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sábado, 8 de julho de 2023

os pêlos de Frida

Diferente de muitas pessoas que foram  socializadas como "mulheres", eu sinto que a "feminilidade" e a "delicadeza" não me foram impostas. Pelo contrário, a feminilidade e as noções de delicadeza me foram negadas desde muito cedo. A delicadeza, por sinal, me foi negada não apenas na minha própria expressão, mas na forma como as pessoas, sobretudo homens, sempre me trataram e ainda tratam. Eu nunca fui vista como delicada e nem tratada com a delicadeza com a qual mulheres padrão (magras, brancas e sem deficiência) ou com passabilidade foram e são tratadas.
Sendo uma pessoa gorda desde a infância, eu nunca fui vista como "mulher suficiente" ou mesmo "mulher de verdade". Assim, as expectativas que lançaram sobre mulheres padrão nunca foram realmente aplicadas a mim. Sim, eu cresci com as mesmas limitações patriarcais das outras mulheres. Cresci com as mesmas referências femininas do resto das mulheres. Cresci estudando a mesma história, vendo as mesmas modelos e atrizes, as mesmas novelas e filmes, as mesmas propagandas... mas ouvindo (e vendo, na ausência ou na estigmatização de corpos "femininos" como o meu!) que nada daquilo era sobre mim ou para mim. Que nada daquilo me era permitido. Eu não tinha acesso ao que as mulheres padrão tinham acesso, a começar por itens de vestimenta para bancar minha expressão, mas não apenas isso. Eu tentei, com o que eu tinha, expressar minha feminilidade, mas não importava o quanto eu tentasse, minhas expressões não eram legitimadas e nunca foram o suficiente. Me olhavam e me tratavam como alguém tentando encenar um personagem. Como se nada daquilo fosse natural ou pertencente a mim. Me julgavam como alguém "tentando demais", a ponto de se tornar ridícula.  Minhas expressões de feminilidade eram motivo de chacota, tanto por parte de meninas e mulheres, quanto por parte de meninos e homens. Me esculhambaram a tal ponto, que eu também comecei a me sentir ridícula e como se estivesse interpretando o papel de mulher, ao invés de estar vivendo enquanto uma.
Então, eu aprendi a apagar quem eu queria ser. Aprendi a refrear meus desejos e vontades para não chamar atenção e conseguir sobreviver. Até aprendi a me camuflar, adotando "símbolos masculinos" na minha estética e no meu jeito. Com roupas compradas na sessão masculina, que era o que me servia, me tornei uma figura masculinizada, engrossei minha voz, falava "como homem", me colocava como "força bruta", tudo para ser aceita em grupos de homens que até me estendiam amizade, mas que não me viam como mulher, e muito menos me viam como um deles.
Vivi muitos anos da minha vida assim, me encolhendo e sendo encolhida perante uma sociedade que não me via nem como mulher e nem como homem "de verdade".
Alguns anos atrás eu comecei a resgatar a feminilidade que tentei expressar lá atrás. Eu ESCOLHI a feminilidade para mim. Independente da minha identidade de gênero, o que ainda é algo bem abstrato pra mim, eu escolhi performar a feminilidade e tenho lutado pelo meu direito de expressão, mesmo que muita gente continue me vendo como insuficiente e uma piada dentro disso.
Para me "afirmar", muitas vezes eu procuro me "desvincular" de qualquer símbolo que seja considerado "masculino", mesmo que sejam coisas inerentes a mim enquanto ser humano.
Dois anos atrás eu iniciei uma conversa aqui sobre a minha relação, enquanto pessoa gorda socializada como mulher, com meus pêlos faciais. Apesar de ter parado de depilar minhas axilas, pernas e partes íntimas há vários anos, nunca consegui aceitar meus pêlos faciais. Mesmo que os pêlos nas pernas, axilas e partes íntimas sejam tido pela sociedade como símbolo "masculino", eles foram transformados em símbolo de liberdade feminina. Ainda existe muito preconceito, mas não carrega o mesmo peso dos pêlos faciais. Houveram períodos na história onde os pêlos pubianos eram tão comuns em mulheres quanto em homens. Não faz tanto tempo que a norma era mulheres com pêlos pubianos e isso era natural até na grande mídia. Ter crescido com referências de mulheres com pêlos pubianos me fez sentir mais segura e validada ao deixar os meus próprios pêlos pubianos livres.
Já o pêlo no rosto da mulher, sempre foi extremamente estigmatizado. Não existem períodos onde eles foram normalizados. De frases como "com mulher de bigode, nem o diabo pode" à animalização de "mulheres barbadas" que eram atração de "circo de aberrações", mulheres com pêlos faciais sempre foram hostilizadas e motivo de piada e nojo. A maioria das mulheres tiram os pêlos do buço, mas é como se isso fosse um segredo coletivo. Só agora, com a internet, surgem referências positivas, mas ainda é um tabu muito grande para ser quebrado no dia a dia, quando estamos sozinhas e fora da bolha da internet. Eu posso esconder os pêlos das outras regiões do meu corpo se eu quiser, mas não tenho como esconder o meu rosto.  Ele é a primeira parte de mim que as pessoas enxergam... Me sinto muito mais exposta aos preconceitos das pessoas. Além disso, parece que ironicamente, os pêlos do meu rosto crescem em maior abundância do que o do restante do meu corpo. A sensação de falta de controle é muito grande.
Após dois anos desde a primeira vez que falei disso, a situação piorou consideravelmente. Antes eu conseguia tirar os pêlos e ter um respiro antes de eles voltarem, mas agora eu mal tiro e já estão crescendo novamente, se tornando perceptível em poucos dias. Isso em partes porque meus cabelos, os pêlos que eu gostaria que crescessem, caíram muito por causa dos meus problemas de saúde física e mental, e eu estou usando um produto para fazê-los crescer, mas que tem como efeito colateral o aumento dos pêlos faciais.
Talvez porque a minha autoestima esteja tão fragilizada nos últimos dois anos, a minha paranóia também piorou. Se antes me bastava tirar os pêlos com aparelhos de barbear, agora eu preciso tirar pela raiz e tenho apelado para depilação a cera. A dor "não me importa", mas esse método é agressivo para a pele e para o bolso, o que restringe o meu acesso a ele.
Eu queria conseguir lidar melhor com isso. Tentei olhar para esses pêlos com mais carinho e livre dos estigmas sociais (que pesam mais ainda sobre mulheres gordas). Mas é muito difícil aceitá-los, sentindo que eles me afastam da percepção de feminilidade que eu luto para manter. Há pouco tempo o feminismo e a própria comunidade LGBTQIA+ mostraram como os pêlos faciais estão atrelados à masculinidade no imaginário social, quando escorraçaram uma travesti por ela manter uma barba. É uma contradição muito profunda. Vai contra tudo pelo que lutamos. A verdadeira desconstrução de gênero está muito distante ainda. Mas há de se pensar: quando invalidam pessoas de barba enquanto mulheres trans e travestis, quando dizem que mulheres de barba devem ser excluídas de espaços femininos (especialmente banheiros) onde ficam também as mulheres cis que têm pelos faciais e BARBAS? As mulheres cis que não têm passabilidade social de mulheres cis.........
Há meses tenho andado por aí de cabeça baixa, tentando esconder meu rosto com os cabelos. Sentindo os olhares de nojo. Me sentindo nojenta por tabela, mesmo sabendo que eu sou uma pessoa com bons hábitos de higiene pessoal. Eu me cuido de forma até mesmo obsessiva, justamente pelos estigmas sobre o corpo gordo. Uso bons sabonetes, cremes corporais, faço skin care, mas a percepção social me contamina toda vez que olho pro espelho e vejo os pêlos escuros.
Tenho ficado autoconsciente ao postar fotos do meu rosto, com medo de notarem os pêlos, especialmente na linha do buço.
Pior, tenho sentido medo de ser tocada e beijada e sentirem minha pele áspera, como eu sinto ao passar minha própria língua. Medo de sentirem a presença dos pêlos mesmo que eles não estejam tão visíveis...
Mas eu sei que quando tenho vergonha e fico insegura, eu me torno refém disso. Então decidi testar meus próprios limites para tentar lidar com a situação. Já que eu não teria acesso a depilação por alguns dias, decidi "assumir" esses pêlos. Decidi deixar eles crescerem mais, para ver até onde iam. E tracei uma meta: só iria depilar após fazer uma sessão de fotos para postar aqui e abrir de uma vez essa insegurança. Essas são as primeiras fotos.
Tanto no dia a dia, quanto nas fotos que fiz, eu decidi reforçar os símbolos femininos em conjunto com os pêlos da linha do buço. Os pêlos combinando com batom vermelho ou vinho. Com adereços "femininos". Com roupas "provocantes". Assim, eu quis que se tornasse um símbolo da minha feminilidade. Foi bem difícil. Eu me senti autoconsciente toda vez que fui para a academia e os professores olharam com estranheza. Toda vez que eu estava no transporte público e senti os olhares das pessoas.  Toda vez que postei fotos sem filtro.
Mas quando me arrumei e tirei as fotos, de repente eu me senti muito bem. Me senti hiperfeminina. Um tipo forte de feminilidade.
As lentes não capturam os pêlos como eles realmente são. Eu tentei muito retratar a realidade, por isso não usei filtros. As câmeras por si só suavizam nossa pele, nossos traços, nossos pêlos, e isso também é uma ferramenta de controle social. Aqui nessa bolha, nós mentimos até sem querer. Ninguém é exatamente como parece.
Pessoalmente meus pêlos estão mais grossos e mais perceptíveis. E eu não pretendo mantê-los, a depilação já está marcada. Ainda não estou pronta para adotar esses pêlos e a carga social que eles carregam, mas gostei desse registro. Um detalhe é que eu tirei as fotos e só depois, quando fui ver o resultado, verifiquei que o livro com o rosto e a monocelha de Frida ficaram dentro do enquadramento! A Frida ali encarando meu medo comigo. Achei providencial!

domingo, 26 de maio de 2019

o corpo perfeito


Positividade corporal deveria ser, antes de qualquer coisa, uma cruzada por auto-conhecimento e auto-valorização. Ao invés disso, se tornou um movimento com discursos vazios que serve bem à máquina capitalista (contra a qual deveria lutar), e que pode ajudar indivíduos num primeiro momento, mas que pela falta de profundidade não produz mais do que um efeito paliativo em pessoas que não foram ensinadas a refletir sobre aquilo que consomem e reproduzem, como se a vida fosse uma contínua brincadeira de telefone sem fio, na qual, a cada vez que uma mensagem é repetida, perde um pouco da consistência, do significado, da alma... 
Dentre os bordões contraditórios quando falamos em auto-aceitação*, um dos que mais me incomoda é o famoso: "eu não vou perder a minha sanidade em busca do CORPO PERFEITO".
O que é "perfeito"? Perfeito, de acordo com o dicionário, é algo "em que não há defeitos", "belo, formoso", "que apresenta todas as características DISTINTIVAS", e acima de tudo, algo "COMPLETO"! Na contramão, "imperfeito" é algo a que "falta alguma característica para ser pleno", algo "incorreto", "defeituoso".
O que querem dizer com esta frase é que "abriram mão" de ter o corpo PADRÃO, o corpo MIDIÁTICO. Certo! Mas quando interligam os termos "corpo padrão" e "corpo perfeito", e no outro extremo colocam o próprio corpo "despadronizado" como um corpo IMPERFEITO, acabam por reafirmar a ideia vigente de que o corpo vendido pela mídia é o IDEAL, que esse tipo de corpo é mais humano, é completo, e que a nós, que não cabemos neste padrão, só nos resta nos CONFORMARMOS com nossos corpos "imperfeitos", "inadequados", "incompletos". Tal pensamento não só artificializa a luta — também alimenta a cultura capacitista, que dita que apenas um tipo de corpo é funcional, realmente humano e digno de autonomia... Uma cultura que afirma que corpos com deficiências e doenças (especialmente doenças crônicas) são defeituosos, errados.
Aceitação, no contexto da positividade corporal, não é resignação (submissão ao sistema ou a movimentos oportunistas); não é ver o próprio corpo como um fardo, que já que você não consegue se livrar, só te resta carregar. Aceitar-se é ACOLHER-SE, PERMITIR-SE.
Palavras têm poder. Elas moldam como indivíduos pensam, vivem, se enxergam e como tratam uns aos outros. Uma criança, por exemplo, reproduz palavras que ouve dentro de casa, ou nas mídias que consome. Por isso temos que retirar certas expressões e palavras do nosso vocabulário, pensar muito bem em tudo que dizemos, e como isso afetará as pessoas ao nosso redor. Temos que pensar em como nossas palavras oprimem o próximo!
Deixar de buscar o corpo "padrão" e priorizar a saúde mental é um grande passo, mas precisamos ir além do discurso e mudar a forma que nos enxergamos e que enxergamos o próximo. O único jeito de o movimento ser efetivo a longo prazo, e servir a corpos realmente marginalizados, é destruindo os conceitos de beleza e valor impostos pela sociedade. Precisamos tirar esse corpo padrão (e inexistente) desse altar construído pelo capital... deixar de usá-lo como referência nos nossos discursos e nas nossas lutas (tanto na esfera individual, quanto na esfera coletiva)! Caso contrário, nunca nos veremos como seres plenos de verdade; não nos veremos como corpos belos e dignos, e constantemente voltaremos ao estado de auto-ódio impulsionado pela mídia, que nos ensina a nos desrespeitar e desrespeitar o próximo.
Não existem corpos imperfeitos. Cada corpo tem suas particularidades, suas próprias marcas e formas, o que garante que sejamos seres únicos. Todos os corpos são completos, são totalmente humanos, e são belos. Se acolher de verdade é reconhecer isso. É saber que não importa o quão distante você esteja do corpo "padrão", o seu corpo continua sendo um fruto perfeito da Natureza, continua tendo valor, continua sendo lindo. 
Se amar é, antes de tudo, se conhecer. Observar-se nos mínimos detalhes, sem referências externas, e se PERCEBER completamente. Se compreender como um ser humano digno de amor e de respeito, independente das marcas que seu corpo carregue. 
Se amar é ser capaz de ver a própria beleza, e saber que a beleza de outras pessoas não anula a sua, e vice-versa, pois existem inúmeras formas de SER (e SER BELO/A). E acima de tudo, se amar é se dar permissão para viver plenamente, satisfazer os próprios desejos, ser bom consigo mesmo. 
Vá além do discurso de contenção de auto-ódio. Olhe-se com gentileza de verdade. Com a mesma gentileza que olharia para outra pessoa. Veja suas dobras, suas formas, sua textura, os diferentes tons da sua pele, suas cicatrizes, manchas, marcas e quaisquer outras características que te ensinaram que é errado possuir, e entenda que nada disso te diminui enquanto ser humano, que nada disso te torna uma pessoa incompleta (muito pelo contrário, te torna mais pleno/a). Não se limite a se valorizar "apesar da sua aparência". Sim! Ser uma "boa pessoa" é fundamental. Mas aparência importa sim, e a sua é perfeita. Treine seu olhar para reconhecer isso. Veja a beleza de tudo que te constitui, primeiro isoladamente, e depois como um todo. Repita isso todos os dias, se veja todos os dias, se ache lindo/a todos os dias. Exalte sua perfeição todos os dias. Você é um ser humano completo.