quinta-feira, 9 de março de 2017

Vermelha

  Esta noite está tudo tão vermelho! A corda é vermelha com bolinhas brancas e pretas; o batom é vermelho-melancia, mas sem gosto, porque é velho; o fluido que escorre da minha carne mutilada é vermelho e grosso e quente; o meu rosto está vermelho também, pelo sentimento de inadequação. Até as unhas dos meus pés (desprezo os pés dos outros, mas tolero os meus) trajam vermelho-sangue.
  E o meu coração? Ele não é vermelho de verdade, mas bombeia sangue e se molha no sangue e engole o sangue, e no fim, quem é capaz de lhe tirar o vermelho? É possível, mas não vale o esforço. 
  A minha cabeça lateja, meu corpo treme, mas não é de frio. Me sinto sufocada e quente. Abro a janela. Há dentro de mim uma orquestra ou sinfonia, não sei a diferença, entoando o som mais tenebroso e vibrante que já senti:  tumTUMtumTUMtumTUMTUM, subindo e descendo  aceleradamente, insuportavelmente... 
  Tristíssimos bemóis. Isso me lembra Augusto dos Anjos, e eu choro sempre que leio Augusto dos Anjos. Qualquer um que tenha uma porra de uma alma chora lendo Augusto dos Anjos!