segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

leitura: paciência



Título: Paciência
Autor: Daniel Clowes
Editora: Nemo
Ano de lançamento: 2017
Número de páginas: 181
Lido em: 31-12-23 a 01-01-24

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"Ela é a última pessoa em quem vou encostar. Pode ser que ainda tenha algum pedacinho, alguma célula
dela na minha pele."

Paciência, de Daniel Clowes, foi um presente que ganhei de aniversário e que me acompanhou nessa virada de ano solitária. Já li algumas obras do Clowes, sendo "Ghost World" uma das minhas graphic novels preferidas da vida. Além disso, sou apaixonada por enredos que envolvem viagem no tempo e paradoxos, e essa é a premissa dessa graphic novel, então eu já esperava que seria uma leitura do meu agrado. Eu tento não criar tanta expectativa sobre histórias com viagem no tempo, porque é algo muito difícil de conduzir sem deixar furos ou se tornar algo altamente previsível, mas sendo Clowes, não consegui evitar criar expectativas, porém posso dizer que mesmo com a expectativa elevada, ela ainda conseguiu me surpreender positivamente.
A história começa no ano de 2012, quando Jack Barlow e sua esposa, Paciência, descobrem que terão um filho. Eles ficam muito felizes com a notícia, mas por outro lado, sendo bastante pobres e vivendo num momento de crise financeira nacional, eles começam a entrar em desespero por todas as demandas financeiras que ter um bebê exige. Paciência está desempregada e Jack encara um trabalho com salário ínfimo e sem perspectiva de conseguir algo melhor, já que não concluiu os estudos. Ele tenta manter uma fachada de esperança para não preocupar a esposa, mas as preocupações financeiras fazem com que eles fiquem introspectivos, mantendo seus pensamentos de insuficiência para si mesmos, ao invés de tentarem resolver os problemas juntos. Eles vivem nessa dualidade: enquanto Jack se acha pouco para Paciência, Paciência se acha pouco para Jack. 
Aliás, comunicação não é o forte do casal. Paciência dá sinais de ter um passado tenebroso e que ainda lhe assombra, mas nas poucas vezes em que ela tenta se abrir, Jack não quer falar sobre, achando que é melhorar deixar o passado no passado, para que ela não fique mais chateada.
Um dia, ao voltar do serviço, Jack encontra Paciência morta. A polícia logo o coloca como o principal e único suspeito do crime e ele é jogado na cadeia, onde fica por 10 meses, passando pelas mãos de advogados públicos incompetentes. Até que um dia o libertam e informam que encontraram fibras e DNA de outra pessoa na cena do crime. Com o tempo que passou, o caso esfriou e é arquivado.
Jack decide investigar por conta própria e viaja até a cidade de onde Paciência veio, seis anos antes, para tentar descobrir mais sobre sua vida e talvez encontrar suspeitos ou a pessoa que a assassinou. Paciência não tinha família viva além de uma irmã de criação que é uma viciada em drogas e tem pouco de concreto para oferecer para Jack além do nome de um ex-namorado, "Andy". Jack procura muito por esse ex-namorado, mas não encontra rastros dele.
Então somos levados para o ano de 2029, num mundo futurístico, onde Jack, agora na casa dos 50 anos, foi incapaz de superar a morte de sua esposa e filho, continua amargurado e buscando pistas para solucionar o crime. Toda a vida de Jack gira em torno do que aconteceu. A única coisa na qual ele pensa além do passado com Paciência e em seu assassinato, é na vida que poderia ter tido ao lado dela e do filho. Ele não tem amigos e não se envolveu novamente com nenhuma mulher. Ao longo dos anos ele apenas nutriu sua obsessão e rancor pelo que aconteceu.
Até que ele conhece uma prostituta e lhe conta sua história. Ela então lhe conta sobre Bernie, um cara que é tão obcecado quanto ele pela morte de alguém do passado e que vive falando sobre viagem no tempo. Isso entra na mente de Jack, e como todas suas tentativas de investigação deram em nada, ele decide ir atrás de Bernie para tentar voltar no tempo e impedir a morte de Paciência e seu filho.
Após vigiar e seguir Bernie, Jack descobre que o homem construiu um dispositivo e fez um elixir capaz de enviá-lo ao passado. Ele então rouba tal tecnologia de Bernie e embarca em sua jornada para salvar sua esposa e seu filho. Sua primeira parada é em 2006, seis anos antes do crime. Jack vai para a cidade onde Paciência cresceu e começa a observar sua vida, tentando descobrir mais sobre ela e sobre as pessoas com quem ela convive, tentando descobrir quem a assassinou.
Nessa busca, ele acaba descobrindo coisas sobre sua esposa que nunca havia imaginado, e apesar de tentar não interagir com ninguém do passado e deixar as coisas seguirem o curso natural para que eles se encontrem e se casem, Jack acaba se envolvendo mais do que deveria nos eventos, o que pode gerar consequências no futuro que ele conheceu ao lado de Paciência...
Como disse, criar uma história sobre viagem no tempo não é uma tarefa fácil. Muitas pessoas que tentaram, no cinema ou na literatura, esbarraram em clichês ou meteram os pés pelas mãos, criando  roteiros cheios de furos e confusão. Daniel Clowes, no entanto, conseguiu conduzir e amarrar a história muito bem. Apesar da complexidade do tema, ele produziu uma narrativa clara, envolvente e sagaz, que aborda a dor do luto, a revolta pelas desigualdades sociais e, claro, a dificuldade de viajar para o passado sem criar uma profecia autorealizável. Além disso, também explora os impactos da viagem no tempo para o corpo humano, uma vez que somos sacos de células. Nesse sentido, é especialmente interessante acompanhar uma história do gênero por quadrinhos, já que nessa mídia não existe limitação nenhuma para efeitos especiais, desde que a pessoa responsável pela arte tenha talento e imaginação, e esse é o caso em  "Paciência". As artes são muito bonitas e detalhadas (até nos planos de fundo), com cores vibrantes na era mais futurística e com ambientação saudosista quando o personagem viaja mais para o passado. Nos momentos em que fica evidente os danos físicos da viagem no tempo, temos uma explosão psicodélica de formas e cores que tomam conta das páginas de forma extraordinária.
Como era de se esperar de Daniel Clowes também, apesar da crueldade explícita e do tom sombrio dos personagens, temos diversos momentos de humor ácido e linguagem muito desbocada. No entanto, vale ressaltar que em muitos momentos há uma apelação contra o corpo gordo. São muitos os momentos de estigamatização do corpo gordo e gordofobia recreativa. Tem vários personagens gordos e Jack ataca a aparência de todos eles.

Tirando isso, foi uma leitura muito interessante e divertida, que também me gerou alguma reflexão: será que se esse crime não tivesse acontecido, Jack e Paciência teriam realmente ficado juntos e sido "felizes para sempre" como ele fantasiou por anos? A conexão deles me parecia tão fraca. Eles eram claramente codependentes, mas ao mesmo tempo não se abriam muito um para o outro. Não se conheciam profundamente. É possível realmente amar alguém que não conhecemos? Acredito que esse é um clássico caso onde os sentimentos são amplificados pela perda, e que beira mais obsessão do que amor. Não que seja uma obsessão injustificada, afinal, ele perdeu a esposa e o filho, independente do que viesse a acontrecer entre eles no futuro. Mas no fim das contas, o Jack do futuro conheceu mais de Paciência do que o Jack que a perdeu no começo da história algum dia conheceria.
Por fim, o motivo do crime não foi super elaborado e nem o final que eu esperava, mas me agradou. Fez sentido para a história. E o final do personagem Jack também foi muito legal e fechou bem a história.

Leitura recomendada! 

* Uma pequena crítica que eu tenho, é para a tradução e revisão de texto, que em determinados momentos deixou a desejar, especialmente quando li um "ciclano" ao invés de "sicrano". Em escrita informal, amadora ou em tradução gratuita, eu não ligo para como as pessoas escrevem e considero que o importante é se fazer entender. Mas uma tradução e publicação desse porte merecia mais atenção e cuidado.

Vou dizer o final que eu esperava abaixo e isso pode ser um tipo de spoiler, então leia por sua conta e risco!
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Pensei que o prório Jack mais velho (que viajou no tempo) poderia acabar sendo o assassino por algum motivo. O próprio personagem levanta esse receio em determinado ponto da história