domingo, 26 de maio de 2019

o corpo perfeito


Positividade corporal deveria ser, antes de qualquer coisa, uma cruzada por auto-conhecimento e auto-valorização. Ao invés disso, se tornou um movimento com discursos vazios que serve bem à máquina capitalista (contra a qual deveria lutar), e que pode ajudar indivíduos num primeiro momento, mas que pela falta de profundidade não produz mais do que um efeito paliativo em pessoas que não foram ensinadas a refletir sobre aquilo que consomem e reproduzem, como se a vida fosse uma contínua brincadeira de telefone sem fio, na qual, a cada vez que uma mensagem é repetida, perde um pouco da consistência, do significado, da alma... 
Dentre os bordões contraditórios quando falamos em auto-aceitação*, um dos que mais me incomoda é o famoso: "eu não vou perder a minha sanidade em busca do CORPO PERFEITO".
O que é "perfeito"? Perfeito, de acordo com o dicionário, é algo "em que não há defeitos", "belo, formoso", "que apresenta todas as características DISTINTIVAS", e acima de tudo, algo "COMPLETO"! Na contramão, "imperfeito" é algo a que "falta alguma característica para ser pleno", algo "incorreto", "defeituoso".
O que querem dizer com esta frase é que "abriram mão" de ter o corpo PADRÃO, o corpo MIDIÁTICO. Certo! Mas quando interligam os termos "corpo padrão" e "corpo perfeito", e no outro extremo colocam o próprio corpo "despadronizado" como um corpo IMPERFEITO, acabam por reafirmar a ideia vigente de que o corpo vendido pela mídia é o IDEAL, que esse tipo de corpo é mais humano, é completo, e que a nós, que não cabemos neste padrão, só nos resta nos CONFORMARMOS com nossos corpos "imperfeitos", "inadequados", "incompletos". Tal pensamento não só artificializa a luta — também alimenta a cultura capacitista, que dita que apenas um tipo de corpo é funcional, realmente humano e digno de autonomia... Uma cultura que afirma que corpos com deficiências e doenças (especialmente doenças crônicas) são defeituosos, errados.
Aceitação, no contexto da positividade corporal, não é resignação (submissão ao sistema ou a movimentos oportunistas); não é ver o próprio corpo como um fardo, que já que você não consegue se livrar, só te resta carregar. Aceitar-se é ACOLHER-SE, PERMITIR-SE.
Palavras têm poder. Elas moldam como indivíduos pensam, vivem, se enxergam e como tratam uns aos outros. Uma criança, por exemplo, reproduz palavras que ouve dentro de casa, ou nas mídias que consome. Por isso temos que retirar certas expressões e palavras do nosso vocabulário, pensar muito bem em tudo que dizemos, e como isso afetará as pessoas ao nosso redor. Temos que pensar em como nossas palavras oprimem o próximo!
Deixar de buscar o corpo "padrão" e priorizar a saúde mental é um grande passo, mas precisamos ir além do discurso e mudar a forma que nos enxergamos e que enxergamos o próximo. O único jeito de o movimento ser efetivo a longo prazo, e servir a corpos realmente marginalizados, é destruindo os conceitos de beleza e valor impostos pela sociedade. Precisamos tirar esse corpo padrão (e inexistente) desse altar construído pelo capital... deixar de usá-lo como referência nos nossos discursos e nas nossas lutas (tanto na esfera individual, quanto na esfera coletiva)! Caso contrário, nunca nos veremos como seres plenos de verdade; não nos veremos como corpos belos e dignos, e constantemente voltaremos ao estado de auto-ódio impulsionado pela mídia, que nos ensina a nos desrespeitar e desrespeitar o próximo.
Não existem corpos imperfeitos. Cada corpo tem suas particularidades, suas próprias marcas e formas, o que garante que sejamos seres únicos. Todos os corpos são completos, são totalmente humanos, e são belos. Se acolher de verdade é reconhecer isso. É saber que não importa o quão distante você esteja do corpo "padrão", o seu corpo continua sendo um fruto perfeito da Natureza, continua tendo valor, continua sendo lindo. 
Se amar é, antes de tudo, se conhecer. Observar-se nos mínimos detalhes, sem referências externas, e se PERCEBER completamente. Se compreender como um ser humano digno de amor e de respeito, independente das marcas que seu corpo carregue. 
Se amar é ser capaz de ver a própria beleza, e saber que a beleza de outras pessoas não anula a sua, e vice-versa, pois existem inúmeras formas de SER (e SER BELO/A). E acima de tudo, se amar é se dar permissão para viver plenamente, satisfazer os próprios desejos, ser bom consigo mesmo. 
Vá além do discurso de contenção de auto-ódio. Olhe-se com gentileza de verdade. Com a mesma gentileza que olharia para outra pessoa. Veja suas dobras, suas formas, sua textura, os diferentes tons da sua pele, suas cicatrizes, manchas, marcas e quaisquer outras características que te ensinaram que é errado possuir, e entenda que nada disso te diminui enquanto ser humano, que nada disso te torna uma pessoa incompleta (muito pelo contrário, te torna mais pleno/a). Não se limite a se valorizar "apesar da sua aparência". Sim! Ser uma "boa pessoa" é fundamental. Mas aparência importa sim, e a sua é perfeita. Treine seu olhar para reconhecer isso. Veja a beleza de tudo que te constitui, primeiro isoladamente, e depois como um todo. Repita isso todos os dias, se veja todos os dias, se ache lindo/a todos os dias. Exalte sua perfeição todos os dias. Você é um ser humano completo.