Mas isso foi antes, quando ela estava viva



Cíntia

você realmente
achou
por um segundo

que você poderia ter aquele cara?
ele é inteligente
e sensível
ele tem olhos de criança
e barba de homem
e você sabe muito bem
que esses caras
Cíntia
eles admiram sua inteligência
e te querem sempre
como
amiga.


Você é como Bukowski

sabe?

você sente nojo dele
porque é como ele.

Você sabe

Para você estão designados os putos
os impuros
os fetichistas
os caras
com sorriso de lobo

eles vão te foder por trás

você achou mesmo?



você....................


deixou-se iludir

por um instante


que poderia alcançar essa miragem?

um garoto calmo

limpo;



vocês dois numa cama, vestidos
com música flutuando sobre vocês
apenas se encarando, aprendendo
cada detalhe do rosto um do outro


com as pontas dos dez dedos?
você sabe melhor do que isso
você deveria saber

eles vão te foder por trás
te tocando o mínimo possível

vão pedir para mijar na sua boca
vão pedir para você chupar o cu deles
vão querer lamber os seus pés
eles vão pedir coisas

e vão te foder por trás

porque ninguém quer fazer amor 
olhando para a sua cara 

ninguém quer olhar dentro dos seus olhos

ninguém quer encarar esse vazio.

eles vão te foder por trás
escondidos dos amigos

Claro que não, cara
eu não fodo gordas
Vão te foder pelas costas
dos amigos


e ir embora

depois que gozarem
em cima


da sua alma.