domingo, 4 de outubro de 2015

Condenados

 homenagem aos meus amigos que partiram. Desenho e tatuagem by Luana Diphusa

   Por muito tempo acreditei que a minha vida começou a ir ladeira abaixo ali pelos 16 anos, mas a verdade é que existem muitas lembranças que indicam um transtorno que sempre esteve presente, ainda que sem nome. Enquanto criança, 6 ou 7 anos, sempre tive uma sensação esquisita, como se estivesse flutuando, como se a minha vida e todas as pessoas ao meu redor não fossem reais. Eu chorava, arrancava meus cabelos, via seres monstruosos nas sombras quando estava sozinha...
   Quando tinha 8 anos, meu avô materno ligou para a minha avó paterna e deu o ultimato: "venha buscar as crianças ou eu os mandarei para a Febém". Hoje não tenho absoluta certeza, mas imagino que não é tão fácil assim "enviar" crianças para a Febém (ou qualquer que seja o nome da entidade atualmente), porém à época aquela era uma ameaça muito assustadora. Minha vó foi nos buscar, claro. Entre indas e vindas, posso dizer que passei a maior parte da minha vida sob seus cuidados. Não fui a pessoa mais fácil de se criar, como muitos parentes constantemente jogam na cara. Comecei a engordar muito aos 9 anos, e nessa época já sentia o peso do que hoje sei que era depressão. Parei de estudar, parei de tomar banho, fui expulsa de casa pela minha mãe, com quem estava morando na ocasião, e a pré-adolescência nunca é fácil...
          A primeira vez que pensei em suicídio foi aos 11 anos. Numa dessas festas de fim de ano que não comemorávamos na casa da minha vó, simplesmente bateu um vazio e tristeza enorme. Não pensei, fui a cozinha, peguei uma faca qualquer e na varanda de casa, enquanto minha família assistia TV, tentei cortar os pulsos. Talvez tenha visto uma cena semelhante em algum filme, não sei. Fato é, a faca não dava conta do trabalho. Era uma dessas facas de serra, velha e sem corte. Pode soar como uma piada para algumas pessoas, e pode ser insignificante para outras, mas a verdade é que quando penso em desespero, essa noite sempre me vem à mente. Meu pulso ficou levemente ferido e ninguém nunca soube. Eu também não saberia explicar aquele tipo de sentimento, assim como não conseguia explicar quando acordava pensando que estava tendo um ataque cardíaco (síndrome do pânico) e minha vó mandava eu parar de graça e ir dormir, como se fosse algo que eu pudesse escolher. Por anos me cortei sem que ninguém nem sequer suspeitasse. Abandonei a escola novamente, deixei de sair de casa, perdi a vontade de viver, e morri de muitas formas nesse período.
   Com a chegada da internet, aos 14 anos descobri que outras pessoas sentiam o mesmo. Outras pessoas se cortavam, outras pessoas pensavam em morrer, outras pessoas tinham histórias tão tenebrosas quanto as minhas para contar... E foi nessa época também que minha família descobriu que eu me cortava. Por mais estúpido que seja, quando meu pai descobriu, primeiro culpou a internet, depois me deu uma das maiores surras da minha vida.
   Conheci o Steve numa comunidade chamada "Eu Me Corto..." e ao longo dos anos nos aproximamos e nos afastamos diversas vezes. O Steve tinha sofrido, assim como eu, abuso sexual dentro da própria casa, e experimentou a depressão da mesma forma que eu: de forma gradual, sem que ninguém percebesse. A família dele também culpava a internet pela tristeza e revolta que o fazia se cortar, e que acabou levando-o, no dia 22 de agosto de 2006, a cometer suicídio. Queria poder dizer que fui a melhor amiga dele. Queria não sentir culpa. Mas sinto. Ele vivia me contando sobre a vontade que sentia de se matar, vivia descrevendo o ato: ele pegava uma das armas de fogo do pai, sem que este soubesse, e a levava à boca, à cabeça, esperando ter coragem para puxar o gatilho. Não tenho defesa, estou entre as pessoas que não acreditou nele! Pensei que ele quisesse atenção, que nunca teria coragem para tanto... mas um dia ele teve. Não é que eu não amasse. É incompreensível pensar que uma pessoa que ouviu todo tipo de gente (médicos, enfermeiros, professores, psicólogos, conhecidos, parentes, amigos) desdenhar suas próprias vontades e tentativas fosse tão cruel, mas eu, aos 16 anos, mergulhada em mim mesma, fui. Talvez eu pudesse ter salvo a vida dele. Agora não importa.
   A morte dele me pegou em cheio. Acho que até hoje nunca chorei tanto na minha vida quanto naquele dia... precisaram me dopar para que eu parasse de chorar e gritar. O mundo todo doía.
    Não é exagero dizer que a morte do Steve mudou toda minha vida. Muitas das minhas escolhas foram guiadas por essa experiência. Minha depressão aumentou gritantemente, amigos não aguentaram todo aquele "drama" e me abandonaram, assim como eu o abandonei.
   Na comunidade "Condenados" do Orkut encontrei centenas de pessoas com histórias semelhantes ou até piores do que as minhas e do Steve. Pessoas que lutavam todos os dias para continuar vivendo, para manter um traço de sanidade. Pessoas que eram esnobadas pela sociedade, pelos próprios familiares. Pessoas que foram taxadas como imaturas, mimadas e vagabundas por não conseguirem se adaptar ou mesmo levantar da cama para tomar um banho graça à maldita depressão! Imagino que grande parte dessas pessoas que conheci e esbarrei virtualmente não aguentaram e se mataram, sumindo do mundo, da internet, caindo no esquecimento.
   Infelizmente, a dor de perder uma pessoa querida para a depressão foi algo que se repetiu ao longo dos anos. Em 2008 outro amigo, Antônio, partiu e deixou um filho de poucos meses. Em 2012 o Henrique não aguentou e também se foi. Em 2013, a Juliana, enquanto conversava comigo, tomou comprimidos e morreu... e não foi assim fácil, foi outro grande sofrimento. Ela não morreu instantaneamente, agonizou por dias.
   Apesar de 1 pessoa se suicidar a cada 40 segundos, a doença que leva a tal ato ainda é uma espécie de tabu. É vista como frescura, como coisa de gente fraca. É vista como uma doença que pode sumir de acordo com a vontade do portador... a próxima vítima dessa doença pode ser eu, pode ser meu amigo Fernando, pode ser um vizinho que você nunca imaginou, pode ser você... e ninguém realmente se importa.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

de encontro ao coração


       Last night I felt
real arms around me
no hope, no harm
just another false alarm
 

     Consigo perceber o que as pessoas sentem por mim, e os meus próprios sentimentos, através de abraços. Seguindo esse princípio, hoje posso dizer que não existe ninguém que me ame, ao menos entre os que convivo pessoalmente, e também não existe ninguém que eu ame. Quando as abraço, é mutuamente breve. Consigo sentir o espaço entre nós, a ausência de energia e sincronia. É um gesto que não significa nada, uma coisa automática para elas, e desconfortável para mim.
     Detesto pessoas que cumprimentam estranhos com abraços (frouxos) e beijos (de mentira) — aquelas tentativas patéticas, em que duas pessoas fingem que estão beijando uma à outra no rosto, quando na verdade nem fazem menção de beijar, muito menos se relam...
     Sempre que possível, quando sou apresentada a alguém, estendo logo a mão para um ligeiro e impessoal aperto de mão, isso quando não balanço a cabeça numa demonstração implícita de que vi a pessoa, e não precisamos de maiores proximidades. Não sei se meu irmão está certo e eu realmente tenho um leve grau de autismo, ou se sou apenas um extraterrestre preso num corpo humano. Vocês me digam.
     Não é como se eu não gostasse de abraços. Ontem, enquanto tentava dormir, fui invadida por recordações de abraços que compartilhei, muitos incrivelmente toscos, outros completamente perfeitos, e percebi que há anos não sou realmente abraçada... e tampouco abraço de verdade. 
     Lembrando de três pessoas em especial, senti algo quente e gostoso dentro de mim, mesmo diante da certeza de que nunca mais as verei, e que talvez nunca mais seja abraçada daquela forma. Eis a questão: um abraço de verdade é aquele em que duas pessoas colam seus corpos e se apertam de tal forma, que o tempo para. O mundo deixa de girar por alguns minutos (sim, esses abraços são geralmente longos), as pessoas ao redor paralisam, e tudo é sobre essas duas pessoas se abraçando. Dentro de seus corpos suas células dançam, atraídas como ímãs, a temperatura aumenta, os corações entram em sincronia. Ou seja, considero o abraço um ato muito mais relevante e íntimo do que um beijo ou mesmo o sexo. Não posso dizer que tive experiências sexuais tão gratificantes e memoráveis quanto abraçar essas três pessoas!
     Poderia ser uma tentativa de fazer poesia, mas prometo que não é. Apenas...  é assim que me recordo desses abraços. Não foram gestos românticos. Foram maiores que isso. Mesmo agora, tantos anos depois, não consigo pensar neles como lembranças pequenas e distantes. Fechando meus olhos, ali no escuro, consegui sentir como se eles estivessem me envolvendo novamente. E agora não consigo desejar outra coisa que não seja um abraço desses, essa proximidade louca e impossível de descrever. É como ser tocada na alma.

              

terça-feira, 21 de julho de 2015

i want to eat your heart

    Conheci o Marcelo em um momento que estava tão deprimida e sem esperanças, que levantar da cama para tomar banho, comer ou mesmo ir ao posto de saúde para passar nas consultas era um esforço enorme. Na minha primeira consulta com ele, que estava marcada para as 8 e meia da manhã, ele atrasou quase 4 horas. Quando finalmente fui atendida (a beira de lágrimas) já estava tão saturada pela falta de comprometimento e respeito, que meu primeiro instinto foi detestá-lo, assim como detestei todos meus outros psiquiatras. Várias consultas e muitos atrasos depois, fui forçada a aceitar o fato de que ele nunca chegaria no horário. Eis um hábito que abomino: deixar as pessoas esperando como se o seu tempo fosse mais valioso que o dela.
    Pra mim o Marcelo nem fedia e nem cheirava. Não lembro sobre o que falamos nos primeiros meses, nem se produziu algum resultado. Foi depois de minha curta estadia nas Irmãs Hospitaleiras que comecei a notá-lo como alguém além de um psiquiatra, e penso que foi quando ele passou a me levar a sério também. Naquela época ele se tornou um grande amigo. Pra quem está de fora pode ser difícil entender. Acho que dos poucos amigos com quem comentei sobre isso tudo, a maioria deve pensar que tudo não passou de coisa da minha cabeça. Não digo que o Marcelo tenha nutrido o mesmo tipo de sentimentos que eu *nutro* por ele, porém hoje analisando de forma fria e distante, posso ver que ele cruzou certos limites da relação médico/paciente. Se alguém aqui já ouviu um "eu te adoro", "eu nunca vou te abandonar", e recebeu poemas e abraços demorados de um psiquiatra/psicólogo, me diga. Se o médico de alguém já chorou no meio da consulta, sou toda ouvidos. Pode não ter sido intencional, mas ele deu entrada aos meus sentimentos idiotas.
    No começo é tudo lindo. Penso: eu posso conviver com esse sentimento de forma passiva. Posso amá-lo sem precisar que ele me ame de volta. Posso pensar nele e sentir essas borboletas no estômago sem que isso me faça sofrer... O Marcelo foi o que me elevou. Mas pra um borderline, a elevação é tão fácil quanto a queda brusca que resulta em posição fetal e desespero.
    Depois vem a tensão sexual e o sentimento de posse... O ciúme sempre foi um dos meus maiores "defeitos". É uma coisa que machuca o emocional e se manifesta no corpo. Você já sentiu tanto ciúme que cada célula do seu corpo parecia estar se contorcendo? E o Marcelo parece um ímã. Todas as mulheres naquele prédio, desde as enfermeiras até as pacientes, se derretiam. Não foi diferente quando ele me levou para outro hospital ao sair do posto de saúde. Na verdade, isso se intensificou. Não era uma questão apenas de beleza, mas de carisma. O jeito que ele fala, que ele anda, os maneirismos, é tudo sexy. E eu sou um nada. Mesmo que ele fosse olhar dessa forma para uma paciente, essa paciente certamente não seria eu.
    O que se passou durante os quase 3 anos onde ele foi meu psiquiatra sempre será um incógnita pra mim. Nos dias que estou mais propensa a pintá-lo como o abusador de sentimentos, como o manipulador que algumas pessoas pensam, minha mente cria a versão onde ele fez tudo de caso pensado, pra ver se conseguia. Outras vezes penso que ele foi movido pela inexperiência (ele terminou a especialização em psiquiatria um pouco antes de começar a trabalhar no posto de saúde) e meteu os pés pelas mãos. Fato é, um cara que lida com pessoas instáveis deveria ter um pouco mais de tato e saber controlar os próprios sentimentos. Tem, porém, o fato de que uma outra paciente, com quem esbarrei um dia desses, disse que o Marcelo é mais doido do que os pacientes, mas não quis entrar em detalhes.
    Eu não sou espontânea. Quem me conhece pessoalmente sabe disso. Nunca toco ninguém a menos que seja tocada primeiro, e mesmo assim com reservas; não faço coisas que me ridicularizem, tudo que mostro ao mundo é calculado. Em questão de segundos eu vejo minhas opções e escolho a mais neutra, a que vai me expor menos. Com o Marcelo eu perdia essa noção. Disse e fiz coisas que ainda me mantêm acordada a noite, meio que corando de vergonha, meio que me odiando por ter feito papel de trouxa.
May, 2002
    Uma vez, um dos pacientes do centro de reabilitação de drogas que ele trabalhava tentou escapar, e o Marcelo apanhou do cara ao tentar impedir. Quando cheguei à minha consulta e o vi todo machucado senti tanta raiva e pena... e num dos meus momentos mais atrevidos e espontâneos, peguei a mão dele e beijei um dos ferimentos. Ele levou aquilo da melhor forma que pode. Primeiro pareceu que iria puxar a mão, mas depois deixou (em fração de segundos), e rimos, mas não falamos daquilo.
    Foi pouco. Eu sou excêntrica e tudo no Marcelo me impelia a explorar essas excentricidades. Eu queria beijar as mãos dele, os olhos, cada uma de suas pintas... beijar sua cabeça, abri-la com um bisturi e beijar seu cérebro. Eu queria comer o coração dele. Não se trata de poesia. Se trata de visceralidade. 
    Ninguém nunca me conheceu e nunca conhecerá tanto quanto o Marcelo... e tenho certeza de que ele nem se lembra o quanto me conhece. Que ele não se lembra do meu rosto, do meu nome, do meu caso. Eu nem existo na vida dele mais. Ninguém, nem mesmo a Giuliane, nunca me tirou tanto do sério. 
    (... eu poderia fazer as piores coisas com ele, porque as melhores não ilustra meus sentimentos com precisão.)
    Às vezes penso em matá-lo. Aparecer onde ele trabalha com uma arma e abrir meu caminho até ele com balas, atirar nele, e pra finalizar atirar em mim mesma. Não porque eu o odeio .... por ele ter me deixado sentir o que sinto e depois ter me dispensado como se eu fosse uma puta.... , mas porque eu o amo tanto que apenas um gesto estrondoso desses mostraria o quanto. 
    Sonhei com ele a noite passada. Ele estava sentado em um sofá ao meu lado e dizia "lembra aquela vez que eu apanhei de um paciente e você..." e eu completava: "beijei seu ferimento", e a lembrança aparecia dentro do meu sonho. Ele continuava: "foi naquele momento que eu me apaixonei por você".......... eu sentia meu estômago cheio de borboletas canibais voando ferozmente. Ele falava: "mas isso nunca daria certo", e eu dizia:  "por quê? você não é mais meu médico". Nos olhávamos. Eu pegava as mãos dele e as beijava, beijava, beijava, beijava, lambia os dedos dele, beijava-lhe os braços.
    Embora eu saiba, racionalmente, que ele jamais corresponderia; embora eu saiba que ele não faria isso por ética e sim porque eu sou um monstro obeso e disforme, meu inconsciente me brinda com sonhos onde as coisas são diferentes, e secretamente ele me amou.
    Seja como for, tudo isso prova que eu nunca vou ser uma pessoa normal, nunca vou amar de forma saudável, e cada dia mais descubro como sou feita para as coisas ruins.  (ponto final)

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Cintiazinha

        
      Às vezes penso em todas as oportunidades que deixei escapar... mas a realidade é que nada me escapou, porque eu nunca tive nada. Se para as pessoas comuns a vida não passa de uma grande e fétida ilusão, para mim é ainda mais alarmante que isso. Sempre amei todas as pessoas erradas. Sempre busquei todas as coisas impossíveis. Não é de se admirar que aos 25 anos eu não tenha nada; tudo que sonhei estava fora do meu alcance. E busquei essas coisas justamente porque eram inalcançáveis. Nunca consegui amar com a mesma intensidade as coisas que estavam ao meu redor quanto às que estavam muito, muito longe de mim, seja moralmente, seja fisicamente.
      Repito muito que a melhor fase da minha vida foi aquela na qual perdi tudo, que mergulhei na dor buscando um anestésico para a vida, tomando cartelas de calmantes, garrafas inteiras de vodka, derramando meu próprio sangue etc. A verdade, porém, é que não havia perdido nada naquela época, pois já não tinha nada além de fracas expectativas, o que no fim equivale a nada. Perdi, se muito, um pedaço de mim. Mas todos perdem pedaços de si mesmos a cada segundo que transcorre.
      Não. A melhor fase da minha vida ficou em um passado agora muito distante. Tão distante, que às vezes penso que nem existiu, que foi um sonho, uma história que li, a vida de outra pessoa. Eu tinha 13 anos, e somadas à todas as dores do crescimento, havia feridas profundas esperando uma desculpa que fosse para vir à tona. E veio. 
      Eu tinha 13 anos, adolescente gordinha que causava repulsa aos garotos; uma ligeira atração por garotas, a qual tentava soterrar o mais fundo possível, tanto pela religião quanto pelo medo da rejeição familiar. Sim, já regi muito minha vida pela fé cristã cega e a vontade de aprovação das pessoas. 
      Foi uma meia-sensibilidade e total desespero que me moveu para os caminhos do que chamava, então, de arte. Borrões a guache num pedaço de papel, palavras sem nexo escritas, e isso despertou a atenção dos professores. Se não tinha afeto em casa, logo o recebi na escola. Aquele lugar se tornou minha casa, e minha casa se tornou o inferno ao qual tinha que retornar todas as tardes. De aluna nota 10 a presidente do Grêmio, ali era sempre "Cintiazinha isso", "Cintiazinha aquilo", entre exposições, que pareciam tão grandes, e hoje se mostram tão ínfimas, eventos e concursos, me tornei, em pouco tempo, popular. Aos 13 anos o mundo é um lugar enorme e brilhante, cheio de possibilidades. Mesmo quando a vida é um saco.
      Eu sei, é claro que sei, que nem todos professores são mestres. Nem todo professor incentiva, nem todo professor mostra sentimentos. E mesmo hoje, com essa noção, avalio meu passado como uma mentira, pois meus professores eram pagos; hoje vejo a afeição que me dispensaram com o mesmo asco de uma pessoa que acaba de pagar uma puta por sexo. 
      Lembro como se fosse outras eras, uma tarde em um jardim; eu, voluntaria, e a coordenadora pedagógica da escola... Estávamos plantando alfaces, acho. Qualquer oportunidade que me fizesse ficar o máximo possível entre aquelas paredes me era bem-vinda. E bem ali, entre cavar a terra e colher verduras, ela anunciou que em breve iria embora. Para Minas. Falava do quanto gostaria de me adotar, de me levar com ela, pois lhe era inacreditável e revoltante, ela afirmava, que meus pais não conseguissem ver a pessoa brilhante que eu era. Por muitos anos acreditei naquilo, e como me sinto tola agora! Como me sinto idiota por ter acreditado que tais palavras eram verdadeiras, que ela tinha mesmo cogitado me adotar! Ela foi embora, e eu fiquei, imaginando então, que o que me prendia fosse uma lealdade sem sentido por minha família. E nunca mais a vi. 
      Exatamente como nessa ocasião, ouvi muitas promessas e elogios nos próximos dois anos. E depois, quando fui cedendo novamente à depressão, ao ponto de me tornar inútil, a Cintiazinha foi dando lugar a outra coisa. 
      Lembra de mim? Lembro... você foi estudante aqui, né? Mas desculpe, não lembro seu nome.
       Vejo meu fracasso existencial nos filmes de comédia americana dos anos 90. Sabe, aqueles personagens que viveram o auge da vida no high school, geralmente líderes de torcida e esportistas? E depois se tornam caminhoneiros barrigudos e mulheres feias com 10 filhos nas costas, em casamentos decadentes? Só que nesses filmes os nerds sempre se dão bem. Na minha realidade, vejo gente que não tinha a menor aptidão para coisa alguma, que nunca foram notados por nenhum professor, que nem ao menos sabem escrever direito, com carreira, com família, ou seja, numa situação um pouco melhor de acordo com o que exige a sociedade? E mesmo aos meus padrões, eu, que tento rejeitar o que a sociedade prega, sei que minha vida é risível.
       Aquela foi a melhor fase da minha vida. É com aquela época que sonho. Com aquelas pessoas que nem sabem meu nome, que nem lembram da minha existência! De um modo bastante metafórico, tenho sonhado mais com o Benedito Calixto nesses últimos meses... e em todos os sonhos tudo está desmoronando. A escola com que sonho está sempre caindo aos pedaços, inundando ou ruindo, e as pessoas morrendo. A escola de verdade, que ficou lá onde sempre esteve, nunca foi tão bonita e limpa.
       Entendo do que você fala quando diz que uma coisa é saber a verdade, e outra diferente é colocar em prática. O que eu mais queria nesse momento era abandonar tudo o que me prende, coisas que não me importam de verdade, e que eu continuo nutrindo por alguma razão. Já abandonei toda a vontade de fazer faculdade, justamente por ter percebido como é idiota todo esse sistema. As pessoas mais burras que já conheci, foi dentro de uma universidade! Entre professores universitários e os alunos, pouca gente se salva. Por tantos anos sonhei com isso, e foi tão importante para mim conseguir um diploma para validar minha inteligência (?), para dizer que eu era especialista em alguma coisa, que ao não conseguir isso, acabei jogando minha vida fora — exatamente como um rascunho escrito num pedaço de papel, assim, embolado e atirado no cesto de lixo. Só que com a vida não posso começar tudo de novo. Será que coloquei isso de forma compreensível? De tanto exigir de mim mesma esse atestado de "sabedoria", e por não ter como consegui-lo, eu fiquei inerte. Me abandonei.
       Tenho fome de aprender todas as coisas que me despertam interesse, de provar de tudo um pouco, mas a obrigatoriedade ainda me engole com tanta ânsia que fico inerte. Essa é a maior contradição da minha existência. Por querer tantas coisas, acabo não fazendo nada. 
     Hoje, em tudo que quero, espero total autonomia. Eu quero ser minha própria professora, quero decidir até onde vou com cada coisa que experimentar, e não quero que ninguém me diga que estou errada, que não tenho foco para me especializar em nada. Existem tantas coisas nesse mundo que não entendo, tantas coisas que quero vivenciar... e daí se eu não for especialista em nenhuma delas? De que me serviria esse título no caixão, sem nenhuma experiência verdadeira?
       Imagino que muita gente ao ler esse post, apontaria logo o comodismo e conformismo com que levei minha vida. E talvez estivessem certas. Porém, o que estou dizendo é que nunca perdi nenhuma oportunidade, porque tudo aquilo que vi como tal, se mostrou apenas alarme falso. Todas as coisas que pensei que eram minhas, que me esperavam, e todas as pessoas que pensei que me amavam, era tudo uma ilusão. Ao abrir mão dessas coisas, não abri mão de nada que fosse de fato acontecer. A coisa mais importante que perdi ao perceber isso, foi a esperança. E acho, que essa era a última coisa que eu tinha disponível.
       Hoje construí um ideal de liberdade. Está bem aqui na minha cabeça o que preciso fazer, o que quero fazer, o que me falta para alcançar a paz que busco... E não preciso de absolutamente ninguém para chegar lá, só de mim mesma. Agora me resta construir a coragem para colocar o ideal em prática.

domingo, 24 de maio de 2015

Hoje eu sou Alice

   OK. Quer ler algo estúpido? Se eu pudesse ter qualquer super-poder por apenas um dia, escolheria uma forma de telepatia ampliada que me permitisse obter respostas para quaisquer perguntas que tivesse em mente. E usaria este poder, possivelmente, em uma só pessoa. A pessoa que tirou, por anos a fio, toda minha auto-estima, dignidade e inocência. É estranho pensar que ele tenha feito tudo isso, quando o vi, se muito, 5 vezes nos últimos 10 anos. É claro que estou falando do meu molestador. 
   À esta altura do campeonato seria apenas uma questão de entendimento; obviamente nada poderia justificar, mas aqui estou, 25 anos, ainda buscando entender. Entender o que se passa na mente dele, como ele se lembra das coisas, como ele pode agir como se nada tivesse acontecido... como ele pode ter me tornado a louca?
   Por uma das voltas da vida, a ex-mulher dele voltou ao seio da família, trazendo a filha deles, que agora tem aproximadamente 13 anos. Da última vez que ela reapareceu em nossas vidas foi em 2007 ou 2008, e naquela época temi muito que ele fosse capaz de fazer algo à própria filha. Na época, ainda frequentadora do Orkut, busquei a opinião de outras mulheres que sofreram abuso sexual, e muitas me apontaram a necessidade de fazer uma denúncia. Agora, eis o problema: tenho 3 primas vivendo no mesmo quintal que ele. Primas que o adoram e não acreditam em mim, pois, é claro, não passaram pelo mesmo que eu. Por mais ridiculamente egoísta que isso soe, ao longo dos anos não pude evitar repetidamente me perguntar "por que eu? por que não uma delas ao invés de mim? porque ele não fez com elas também?"
   Vejo fotos da filha dele, não consigo deixar de ver a mim mesma nas fotos. Não consigo deixar de pensar em como ele se sentiria se alguém fizesse o mesmo à filha dele. Ou sentir repulsa ao imaginar ele fazendo...

               Não há defesa para essa linha de pensamento, eu sei. Mas é preciso entender minha confusão...
               
               
                                                        ...

               Minha própria monstruosidade não me escapa.