terça-feira, 7 de maio de 2019

a solidão da pessoa gorda


   Quando se fala em solidão da pessoa gorda, a primeira, e geralmente única coisa que abordam, é a afetividade no sentido romântico. Esse é um aspecto urgente e cruel da nossa solidão, mas não é o único, especialmente para quem foi uma criança e/ou adolescente gorde.
   Tudo começa dentro de casa, com a rejeição de pais ou responsáveis que ridicularizam crianças gordas sempre que têm uma chance, fazendo-as sentir culpa ao comer, desencorajando-as em todos os sentidos, mas especialmente, reafirmando a lógica do "você não tem corpo para isso" e "a culpa é sua, que não se esforça para emagrecer", ou ainda, comparando-as a todo momento com outras crianças, seja irmãos, primos ou colegas. Isso não só afeta a auto-estima estética e intelectual dessas crianças e adolescentes, como gera o sentimento de competição e até mesmo rancor em relação a quem está sendo usado como "exemplo", levando a rivalidade permanente entre irmãs/irmãos e primas/os.
   É muito triste quando as pessoas que mais deveriam te amar, incentivar e proteger, te negam afeto e só têm coisas ruins para dizer sobre você e o seu corpo. Isso gera uma distância emocional que com o tempo é impossível de transpor, o que causa isolamento familiar e afeta toda a vida desses indivíduos, em particular a forma como se relacionam com as outras pessoas e com o mundo.
   Para além disso, uma criança gorda é excluída de brincadeiras e repelida de grupinhos, seja na escola ou em ambientes recreativos. E mesmo crianças sofrem com a falta de acessibilidade. Enquanto criança gorda, muitas vezes me impediram de usar brinquedos de festas ou parques porque "não suportariam meu peso", ou porque de fato meu corpo não se encaixava nos mesmos. Então eu ficava de lado, enquanto as outras crianças brincavam e criavam laços.
   Isso sem contar as piadas e agressões físicas. Crianças muitas vezes conseguem ser mais cruéis do que adultos, ainda mais porque têm permissão social para sê-lo. Os adultos veem o comportamento tóxico de crianças, e ao invés de repreender, acham "engraçadinho", "bonitinho", "coisa de criança".
   Não sendo ensinadas a respeitar as diferenças, crianças entram na adolescência sem um pingo de empatia.
   Adolescente gorda, eu fui rejeitada não apenas por pessoas que eu tinha interesse romântico, mas também pelas pessoas que me criavam, pela minha família estendida, e pelos grupos de meninas. Tive que atravessar todas as mudanças do meu corpo e da minha psique sozinha, tentando descobrir o que era normal e o que não era, e como me portar diante de tais mudanças.
   Eu era a única gorda em uma sala cheia de meninas que praticavam a feminilidade padrão, e para piorar, era dois anos mais velha do que elas. Em alguns momentos elas até me permitiam fazer parte do grupo, mas no primeiro desentendimento que tinha (mesmo quando eu não estava envolvida na briga), eu era a primeira a ser excluída, ou obrigada a tomar partido, sob pressão, pois independente de quem eu escolhesse, seria "punida" quando elas voltassem a se falar.
   Eu era a pessoa que as ajudava nos deveres de casa, cedia minha casa para elas ficarem com meninos que haviam me rejeitado (e elas sabiam), e até vigiava o portão para garantir que suas mães não as pegasse fazendo isso. Eu era a pessoa que escrevia poemas apaixonados para elas entregarem para os namorados. Eu tirava fotos delas, nunca aparecendo nas mesmas. Era a pessoa que ouvia e nunca era ouvida. Nunca fui a melhor amiga. Nunca era convidada para as festinhas e passeios, nunca era escolhida nas atividades de educação física.   Mesmo depois, já no fim da adolescência, ou mesmo nos primeiros anos da vida adulta, eu era a pessoa que garotas usavam para se sentir melhor sobre seus próprios corpos, para silenciar suas inseguranças. As observava se olhando no espelho, erguendo a blusa e apertando gorduras inexistentes, enquanto diziam "nossa, eu estou tão gorda! Olha isso!", e então me olhavam furtivamente. E, inevitavelmente, quando eu as irritava de alguma forma, ouvia que elas nunca gostaram de mim mesmo, e que eu não passava de uma "gordona do caralho". Isso fez com que eu me distanciasse de mulheres.
   Ao longo da vida tive vários amigos homens, e vale ressaltar que só tenho irmãos. Me masculinizei para "ser um dos caras", e assim ser aceita. Mas tais amizades também me traziam solidão, pois as vivências divergiam muito. Eles não eram capazes de entender muitas das coisas que eu vivia. Além disso, os via idealizando mulheres magras, padrão, "femininas", tudo que eu não era, sabendo que aquele era o pensamento coletivo, o que reforçava a minha certeza de que eu nunca seria amada, por não ser como essas garotas que eles queriam. Também era excluída de situações que eu não era "masculinizada o suficiente" para participar, e os via frequentemente constrangidos quando alguém achava que tínhamos envolvimento amoroso ou sexual.
   Há também a solidão de nunca ver pessoas como nós nos ambientes que frequentamos, ou mesmo na mídia. Não porque existam poucas pessoas gordas no mundo, mas porque somos invisibilizados, expulsos dos ambientes, e dessa forma poucos ousam sequer sair de casa para ocupar tais espaços.
   Essa dinâmica nunca muda. Os anos passam, as figuras mudam, mas a forma que a pessoa gorda é tratada por quem a rodeia permanece.
   No ambiente de trabalho, quando conseguimos emprego, temos que lidar com superiores hierárquicos e colegas de trabalho que continuam nos usando para se sentir melhor consigo mesmos, e agora, não podendo usar de violência física para nos agredir, abusam de um comportamento passivo-agressivo e criam um meio tóxico, sempre dando dicas de dieta, fazendo "piadas" e recriminando nossos corpos. Se reclamamos, estamos exagerando.
   Não encontramos apoio familiar, nem de amigos, e muito menos apoio profissional, já que psicólogos também recriminam nossos corpos.
   Uma pessoa gorda tem, por fim, toda espécie de afeto negado, ou no mínimo limitado. A solidão da pessoa gorda é a solidão no sentido mais pleno da palavra. É tão grande, que se torna tangível... fisicamente dolorosa.