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quarta-feira, 14 de agosto de 2019

garantia

No começo da minha adolescência eu entrava em muitas brigas na escola. Todos os dias eu saía na mão com alguém para me defender das humilhações que sofria. Nunca batia em alguém só por bater, eu simplesmente exigia respeito com os meus punhos.
Mas tinha um detalhe: eu só batia em meninos. Nunca fui capaz de bater em uma mulher na minha vida.
Tinha uma garota em especial que eu não suportava. Tudo nela me irritava profundamente, me fazia sentir inferior, e ela provavelmente sentia meu complexo de inferioridade, pois frequentemente me provocava e me ridicularizava na frente das pessoas. Eu ia para cima dela, o suficiente para ela se calar e sair correndo para se esconder, mas nunca tive coragem de agredi-la. Um dia ela me xingou, e de forma quase automática eu a ameacei, disse que se ela não calasse a boca eu iria quebrar a cara dela. Nesse dia ela não correu, não se escondeu — pelo contrário, ela me olhou com um sorriso na cara e disse, na frente de toda a sala: "Vai nada! Você sempre diz que vai me bater e não bate. Você não tem coragem. Eu não tenho mais medo de você". Eu fiquei mortificada por alguns momentos, depois senti o ódio e a vergonha correndo pelo meu corpo. Eu não era de nada e ela sabia. Ela sabia que podia pisar em mim o quanto quisesse, pois sairia impune.
Toda vez que eu volto para ele depois da humilhação e do adeus, eu lembro dessa garota e daquele misto de ódio e vergonha tomando conta de mim.

terça-feira, 7 de maio de 2019

a solidão da pessoa gorda


   Quando se fala em solidão da pessoa gorda, a primeira, e geralmente única coisa que abordam, é a afetividade no sentido romântico. Esse é um aspecto urgente e cruel da nossa solidão, mas não é o único, especialmente para quem foi uma criança e/ou adolescente gorde.
   Tudo começa dentro de casa, com a rejeição de pais ou responsáveis que ridicularizam crianças gordas sempre que têm uma chance, fazendo-as sentir culpa ao comer, desencorajando-as em todos os sentidos, mas especialmente, reafirmando a lógica do "você não tem corpo para isso" e "a culpa é sua, que não se esforça para emagrecer", ou ainda, comparando-as a todo momento com outras crianças, seja irmãos, primos ou colegas. Isso não só afeta a auto-estima estética e intelectual dessas crianças e adolescentes, como gera o sentimento de competição e até mesmo rancor em relação a quem está sendo usado como "exemplo", levando a rivalidade permanente entre irmãs/irmãos e primas/os.
   É muito triste quando as pessoas que mais deveriam te amar, incentivar e proteger, te negam afeto e só têm coisas ruins para dizer sobre você e o seu corpo. Isso gera uma distância emocional que com o tempo é impossível de transpor, o que causa isolamento familiar e afeta toda a vida desses indivíduos, em particular a forma como se relacionam com as outras pessoas e com o mundo.
   Para além disso, uma criança gorda é excluída de brincadeiras e repelida de grupinhos, seja na escola ou em ambientes recreativos. E mesmo crianças sofrem com a falta de acessibilidade. Enquanto criança gorda, muitas vezes me impediram de usar brinquedos de festas ou parques porque "não suportariam meu peso", ou porque de fato meu corpo não se encaixava nos mesmos. Então eu ficava de lado, enquanto as outras crianças brincavam e criavam laços.
   Isso sem contar as piadas e agressões físicas. Crianças muitas vezes conseguem ser mais cruéis do que adultos, ainda mais porque têm permissão social para sê-lo. Os adultos veem o comportamento tóxico de crianças, e ao invés de repreender, acham "engraçadinho", "bonitinho", "coisa de criança".
   Não sendo ensinadas a respeitar as diferenças, crianças entram na adolescência sem um pingo de empatia.
   Adolescente gorda, eu fui rejeitada não apenas por pessoas que eu tinha interesse romântico, mas também pelas pessoas que me criavam, pela minha família estendida, e pelos grupos de meninas. Tive que atravessar todas as mudanças do meu corpo e da minha psique sozinha, tentando descobrir o que era normal e o que não era, e como me portar diante de tais mudanças.
   Eu era a única gorda em uma sala cheia de meninas que praticavam a feminilidade padrão, e para piorar, era dois anos mais velha do que elas. Em alguns momentos elas até me permitiam fazer parte do grupo, mas no primeiro desentendimento que tinha (mesmo quando eu não estava envolvida na briga), eu era a primeira a ser excluída, ou obrigada a tomar partido, sob pressão, pois independente de quem eu escolhesse, seria "punida" quando elas voltassem a se falar.
   Eu era a pessoa que as ajudava nos deveres de casa, cedia minha casa para elas ficarem com meninos que haviam me rejeitado (e elas sabiam), e até vigiava o portão para garantir que suas mães não as pegasse fazendo isso. Eu era a pessoa que escrevia poemas apaixonados para elas entregarem para os namorados. Eu tirava fotos delas, nunca aparecendo nas mesmas. Era a pessoa que ouvia e nunca era ouvida. Nunca fui a melhor amiga. Nunca era convidada para as festinhas e passeios, nunca era escolhida nas atividades de educação física.   Mesmo depois, já no fim da adolescência, ou mesmo nos primeiros anos da vida adulta, eu era a pessoa que garotas usavam para se sentir melhor sobre seus próprios corpos, para silenciar suas inseguranças. As observava se olhando no espelho, erguendo a blusa e apertando gorduras inexistentes, enquanto diziam "nossa, eu estou tão gorda! Olha isso!", e então me olhavam furtivamente. E, inevitavelmente, quando eu as irritava de alguma forma, ouvia que elas nunca gostaram de mim mesmo, e que eu não passava de uma "gordona do caralho". Isso fez com que eu me distanciasse de mulheres.
   Ao longo da vida tive vários amigos homens, e vale ressaltar que só tenho irmãos. Me masculinizei para "ser um dos caras", e assim ser aceita. Mas tais amizades também me traziam solidão, pois as vivências divergiam muito. Eles não eram capazes de entender muitas das coisas que eu vivia. Além disso, os via idealizando mulheres magras, padrão, "femininas", tudo que eu não era, sabendo que aquele era o pensamento coletivo, o que reforçava a minha certeza de que eu nunca seria amada, por não ser como essas garotas que eles queriam. Também era excluída de situações que eu não era "masculinizada o suficiente" para participar, e os via frequentemente constrangidos quando alguém achava que tínhamos envolvimento amoroso ou sexual.
   Há também a solidão de nunca ver pessoas como nós nos ambientes que frequentamos, ou mesmo na mídia. Não porque existam poucas pessoas gordas no mundo, mas porque somos invisibilizados, expulsos dos ambientes, e dessa forma poucos ousam sequer sair de casa para ocupar tais espaços.
   Essa dinâmica nunca muda. Os anos passam, as figuras mudam, mas a forma que a pessoa gorda é tratada por quem a rodeia permanece.
   No ambiente de trabalho, quando conseguimos emprego, temos que lidar com superiores hierárquicos e colegas de trabalho que continuam nos usando para se sentir melhor consigo mesmos, e agora, não podendo usar de violência física para nos agredir, abusam de um comportamento passivo-agressivo e criam um meio tóxico, sempre dando dicas de dieta, fazendo "piadas" e recriminando nossos corpos. Se reclamamos, estamos exagerando.
   Não encontramos apoio familiar, nem de amigos, e muito menos apoio profissional, já que psicólogos também recriminam nossos corpos.
   Uma pessoa gorda tem, por fim, toda espécie de afeto negado, ou no mínimo limitado. A solidão da pessoa gorda é a solidão no sentido mais pleno da palavra. É tão grande, que se torna tangível... fisicamente dolorosa.

domingo, 6 de janeiro de 2019

esquerdomacho II

Toda vez que eu vejo alguém como ele

Camisa xadrez, como a dele
Fala aveludada, como a dele
Discursos mais furados do que roteiros de filmes de baixo orçamento sobre viagem no tempo, como os dele
A barba mais cuidada do que um bebê recém-nascido, como a dele
O olhar cheio de malícia e vazio de sentimentos, como o dele
A mente transbordando fetiches, a dele

Toda vez que eu vejo alguém como ele

Pretensamente experiente, como ele
Amante de todas as mulheres, como ele
Adorador de gatinhos, como ele
Poeta marginal, como ele
Doido pra dar pro Lula... como ele

Toda vez que eu vejo alguém como ele

Cheio de lembranças de ex-namoradas loucas, ele
Agarrado à saia da mãe, ele
Numa relação quase incestuosa
Ele, procurando resolver o Complexo Materno
Nas mulheres que conhece

Toda vez que eu vejo alguém como ele

Ele que me queria louca
Ele que me queria livre dentro de um cativeiro
Ele que me queria comendo na palma de sua mão
Ele que me queria sangrando
Ele que me queria chorando
Ele que me queria como se eu fosse um brinquedo

Toda vez que eu vejo alguém como ele

Eu lembro como é se sentir fraca
Frágil
Doente
Impossível de ser amada

Toda vez que eu vejo alguém como ele

Eu lembro que o odeio
Lembro que ainda o amo

Toda vez que eu vejo alguém como ele

Eu penso em destruição.

domingo, 11 de novembro de 2018

previsão

Minha mãe me disse
Um dia você vai ser como eu
Sozinha
Com um monte de filhos
Vai saber o que é sofrer
Você vai me entender

Eu tinha dez anos
Coisa estranha de se dizer

Passei a vida fugindo
Da sina
Do destino
Da repetição

Eu não queria ser ela

Sempre fui sozinha
Especialmente quando me via acompanhada

Não tive filhos
Mas descobri o que é sofrer

Aos vinte o entendimento veio
De forma súbita

Não justifica.

28. Estou salva.
Sou diferente.

Até que ele apareceu,
Me fez como ela

Me fez ser a outra
Assistindo a intimidade
De fora

Intocada.

Me fez ser a outra
Como minha mãe

Ele me fez cair
Ele completou o meu destino

segunda-feira, 5 de março de 2018

oi sumido

   Lembra como era? 
   Era horrível. A gente não se encaixava. O seu pênis ficava escapando. 
   Eu não gostava do seu cheiro e nem do seu gosto, mas te chupava mesmo assim. Mesmo quando você teve aquela infecção urinária.
   Eu nunca gozei. Você teve uns bons momentos. Às vezes, nada. 
   Lembra? Era bem estranho. Estávamos competindo o tempo todo...
   ... Qual de nós era o mais talentoso, o mais inteligente, o mais porra louca; quem lia mais e quem bebia mais antes de cair...
   Whiskey de dez conto descendo sem gelo. Deitávamos no colchão do seu quarto ao som de Depeche Mode e você me depreciava.
   Você gostava de morte (e eu também — mas de formas diferentes).
   Quando saíamos rachávamos a conta. Meus irmãos te odiavam ainda mais por isso. Tem toda a moral patriarcal. E você os desafiava
   Saindo do meio dos meus lençóis e passando em frente ao local de trabalho deles, numa declaração descarada: "acabei de foder sua irmã".
   Isso também demonstrava a minha falta de moral, na visão deles.
   Mas eu tinha pudor até demais.
   Quando você queria, eu não queria; quando eu queria, você não queria. Não tínhamos sincronia.
   Te fiz um belo almoço vegetariano (minha sina), mas você não apareceu.
   E teve aquele dia, na Praça do Forró...
   Você chegou, moicano e maquiagem, a pele mais canela e aveludada do que nunca, como numa foto em alta resolução; uma camisa social vinho sobre uma camiseta toda suja de tinta. Um jeans surrado, igualmente manchado. Te achei tão sexy. Quis pegar no seu pau e te beijar ali mesmo. Mas apenas disse, a voz quase sumindo: "você é tão sexy". Seu olhar alcançou o meu, cheio de delineador e impaciência, e você não disse nada.
   Bebemos a cerveja barata e ficamos sem dinheiro para a condução... andamos até a sua casa. Ao chegarmos eu estava toda suada e descabelada, mas me sentia estranhamente fêmea.
   Você comeu brócolis e me deu presunto, me censurando de forma passivo-agressiva por comer bicho.
   E tinha uma menina, eu acho que se chamava Carol ou Ana ou Beatriz, um desses nomes de moça de família. Eu não sentia nada por você além de ciúmes. Era a mais pura definição de terror. E acabou.
   Mas hoje eu estou sozinha e entediada. Meio angustiada. Estava acompanhando os ultrajes do Big Brother Brasil, veja a decadência! Ouvi Jeff Buckley pensando em uma pessoa . E depois você surgiu no meu pensamento. Nem sei de onde veio.
   Eu poderia te mandar uma mensagem... Eu sei que faz uns 6 anos. Eu não te suporto. E nunca foi muito bom.

Oi sumido

Não. Não sou tão sutil.
E aí, quer foder?

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Chokito

   O meu avô, seu Ciço, diz em alto e bom tom, para quem quiser ouvir, que eu sou sua neta preferida. 
   Essa predileção não é baseada em convivência; não é porque ele me conhece e me acha uma garota incrível e inteligente ou bonita. Não é porque eu sou bem-sucedida e lhe dou mil orgulhos. Não é por eu ter sido publicada em dois livros que ele não compareceu ao lançamento, ou por eu ter sido exposta com minhas pinturas, coisa que ele nunca soube; não é porque eu fui engajada politicamente na escola, quando o único argumento político dele é criticar o PT. Não é porque fui aceita em duas universidades, às quais não levei ao fim. 
   A preferência ocorre pelo simples fato de que eu fui sua primeira neta.
   E de fato, eu fui a primeira filha, a primeira sobrinha, a primeira neta... Eu sou a primogênita, em ambas as famílias Santos (embora não carregue o sobrenome) e Lira (o qual ostento com orgulho), e foda-se se você acha que o verdadeiro primogênito tem que ser um homem. Eu estava nesse mundo seis meses antes do Rodrigo chegar, e um ano antes do Junior chegar e três anos antes do Felipe surgir. Foda-se o patriarcado!
   O meu avô não me conhece. Não diria que somos exatamente distantes, mas também não somos próximos. A última vez que nos vimos tem mais de dois anos, eu ainda tinha cabelo roxo — conto as datas de acordo com a cor do meu cabelo quando um determinado evento ocorreu, o que me deixa um pouco perdida, porque há quase dois anos eu parei de mudar a cor deles quinzenalmente.
   Nos falamos por telefone depois disso, mas se não sou eu ligar, ele não liga. E quando eu ligo, ressentida por este fato, ele logo diz alguma coisa que ativa um gatilho emocional, e eu dou alguma desculpa, me despeço e desligo.
   Ele diz que me ama muito. Não apenas sou sua neta preferida, ele me ama —  afirma. E eu digo "também te amo, vô", e digo com facilidade, não com o embaraço que declaro meu amor aos meus irmãos. Porque no caso dele, não é verdade, embora também não seja mentira.
   Eu tenho muitas lembranças sombrias e mágoas profundas em relação a ele. Quando ele diz que me ama, eu não penso muito no assunto, porque se eu parar para pensar, eu não acredito. 
   Mas às vezes eu fico pensando em alguns momentos, talvez meia dúzia deles, em que eu me senti amada por ele, e nos quais o amei de verdade, sem meios termos.
   Como quando eu cheguei da Igreja uma vez, em 1998, e ele estava assistindo Chiquititas e me deixou assistir com ele, enfrentando a restrição da minha mãe... Isso não era rotineiro. O meu vô gosta de ter as coisas dele só para ele. A TV, o rádio, a coleção de vinil, o gosto musical, o programa, o filme, o momento, o espaço, o chão que ele sentava para assistir Chiquititas. Mas naquele dia ele dividiu o chão comigo, e nós assistimos Chiquititas juntos.
   Ou outra vez, que eu nem tenho muita certeza de que aconteceu de verdade, porque faz tanto tempo e foi tão incomum... Ele estava sentado numa cadeira, e eu estava deitada nas pernas dele, de bruços, as minhas pernas penduradas no ar, e ele acariciava minhas costas e meus cabelos com gentileza, com mãos de vô, em silêncio. Um momento tão atípico, que eu fiquei torcendo para que durasse uma eternidade ou duas. Mas talvez eu tenha inventado este momento.
   E teve aquela vez, eu tinha 16 para 17 anos, era o meio da tarde e eu ainda estava dormindo. Me acordaram dizendo: "o seu vô está aqui", e, atordoada, eu não acreditei no que ouvi e perguntei: "quem?", "seu vô", "meu vô...? o Cemar?". Como se eu tivesse outro avô! Mas aquela foi a primeira e única vez que ele me visitou, então não estranhem muito minha reação sonolenta. 
   Eu levantei da cama, e tudo que lembro daquela tarde é que eu não escovei os dentes nem alinhei os cabelos antes de ir encontrá-lo na sala; que o admirei como quem vê uma miragem; e que quando lhe contei que estava aprendendo a tocar violão (e por aprendendo, leia-se, eu estava dedilhando o violão a esmo), ele, que toca muito decentemente, pediu meu violão emprestado e tocou alguma música dos Beatles. 
   Alguns dias mais tarde, quando eu o visitei, ele me mostrou, mas não me deu, uma revistinha com cifras de músicas dos Beatles. 
   E eu comecei a ouvir os Beatles para ter algo em comum com ele, na esperança de que um dia pudéssemos ouvir The Beatles juntos. Eu comecei a ouvir Carpenters porque pensei que poderíamos ouvir juntos, e comecei a ouvir Bob Dylan e Rolling Stones porque pensei que poderíamos ouvir juntos! Até decorei músicas e títulos, pensando em impressioná-lo caso ele testasse meus conhecimentos. Ele nunca o fez.
   Uma das memórias mais marcantes que tenho do meu vô é dele sentado no chão de sua sala ouvindo "I Should Have Known Better", do Jim Diamond, no último volume. A casa chegava a tremer. Ele estava de pernas cruzadas e tinha os braços ao redor delas; os olhos fechados e expressão cheia de tormenta, balançando a cabeça e o corpo para a frente e para trás, ignorando completamente o resto do mundo. Ele parecia possuído. Essa visão ficou na minha cabeça por muitos anos antes de eu criar coragem e lhe perguntar o nome da música (e não sabendo falar inglês à época, eu só sabia cantar a parte do "I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I-I")...
   Nós nunca ouvimos música juntos em um de seus estéreos potentes (toda semana ele arrumava um novo, roleiro que é), no chão de sua sala. Eu propus algumas vezes, e ele concordava, mas quando eu chegava à sua casa ele já havia esquecido tais planos, e passávamos a tarde, eu, ele e minha vó, sentados à mesa falando de coisas e pessoas que não me interessavam; vez por outra um dos dois me pedia um bisneto e eu respondia com silêncio indignado ou sorriso amarelo, e ali eu não sentia amor fluindo em nenhuma direção.
vó, Cíntia, seu Ciço
   Mas com tudo isso, quando o meu avô diz que me ama, e a minha mãe me garante que eu sou a paixão da vida do seu Ciço, e se eu estou propensa a acreditar na hora, o que me vem em mente mesmo é ele chegando da rua com um chokito para mim. Enterneço pelo fato de que ele sabia que chokito era o meu chocolate preferido, e o fato de que eu, mesmo muito nova, sabia que chokito não era barato; Por ele ter passado por algum lugar — uma padaria ou um bar —, ter visto um chokito e ter pensado em mim, sua neta preferida. O fato de ele ter vários netos e trazer chokito só pra mim. Ele fazia isso às vezes.
   Ontem eu comprei um monte de chocolate, porque estava triste. Comprei dois prestígios e uma caixa de um genérico de bis, que é bem gostosinho. Comprei um chokito. Acordei hoje e comi todos, menos o chokito, e agora o meu estômago está doendo. Eu olho para o chokito e sinto um nó nas tripas. Um nó na garganta.
   Eu acho que vou guardar esse chokito na minha lata de lembranças, com todas as fotos da minha infância, e comê-lo daqui uns dez anos, quando o seu Ciço tiver morrido, e só me restar a culpa por todas as vezes que não fui visitá-lo, mesmo querendo, porque ele não conseguia atingir minhas expectativas. Só porque ele nunca quis ouvir Beatles comigo, sentado no chão da sala. Ele, que me ama apesar de eu ser a primogênita e não o primogênito. Apesar de eu não ser bem-sucedida, apesar de não lhe dar mil orgulhos. Apesar de eu não ser incrível, nem inteligente, nem bonita como suas outras netas. Apesar de não carregar seu sobrenome. Apesar de não ter me formado, apesar de nunca ter aprendido a tocar violão, apesar de não ter lhe dado um bisneto, apesar de nunca ter tido um namorado para lhe apresentar, apesar de ter os braços cheios de cicatrizes que ele não entende, apesar de não ser normal. Ele, que me ama, apesar de não me conhecer.
   Vai sobrar apenas a culpa e o chokito.
   Eu vou esperar, e vou cometer suicídio com uma barra de chokito, nestlé! Essa barra aqui, que carrega o seu nome!

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

a morte do intelecto

Eu estive lá.
Eu sofri 
um pouco.
Eu sentei em cadeiras desconfortáveis.
Eu sou uma lágrima do sol.
Sou uma colina pela qual 
os poetas correm.
 Inventei o alfabeto 
depois de observar o vôo das garças 
que fizeram letras com suas pernas.
 Sou um lago na planície.
Uma palavra 
numa árvore.
Sou uma montanha de poesia.
Sou uma blitz
no inarticulado. 
Eu sonhei 
que todos os meus dentes caíram 
mas a língua sobreviveu 
para contar a história. 
Porque sou um silêncio 
poético. 

(Autobiografia - Lawrence Ferlinghetti)

   A noite passada eu tive um sonho, a princípio triste. O conteúdo principal não interessa. Mas eu chorava, e tinha alguma coisa prendendo minha fala. Eu puxava minha língua para fora, ela era gigantesca, e eu estava a ponto de cortá-la com uma tesoura. Impedia a mim mesma. Acordei. Voltei a dormir. Sonhei que tinha uma gosma preta e enorme, feito chiclete, no céu da minha boca. Eu puxava, puxava e ela não saia por completo nunca. Me angustiava, me sufocava, me impedia de falar. Eu estava na escola Benedito Calixto, e abandonava a aula na metade, puxando a gosma, mas quanto mais eu puxava, mais ela vinha.
   Estava na rua. Tinha um monte de terreno baldio e gente suspeita. Tentava esconder o celular dentro da calcinha, mas não conseguia, e o colocava no bolso da minha mochila. Caminhava desconfiada, olhando para os lados, ainda puxando a gosma e tentando encontrar o meu caminho. Alguns homens me seguiam. Ouvia um deles perguntar para um grupo de outros homens se eu era dali, diziam que não. Dois deles me paravam num corredor estreito, anunciavam o assalto, e eu protegia minha mochila, tornando óbvio que o que interessava estava ali dentro. Tentava lidar com a gosma e com a situação.
   Eu dizia: "por favor, me deixem ir! eu sou apenas uma estudante!". Esperava pelo momento em que eles sacariam suas armas, mas o que eles tiraram dos bolsos foram mesmo adagas, prontos para me picotar se eu não lhes entregasse alguma coisa. Mas eu teimava, não lhes daria nada.
   Me atiraram ao chão. Eu protegia minha mochila. Eles pairavam acima de mim com suas adagas e eu implorava: "não me matem, eu sou apenas uma estudante! não me matem, por favor! sou apenas uma estudante!". Implorava, mas não cedia.
  Eles me achavam patética, implorando ridiculamente no chão, com gosma grudenta saindo da boca, e sangue, que viera de algum lugar. Então  eles jogaram as adagas ao meu lado e foram embora, enojados com a minha covardia.
   Eu ainda estava no chão, recolhendo as coisas que haviam caído da minha bolsa, quando surgiu outro homem, com outras intenções, e com arma em punho. Eu peguei a adaga e o matei antes que ele tivesse chance de qualquer coisa. Corri, temendo que seus companheiros chegassem para me matar.
   Quando penso na morte, de forma natural, num acidente ou num assassinato, eu penso que não quero morrer. E quando eu penso na existência, eu penso em suicídio. Tem uma grande diferença entre morrer e se matar. Entre existir e viver.    
   A última vez que eu tentei suicídio, não tive medo. Eu tive certeza. Depois de uma festa familiar — acho que o aniversário da minha avó —, eu subi para o meu quarto com algumas latinhas de cerveja e tomei cartelas dos mais variados medicamentos, que tinha à minha disposição graças aos meus meses de rato de laboratório no HC, sob a supervisão do meu manipulador, mas querido doutor Marcelo (que por sinal, eu acredito que deveria tomar tantos remédios quanto eu, para tratar de sua sociopatia. É apenas o meu diagnóstico, você pode procurar uma segunda opinião, querido). 
  Entre o repertório: Topiramato, bupropiona, lítio, quetiapina, abilify, gabapentina e o temido heimer, que serve para tratar, como o nome sugere, alzheimer, mas estava sendo testado em mim, "simples" paciente portadora de transtorno mental. Àquela altura eu tinha uma sacola de supermercado cheia de medicamentos que sobravam entre uma consulta e outra. Todos eles não caberiam em mim, escolhi, portanto, quase que aleatoriamente.
   Coloquei dois colchões no chão, um ao lado do outro, para que eu não fosse ouvida me debatendo caso tivesse uma convulsão. Tranquei a porta do meu quarto, mas sabia que ninguém entraria, a não ser que eu passasse muitos dias sem dar o ar da minha graça na cozinha. Coloquei música para tocar on repeat no celular: o álbum era o Meteora, do Linkin Park. E por fim deitei, coloquei os fones e dormi quase que de imediato. Não sei se os remédios já faziam algum efeito ou se eu simplesmente fui capaz, por uma vez na vida, de desligar o meu cérebro. Não chorei. Eu estava certa do que queria e estava certa de que aquela vez era para valer; não pediria ajuda no último momento, não acordaria nunca mais. 
   Ledo engano. Dormi, descobri depois, por aproximadamente 30 horas, e acordei, ah, sim, eu acordei, ao som de Linkin Park. Estava atordoada. Não é figura de linguagem, eu estava atordoada. Era como se eu estivesse bêbada, só que muito pior. Minha cabeça girava insanamente, feito um pião, e ao me levantar, com esforço, cambaleei pelo meu quarto, tentando me segurar à alguma coisa, mas nada parecia estar ao meu alcance. Não conseguia focar minha visão em lugar algum; quando eu olhava para as coisas era como se estivesse vendo-as multiplicadas por mil. Minha pele ardia, como se eu tivesse ficado exposta ao sol por todo o tempo que dormi. A despeito disso, tremia loucamente, morrendo de frio. Meu coração vibrava rapidamente, desconfortável dentro da minha caixa torácica. Não havia o menor traço de estabilidade no meu corpo, por dentro ou por fora, e menos ainda na minha mente. Eu estava confusa, não sabia quanto tempo havia se passado. Não sabia se estava viva ou morta. Tentava respirar fundo, fazer todas aquelas sensações passarem, mas era inútil. Comecei a chorar. Por estar tão fodida, pela agonia de tudo que estava acontecendo ao meu corpo.
   Consegui, com alguma dificuldade, destrancar e abrir a porta, e chamei minha madrasta, que estava no quarto ao fim do corredor do meu. Ela veio, e eu, deitada, porque não conseguia mais me manter de pé, expliquei, voz pastosa e difícil de sair pela garganta, o que havia feito e que precisava de ajuda. Meu irmão caçula, à época com uns 4 ou 5 anos, me assistia, e eu sentia vergonha e pesar por fazê-lo me ver daquela forma. Ela disse "ai meu Deus", e me explicou que eu não havia saído do meu quarto por mais de um dia. Foi chamar meu pai, que surgiu em seguida, nervoso, dizendo coisas como "eu não acredito que vou ter que passar por isso de novo", e outros despautérios que não cabiam na boca de um pai vendo sua filha naquela situação, e que de forma geral não ajudaria em nada. A muito custo, minha madrasta o convenceu a me levar ao hospital. Ele relutava com a ideia, desgostoso de ter que perder seu tempo dirigindo seu estorvo de filha, que não estava morrendo.
  Minha vó estava no andar abaixo, aflita. Entramos no carro, eu, meu pai e minha madrasta. Meu pai dizia palavras duras, brigava comigo, mas aquela era a menor de minhas aflições. Os efeitos físicos eram muito mais devastadores.
   Chegamos ao hospital. Meu pai avisou que não ficaria ali. Entramos, ele apresentou a situação, deu meus dados, me deixou sentada numa cadeira esperando pelo atendimento do cardiologista, e foi embora. Me buscaria mais tarde.
   Eu mal conseguia ficar sentada, pois meu corpo estava pesado e cambaleava. Para a frente, para os lados. Eu tentava segurar minha onda. 
   Passadas algumas horas, fui atendida. O médico me perguntou o que eu havia tomado. Confusa, respondi alguns dos nomes que lembrava. O heimer me preocupava mais, por seus efeitos neurológicos. Ele me disse que era impossível eu ter tomado todos os remédios que alegava, pois se o tivesse feito, estaria morta. Além do mais, já era tarde para lavagem estomacal, então não havia nada a ser feito. Pois, doutor, eu tomei, e talvez eu esteja mesmo morta, porque esse mundo se encaixa perfeitamente na minha visão de inferno.
   O médico descrente fez o exame cardiológico, não sei dizer o nome. Analisou o que viu e me dispensou. Eu fui até o balcão de atendimento e expliquei que recebera alta, mas que não tinha condições de voltar sozinha para casa. Me disseram alguns sinto-muitos, não levamos pacientes às suas casas, e na falta de escolha, fui caminhando, em zigue-zague, para a rua. Estava em frente ao hospital, desnorteada, quando chegou o meu pai com seu carro, e dessa vez, em silêncio, dirigiu. Chegamos em casa. Eu subi para o meu quarto. Os efeitos duraram por meses. 
   Meus olhos ficaram fundos e negros, minha pele estava laranja, meu corpo não parava quieto nem mesmo por um segundo; eu era incapaz de ficar sentada por mais do que alguns minutos. Meu coração não desacelerava. Minha mente era incapaz de seguir uma linha de raciocínio. Eu não conseguia dormir, falava pouco, minha visão estava sempre turva. O pânico de que nunca mais voltaria ao normal era o que mais me afligia.
   Em casa ninguém falou nada sobre nada. Aos poucos, muito lentamente, em meio à solidão, a maioria dos efeitos foram se dissipando. Não estive completamente só, é verdade, porque tive Charles Chaplin. Quando minha visão deixou de ser borrada e minha cabeça parou de girar, aproveitei que tinha baixado, uns meses antes, todos os curtas de Chaplin, e os assisti. Com a inquietação de um corpo que não parava de tremer e se sacudir, mas assisti. E aqueles curtas fizeram bem ao meu espírito. O meu preferido é One A.M.
   Após muitos meses, minhas pernas foram aquietando. Meu corpo foi parando de tremer. Meu coração desacelerou. Eu voltei a conseguir sentar e assistir coisas mais longas do que 10 minutos. Mas nem tudo voltou ao normal. Minha mente não é tão rápida quanto já foi, eu mantenho problemas severos de concentração, que me afetam intelectualmente, e minha fala se tornou lenta e confusa; eu esqueço as palavras, repito pensamentos e gaguejo. Se já não gostava de falar antes, hoje em dia tal ato me provoca maior apreensão. Eu tentei matar meu corpo, e matei parte do meu intelecto. Esse corpo resiste, ele teima em continuar.
   

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Querido Diário: IDEAIS, Cíntia de 2011

11.07.11

"A gente brigava por um mundo melhor. Um mundo em que as pessoas se amassem, em que as pessoas pudessem comer, beber, brincar, rir, fazer e curtir arte"
Lúcia Murat


   Eu tento e tento, mas não consigo me adaptar aos costumes da sociedade. Será que algum dia as coisas estiveram no lugar? Será que algum dia estarão? Qual a sentido de lutar para haver paz, prosperidade? Milhões e milhões de pessoas morreram por ideais, às vezes algumas coisas até avançam, mas outras logo retrocedem.
   O ser humano não sabe viver em paz? Isso os perturbaria de tal maneira que apenas buscam guerras?
   Para o entendimento todo mundo tem que ceder em alguma coisa, uns mais, outros menos, mas todos precisam [ceder]. Despir-se de preconceitos, amar ao próximo como a um irmão. Isso é muito difícil, mas não impossível! Respeitar a Natureza, todos os seres, deveria ser uma espécie de senso comum. Por que os humanos se sentem tão superiores? A Bíblia lhes dá tal poder?
   Eu pensava que a religião deveria ser algo para nos deixar em paz, não soberbos e mesquinhos. As pessoas deveriam duvidar de tais ensinamentos.
   Eu não posso evitar a tristeza, porque quando olho para a sociedade vejo como as pessoas encaram a violência em geral com naturalidade — muitas vezes culpando o agredido enquanto os agressores saem com sorriso de lobo. (...)
   [Mas] as pessoas não conseguem tolerar as diferenças (...) Acham que não há mais racismo e escravidão, mas nós somos [todos] escravos. E carrascos.
   Olham com maus olhos tudo que não compreendem, e ao contrário de tentar entender, hibernam na ignorância e ditam suas sentenças.
   Enquanto eu, que em algum momento da vida pensei que sabia de tudo e hoje vejo que não sei nada, sinto o quanto é difícil julgar esta ou aquela pessoa, pois só sabe o que pensa quem o pensa.
   Mas eu também penso, e devo saber o que quero para mim e seguir o meu rumo sem ferir ninguém.
   O que sei é que empatizo com toda e qualquer dor, a princípio, mas também não perdoo quem faz o mal, e não darei a outra face.





12.02.16
Eu já fui uma pessoa melhor.
 Mas continuo contraditória.