sexta-feira, 24 de março de 2017

amor³

  You're no good for me 
But baby I want you, I want you

  Eu fui, por muitos e muitos anos, viciada em me apaixonar. Até os 22 anos eu simplesmente não consigo me lembrar de uma fase na qual não estivesse apaixonada por alguém.
  A primeira vez que eu me apaixonei por um garoto eu devia ter uns 7 anos. O nome dele era Francis. A mãe dele cuidava de mim e dos meus irmãos às vezes. Lembro que a minha mãe nos acordava muito cedo para nos levar até a casa deles, que ficava na igreja que frequentávamos... Quase posso tocar as manhãs frias, o vapor saindo das nossas bocas durante a caminhada, o sono. E sinto o cheiro de xixi — eu fiz xixi na cama com frequência até os 8 ou 9 anos. Disfarçava enfiando as cobertas no meio das pernas na esperança de que elas absorvessemaquela coisa molhada e fria e minha mãe não notasse. Mas fazer o quê com o cheiro? Na maior parte do tempo, eu acho que as pessoas fingiam não perceber, por pena.
  O Francis era um bom garoto. Educado, não falava palavrão, e só uma vez mostrou o dedo, mas não o do meio, o indicador. Aquele ato foi, porém, digno da reprovação de sua mãe. O que vale, concordaram minha mãe e a dele, é a intenção. Ele era mais velho, como sempre. Se fecho os olhos ainda lembro do seu rosto.
  Ele me ensinou a fazer bolinhas de chiclete. Quando eu cresci mais um pouco, a aposta de todos era que seríamos namorados um dia. Ele corava quando eu entrava na igreja. Olhava atentamente quando eu cantava (se eu pudesse ser uma flor no jardim de Deus...♫), e uma vez ele sentou no banco bem atrás de mim e passou o culto todo mexendo nos meus cabelos. A sensação era tão boa que eu acabei dormindo.
  Um dia eu estava pendurando umas calcinhas no varal e minha mãe disse: "sabia que o Francis está namorando com a Débora?". Derrubei a calcinha, magoada e surpresa, porque a Débora era a minha melhor amiga. Ela também tinha cabelos cacheadinhos, e também cantava um hino na igreja (Deus não gosta de moleque malcrioso ♫), seria tão típico que até eu, então com 10 anos, teria entendido a probabilidade! Mas era mentira. Era mentira.
  Até que eu fui embora do bairro. Será que continuou sendo mentira?
  Mesmo com o coração povoado, o Francis era o Senhor supremo deste. Mas fui obrigada a seguir em frente, porque lhe escrevi uma carta após mudar para a casa do meu pai, e não sei se ele recebeu, se ele leu, só sei que não respondeu. 
  Depois teve o Tony. Toni. ToNYYYYY! Antonio Ricardo Pongeluppi!, a quem amei com loucura por boa parte da minha adolescência. O conheci aos 9 anos, ele era filho do então sócio do meu pai. Tinha 17 anos, fora do meu alcance em todos os sentidos. 
  O Tony não era um bom garoto. Ele flertava com todas as meninas e mulheres — inclusive com a minha melhor amiga à época, que nunca me deixa esquecer — e dizia coisas grosseiras com frequência. Ele gostava de jogar paciência no computador, ouvia Jorge Aragão (dizem que os dedos sentem sabor, quem vai saber? ♫) e odiava que eu escrevesse seu nome com y. Uma vez eu escrevi repetidamente em um caderno: TONY EU TE AMO TONY EU TE AMO TONY EU TE AMO TONY.... TONY! E lhe entreguei o caderno. Deixei apenas a última folha disponível para resposta. E a resposta veio: "Toni é com I, sua burra!" 
  Eu corri, melodramática como a personagem de um filme, e me joguei no chão, numa sala cheia de manequins pelados e sacos de roupas. Chorei, chorei, chorei calculadamente, até que ele apareceu, comendo uma coxinha, e se agachou ao meu lado. Riu um pouco, pediu desculpa embaraçado; seguimos em frente.
  Uma vez eu roubei o boné do Tony e o lavei, utilizando meia caixa de sabão em pó e um litro de amaciante, para que ficasse perfeito. No dia seguinte lhe entreguei o boné. Um dia depois ele chegou com o boné imundo, todo gotejado de tinta. Foi uma afronta direta. Chorei de novo! Ele não pediu desculpa.
  O pai do Tony me chamava de nora, e apesar dos desaforos, a coisa se estendeu por muitos anos. Uma vez, quando eu tinha uns 11 anos, estava subindo as escadas e a sainha que eu usava subiu pelas minhas coxas. Quando olhei pra trás o Tony estava lá embaixo, olhando de forma muito interessada. Ele disfarçou só um pouco. Eu arrumei a sainha só um pouco. Ficamos calados por um momento, e ele subiu atrás de mim. Gostei, e ainda gosto, de saber que a minha bunda e minhas coxas lhe causaram, naquele momento, interesse.
  Porém, certa vez o ouvi dizer: "ela é bonita — se fosse magra eu pegava!". Vem me pegar, Tony. Não, brincadeira, não vem não. Vi sua foto recentemente, e você está feio. Feio, Tony, você está feio, apesar de ser magro! Eu não te pegaria, Tony!
  Uma eternidade se passou, muitos caras passaram, e surgiu o Marcelo. A mais perfeita miragem. O Marcelo, o enigma. Marcelo, eu nem sei se você era um bom menino ou não, porque quando te conheci você já era homem.
  De abraços demorados e pernas roçando sob a mesa e poemas e viagens e idiomas e  carreira e Caetano Veloso (caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento ♫), o Marcelo era como o meu xixi: quente na hora, mas frio, muito frio após alguns minutos. O Marcelo, que me analisou e me diagnosticou e faturou com a minha dor e o meu amor. Manipulador, certamente. Homem, quando eu era uma menina perdida. Homens, lá dentro do coração, são piores do que garotos. São mais calculistas. Meninos fazem sem querer, homens pensam e fazem mesmo assim.
  Muitos caras passaram pelo meu coração e pela minha mente e pelas minhas pernas em dias e noites de febre constante, de insônia, de ansiedade. Francis, William, Johnny, Tony, Leonardo, Bruno, Israel, Felipe, Thiago, Rafael, Leandro, Daniel, Evandro, Wanderlei, Diego, Miguel, Caetano, Robson, Anderson, Alexandre, ... e tantos outros. Namorados de amigas, colegas de escola, professores, médicos, amigos meus, alguns maduros o suficiente, outros não... Pego meus diários e eles gotejam lágrimas, sangue e nomes, nomes, histórias semi-falsificadas, lembranças que escorregaram da minha memória para os meus olhos para os meus dedos, para a minha ...........
  E de tantos rostos e tantos nomes, são dois os caras que se destacam. Dois sonhos de uma noite de verão, um até mesmo sem nome. O que sonhei, o que ainda sonho.
  Eu estava em uma época selvagem e decidi fazer uma visita à minha amiga Adore, levar-lhe comida, pois ela alegava que estava passando fome. O problema: não me ocorreu que o metrô fechava a meia-noite, e fui expulsa da estação no meio do trajeto, indo parar em um dos lugares mais sujos e perigosos de São Paulo... a Luz.
  Sentei ali na calçada, esperando que desse o horário da porra reabrir, e um cara sentou ao meu lado, disse que era perigoso eu ficar sozinha, que ele me faria companhia (e veio a calhar quando uma barata me atacou).
  Não lembro de sua aparência. Não exatamente. Fica um registro abstrato na memória. Ele também havia sido expulso do metrô, me informou, e logo perguntou o que eu tinha nas sacolas. Lhe disse que tinha comida, perguntei se ele queria. Recusou o pão porque não tinha nada para colocar no meio. Não era um sem teto, apenas um corinthiano de corpo e alma, desses que conseguem falar sobre qualquer coisa, em qualquer lugar, fazer o que quiserem sem inibição.
  Por algum motivo ele foi parar no meu colo. Deitado nas minhas pernas, os braços sob a cabeça, exigindo carinho com sua fala mansa. E foi tão fácil oferecer-lhe afagos, que eu cedi. Toquei seu rosto, milímetro por milímetro, e pousei uma mão sobre o seu coração, sentindo-o palpitar, sentindo seu ritmo. Ele abraçou minha cintura, ainda deitado sobre mim, falando, falando, muito perto da minha buceta.
  Dormiu um pouco e eu o observei dormindo como se nos conhecêssemos, como se estivéssemos apaixonados. Ele quis me deixar dormir também, mas eu, vítima da insônia e da desconfiança, não precisava.
  E quando o metrô reabriu, simplesmente seguimos rumos separados sem ao menos um beijo. Qual era seu nome?! Não me lembro! Queria lembrar. Queria ter repetido o ritual. Queria tê-lo conhecido. Queria ter sentido seu coração mais vezes. Mas talvez ele só esteja na minha cabeça agora, 6 anos depois,  sendo digno de nota nesta pequena divagação sobre meus amores, porque permaneceu um desconhecido.
  E, por fim, teve o Jonathan. O meu amor bandido, o cara que me apresentou à cocaína.
  A faculdade estava insuportável. A sala inteira me odiava, e eu odiava a sala inteira. Cabulei aula e desci antes do meu ponto, indo parar no Cemitério da Saudade. Era uma das primeiras, da série de visitas que prestaria ao local... Estava sentada ali, ao lado do portão dos fundos, pensando na vida, quando o Jonathan chegou e perguntou se podia sentar por ali. Respondi que sim, claro. O observei... Ele tirou um pino de cocaína do bolso, cheirou um pouco. Olhou para mim e perguntou, com naturalidade: "quer?". Frustrada, deprimida, curiosa, respondi que sim. Ele ficou de joelhos e se aproximou de mim, assim, engatinhando. Colocou um pouco do pó na lateral da própria mão e a estendeu para mim. Eu, sem ter certeza de como, fiquei também de joelhos e mandei o pózinho amarelado pra dentro do meu sistema pela primeira vez na vida. Agora mesmo posso sentir a sensação da porra no meu cérebro fodido pela depressão e pelos remédios psiquiátricos! A calmaria, ao contrário do que a maioria das pessoas sentem. Meu corpo ficando dormente nos lugares certos.
  Repetimos o ritual. Logo fiquei dependente do Jonathan e do pó na mesma proporção.
  Ele era um bom garoto. Voz baixa, rejeitado pela família, carinhoso. Me deixava ficar encostada nele por horas, enquanto eu mal sentia meu corpo, dopada por quetiapina, whisky e pó.
  Ele me roubou uma vez. Pediu meu MP3 emprestado, disse que levaria na boca para arrumar pó pra gente, que no dia seguinte arrumaria dinheiro para resgatar o aparelho. Ele foi — com o meu bilhete — e não voltou. Eu fiquei sem pó, sem MP3, sem bilhete e sem Jonathan. Fiquei foi com um olho roxo e inchado. Liguei para a casa dele, fiz cena, fui chamada de vagabunda por sua irmã. Mas eu até que gostava do título de vagabunda.
  Alguns dias depois ele apareceu no cemitério. Eu estava tomando black stone com gelo quase derretido, que havia carregado em uma lata de leite, da minha casa até o cemitério. Eu, puta da vida, ele, sorridente e tranquilo como sempre. Safado. Disse que eu estava bonita. Me derreti. Disse que eu era muito chique, tomando whisky enquanto ele não tinha dinheiro nem para tomar pinga. Lhe ofereci meu whisky. Ele aceitou... Ele aceitou a garrafa toda. Disse que levaria a garrafa na boca para conseguir pó pra gente, e que dessa vez voltaria. Eu cedi. Leva. Leva a minha garrafa de whisky, leva a minha mochila também, leva o meu coração, toma aqui!
  Mas dessa vez ele voltou. E me disse: "eu falei que ia voltar!". Informou que conseguira dois pinos, mas eu sabia que ele tinha mais escondido. Não me importava, dois pinos estava de bom tamanho, e dessa vez ele havia voltado. Fiquei tão comovida com o fato de ele ter voltado, que o segurei pelo queixo, guiei o olhar dele para mim e beijei sua boca, com carinho e ardência ao mesmo tempo. E aquele... Ah, aquele é o beijo que eu vou levar para sempre na memória como o meu primeiro beijo, mesmo não tendo sido o primeiro nem o segundo nem o terceiro. 
  Nos beijamos e cheiramos, cheiramos e nos beijamos. Ele pediu para eu chupá-lo, eu me neguei.
  Mas o Jonathan estava mais propenso a ir do que a ficar. E um dia foi. Não o vi mais, não de verdade, apenas em um delírio de alucinógeno. Ei, Jonathan! Me espera! Ei! Opa, desculpa, pensei que fosse outra pessoa. E não era ninguém.
  Se eu pudesse ter uma pessoa, com todos os dramas e pequenos abusos e delinquência, seria o Jonathan. Porque de todos os caras que eu amei, o Jonathan é o mais EU que já existiu. Fodido como eu. Auto-destrutivo como eu. Tão morto quanto eu. Eu só queria ficar encostada nele por horas. Cheirar com ele por horas. Beijá-lo por horas. Repetir tudo por horas. Até morrermos.


Ei, Jonathan. Cadê você, porra? Foda-se a sua família de merda! EU te amo!