sábado, 7 de outubro de 2017

lucky strike

   Eu tenho asma, sabe...
   Quando eu era criança, enrolava um pedaço de folha de caderno, acendia e tragava, imitando as pessoas que eu via fumando nos filmes — e ao meu redor. Muita gente fumava nos anos 90, não é como hoje em dia que todo mundo se preocupa tanto.
  Quando eu não acendia, porque o papel queimava muito rápido e a fumaça era literalmente intragável, eu ficava com o cigarro de mentira entre os dedos. Sentava, levava à boca, imaginava minhas tragadas. Fingia que estava em um restaurante chique, com uma taça de vinho francês e um prato de macarronada à minha frente.
   Alguns anos antes, quando eu ainda frequentava a igreja, participei de uma peça de teatro com o Francis, na qual éramos adolescentes rebeldes e sem futuro que fumavam cigarros e falavam palavrões, e outros jovens nos salvavam da perdição com o evangelho. Mas ali, naquela época, fumando cigarros de mentirinha, eu era livre da igreja, era livre da condenação.
   Hoje é um desses dias em que eu me perguntei constantemente o que exatamente eu estou fazendo no mundo. Eu fico vivendo um dia de cada vez, esperando que o próximo seja melhor. Fico imaginando cenários, imaginando pessoas, que fora da minha imaginação são completamente ordinárias, mas dentro, como elas são incríveis...
   Lavei meus cabelos. Estava chovendo e eu pensava que a energia elétrica iria cair, como é de costume no meu bairro, e eu não teria como secá-los. Afora isso, meus pensamentos estavam povoados com dinheiro; com a quantia que preciso para comprar meus cosméticos e pagar meus óculos, colocar crédito no bilhete, comer alguma besteira para não passar vontade, tomar uma cerveja de vez em quando e agora eu tenho que pagar a geladeira também, e pensava como nunca tem dinheiro suficiente para que eu faça o curso que quero fazer — para dar continuidade à minha vida e ganhar dinheiro de verdade para ter planos maiores do que comprar meus cosméticos e pagar meus óculos e contar os centavos para inteirar a condução e pagar a geladeira que ninguém me consultou ao comprar, e que ficam tirando da posição que eu coloquei — para que a porta não bata no móvel que fica em frente a ela. 
   Ir embora da casa da minha avó. Levar todos os meus livros, meus DVDS, meus pôsteres (especialmente o do Adrien Brody), meu computador, meus cosméticos, e deixar o resto. Embora a minha atual cama seja muito boa. Ela sustenta o meu peso sem reclamar, e também não reclama quando há companhia somada ao meu peso. Talvez eu levasse a cama. Eu poderia comprar um guarda-roupas sem gavetas. Eu odeio gavetas. 
   Pois eu estava secando os cabelos, porque a chuva parou e a energia não caiu, ainda bem, e estava  pensando que preciso de aproximadamente três potes de creme de pentear por mês e 4 desodorantes, e duas caixas de lenço de papel para limpar meus óculos, e que tenho creme hidratante o suficiente para alguns meses, e que só vou ter dinheiro no fim do mês, e nem sei quanto. Pensava em tudo isso, e numa certa pessoa, quando, para secar uma área específica do cabelo, eu virei minha cabeça, olhei para a minha estante magnificamente abarrotada e vi o maço de lucky strike, que eu guardei embaixo de um livro do Nick Hornby, como souvenir de uns meses atrás, quando eu fumei por algum tempo feito uma chaminé, mesmo tendo asma. Cigarro me deixa tonta, mas a sensação não é das piores. 
   Eu sempre odiei o cheiro de cigarro aceso, o cheiro de cigarro quando as pessoas estão fumando, mas algo no cheiro de cigarro impregnado nas roupas das pessoas que fumam há muito tempo me causa conforto. Eu gosto de abraçar fumantes. É como... encontrar aquilo que eu posso chamar de lar. Não importa quem seja. Eu posso fechar meus olhos abraçando um fumante e vou me sentir em casa. Se a pessoa estiver usando uma jaqueta jeans, então...
   Desliguei o secador. Eu tentei diversas marcas de cigarro quando comecei a fumar, em março desse ano, quando eu não sabia o que fazer comigo mesma. Fumei primeiro o camel, que comprei solto num bar que só tinha homem e eles ficavam olhando com estranhamento enquanto eu bebia minha cerveja, como se eu estivesse invadindo um espaço sagrado. 
   Em 2009 eu havia tentado fumar derby, que roubei do meu tio e pensei tudo bem eu roubar os cigarros dele, ele roubou minha inocência, e não gostei nada, nada. Minha língua ficou pastosa, eu odiei o gosto, o cheiro e a forma como entrava nos meus pulmões. Acabei apagando-o no meu pulso, e que dor foi aquela!... 
   Então, após tal experiência, comprei apenas 2 cigarros, 50 centavos cada, e pensei que nem iria fumá-los. Contei para o Danillo e ele me disse que eu sou uma otária, com o que eu fui obrigada a concordar. Mas dessa vez foi diferente. Me senti diferente. Gostei de fumar. Me senti adulta. Mesmo assim, queimei meus braços com a brasa, porque eu sou assim. 
   Com a nova reação, comprei um maço de White. É um cigarro muito gostosinho de fumar. Leve, macio, entra com sutileza. Só depois de fumar quase o maço inteiro eu notei que ele estava vencido, e perguntei ao Danillo o que aconteceria se uma pessoa fumasse cigarro vencido, ao que ele me respondeu: "o que acontece com quem toma veneno de rato vencido?"... e eu ri, mas pensando bem, acho que depende da sorte de quem toma o veneno. 
   Acabado este, e não conseguindo achá-lo mais (a bem da verdade, eu só fiquei com preguiça de ir onde havia comprado antes, e fui em outro lugar mais perto), comprei o Minister, que não é um bom cigarro. Ele é forte e fedorento e as tragadas são estranhas. Então eu decidi que não iria mais fumar. Mas numa noite de euforia, agitadíssima e sem saber o que fazer comigo mesma, fumei 5 cigarros, acendendo um no final do outro, até que passei mal, e vale dizer que eu não tenho mais bombinha de salbutamol, então foi um momento delicado.
   Quando o Minister acabou, eu comprei o Winston blue, que também é muito bom. Eu estava sempre jurando que não precisava de cigarro, mas quando um maço acabava e eu ficava sem, batia uma certa angústia... 
   No dia em que eu fui internada, em abril, comprei quatro camel, e senti o quanto são horríveis enquanto os fumava, um atrás do outro, com um coquetel de maracujá enojante para acompanhar, sentada nos degraus do cemitério, me aquecendo para dar início ao show enquanto lia O Lobo da Estepe no escuro e tinha minha cabeça explodida das mais variadas maneiras.
   E no hospital, internada, os pacientes podiam fumar — em algumas horas do dia. Depois do almoço e depois do jantar, mas alguns enfermeiros mais legais deixavam a qualquer hora do dia, especialmente quando eles próprios queriam fumar. Era o momento de socialização, quando todos os loucos se reuniam numa área de fumante toda pichada com palavras incompreensíveis e profecias e versículos e desenhos de pintos e bancos quebrados e cinza de cigarro no ar. Quem não tinha cigarro aparecia para implorar um trago, quem não fumava aparecia só pela conversa, que fatalmente acabava com alguém surtando e saindo na porrada com outro alguém, e umas vezes eu tentava apartar. Noutras eu só assistia, tragando meu cigarro.
   Dentro do hospital, ao menos na ala psiquiátrica, o cigarro era a base de troca. Quem não fumava, mas tinha cigarros, os dava em troca de comida e outras coisas. Eu sempre conseguia cigarros, mesmo quando não tinha vontade de fumar, pois fiz amizade com muitas pessoas. Entre os loucos eu estava no meu lugar. Estava confortável. E devo dizer, que talvez pela medicação na cabeça, três caras me queriam, e para provar a devoção, me ofereciam cigarros, beijos roubados e chocolates contrabandeados.
   Lá nós fumávamos, em geral, eight, que é o cigarro mais nojento e pesado que já fumei na vida. Mas era barato, e os enfermeiros mais legais até levavam um maço para distribuir aos pacientes. Quando recebi alta, eu, que cheguei sem nada além do meu exemplar de O Lobo da Estepe e um desodorante, havia ganhado tantos cigarros, que tinha um maço cheio e outro pela metade; do eight ao winston blue. Deixei para um louco consciente, sob o olhar reprovador da minha avó.
   Fora do hospital, eu disse para mim mesma que estava farta de cigarros, mas comprei um maço de lucky strike, porque é a marca que sempre associei ao requinte dos fumantes abastados. E afinal, é a marca que o Thiago Mattos cita no meu poema preferido de sua autoria (não, da autoria do Paco Bernardo). Mas, devo dizer, deixou a desejar. É um cigarro muito forte para o meu gosto asmático, e não conseguia sequer fumar um inteiro, porque ficava de saco cheio na metade.
   Pensei em dar para alguém, mas quis guardar porque é o lucky strike e o Thiago Mattos o citou no meu poema preferido. 
  Até que hoje eu virei a cabeça enquanto secava os cabelos, e sentindo um vazio incontrolável e não sabendo o que fazer comigo mesma, logo quando eu estava tão empolgada, e nas tantas preocupações financeiras, é claro, eu o tirei de sob o livro do Nick Hornby, peguei um e decidi fumar lá no quintal, porque não quero impregnar meu quarto com cheiro de cigarro novamente.
   Sentei num dos bancos do quintal, olhando para o abacateiro picotado, com ódio e tristeza ao mesmo tempo, e para a ausência de estrelas e ausência da Lua. Hoje eu fui abandonada por todos. E pensei que é justamente nos dias em que preciso de conforto que as pessoas e as coisas me abandonam. Pensei na ala psiquiátrica enquanto apagava o cigarro, que continua muito forte para o meu gosto, mas que fumei até o fim, com certo prazer pelo estrago.
   Subi para o meu quarto. Sentei à minha mesa, respirando alto, pausada e intensamente, sentindo meu rosto ficar vermelho e ardente. Eu fico assim quando me bate uma raiva desmedida. A raiva era das pessoas, mas acima de tudo, de mim mesma. Eu não consigo me libertar! Eu sempre serei o lixo descartado das pessoas! Encarei as cartelas de remédios à minha frente e pensei em tomar todos, especialmente o diazepam. Me imaginei o fazendo. E aquela velha voz interior disse, em alto e bom tom: "a resposta para este pensamento está no seu último post, sua imbecil".
   Me contive. Eu não sei o que fazer comigo mesma. Por dentro eu quero gritar e socar tudo e todos até que as minhas juntas sangrem e minha visão fique embaçada pelo suor. Eu quero destruir o meu quarto e depois a minha casa e depois o abacateiro, porque agora ele está arruinado, e quero destruir o mundo e todos que o habitam, porque estão todos mais arruinados ainda! Todas as coisas são inúteis! Eu queria destruir todo e qualquer traço de sentimento que existe dentro de mim!
   Mas por fora, eu fiquei paralisada, o olhar fixo no nada, só imaginando como seria destruir todos e depois destruir a mim mesma.
   Peguei mais um cigarro, fui para o quintal. Havia passado um tempo, e agora a Lua se mostrava, embora fosse ofuscada por umas nuvens espessas. Um avião passava, lá no alto. Eu odeio aviões, barulho de aviões e sua capacidade de cair em cima das coisas. Mas não liguei. Eu fumei, tragando e olhando para o cigarro queimando, pensando em apagá-lo na minha própria cara. Uma formiga escalou minha perna e eu a joguei para longe. Eu odeio formigas.
  Hoje eu odeio todas as coisas e todas as coisas me odeiam. Pensei no conforto de abraçar fumantes, enquanto fumava meu cigarro, e quando terminei, senti o cheiro, o mesmo cheiro que me causa conforto, nos meus cabelos. Eu queria que alguém sentisse conforto em me abraçar e sentir o cheiro dos meus cabelos. Joguei o cigarro, finalizado, no chão.