segunda-feira, 25 de setembro de 2023

confissão

aviso de gatilho: descrições fortes envolvendo pedofilia e comportamento autolesivo, menções a insetos 

Sonhei com o meu tio. Ultimamente eu tenho vivido mais em sonhos e pesadelos do que na realidade (será que essa é mesmo a realidade?). Eu estava na casa onde tudo aconteceu, lá em Ferraz, e ele estava atrás de mim, com um lado do corpo podre. A cara dele estava diferente, mas eu sabia que era ele. Eu estava fugindo dele. Tinha uma multidão atrás dele, e de forma aleatória, o meu atual professor de natação estava bem ao lado dele. As pessoas tentavam me forçar a parar de fugir, a ser receptiva. A ser educada.
...
Era assim que faziam quando eu era criança. Às vezes eu tentava evitar ficar sozinha com o meu tio, porque sabia que ele faria coisas que eu não entendia, mas que me deixavam desconfortável, e me diziam, de forma impaciente: "vai lá ficar com o Andy". Como se eu fosse um estorvo que cabia a ele cuidar. O papel dele era cuidar de mim. Minha mãe pensava que ele estava cuidando de mim, enquanto ele me fazia tocá-lo por baixo das cobertas, ao lado dos meus irmãos, que assistiam TV sem saber o que estava acontecendo. Minha avó pensava que ele estava cuidando de mim, no cômodo ao lado, enquanto ele abaixava a minha calcinha e me fazia sentar no colo dele. Meu avô pensava que meu tio estava cuidando de mim, enquanto ele colocava açúcar na cabeça do próprio pau e me fazia lamber. Meu pai não sabia se tinha alguém cuidando de mim ou não, enquanto eu engasgava, enojada, no ato.

Tem dias que eu esqueço que o meu tio morreu. Faz mais de um ano que ele morreu engasgado com um pedaço de pizza, mas como eu previ, ele continua vivo de forma nítida dentro de mim. A morte dele não resolveu nada. Ele nunca morre dentro das minhas memórias e dos meus sonhos que viram pesadelos. Dentro da minha solidão e desesperança. Dentro da minha RAIVA. Dentro do meu medo de que façam algo assim com a Júlia. Ele está vivo no meu corpo moído de dor e cansaço.
Eu lembro da voz dele, da textura dele, lembro do cheiro dele: o cheiro de cachaça que eu também tive em mim por muito tempo e que agora não suporto sentir nos bêbados imundos da cidade.
Tenho tido memórias sensoriais da minha infância. São quase delírios. Sinto esse cheiro de sujeira velha misturado com pinga dentro do meu nariz. Estou sentindo agora mesmo. Sinto os insetos rastejando sob a minha pele, como quando me trancavam no porão e riam do meu desespero. Sinto diariamente dores pelo meu corpo, como se eu tivesse levado uma surra de cinto. Me sinto fora do meu corpo, tentando me agarrar a realidade.
Acho que me debati tanto enquanto fugia dele no meu sonho, que acordei com o corpo todo dolorido (mais do que o habitual), e ironicamente, quando sentei para escrever esse texto, senti algo subindo pela minha perna e quando olhei para baixo tinha uma barata em mim. Não era um delírio, era uma barata bem real e grande, esfregando suas patas imundas na minha pele. Antes eu choraria e gritaria, mas estou me sentindo tão cansada, que nem uma barata subindo pela minha perna me provoca grandes reações.
....
Depois que meu tio morreu, minha mãe me procurou diversas vezes para lamentar a morte dele. Ele era o irmão preferido dela, o irmão caçula, o irmão que ela fazia de boneca, colocando-lhe vestidos. Não contente em anular a minha dor ao ter me tirado de mentirosa por metade da minha vida, mesmo após a morte dele, ela achou que eu seria a pessoa certa para lhe oferecer consolo pela perda de seu irmão, meu abusador. Eu via as lágrimas presas nos olhos dela, mas não sentia nenhuma pena ou empatia e não dizia uma só palavra enquanto ela falava com amor e saudade dele. Diante da minha mãe eu sou muito diferente da pessoa que muitos conhecem. Eu volto a ser a criança sem voz que um dia fui. Não é medo. Eu não sei o que é, mas sei que não é medo.
Pedi para meu irmão intervir e mandar ela parar de falar sobre ele comigo. Até incentivei que ela procurasse um psicólogo, mas ela insistia em me procurar para dizer o quanto estava abalada e deprimida pela morte dele.
Um dia, cerca de um ano atrás, estávamos em pé na porta da minha casa, eu estava esperando ela finalmente ir embora, quando ela soltou, de forma quase casual, que tinha um arrependimento muito grande: ela abusou dos irmãos mais novos quando ela era adolescente. Eles tinham 5, 6 anos e ela os fazia transar com menininhas que também tinham 5, 6 anos, para ela assistir e se satisfazer.
Enquanto ela me dizia aquilo, eu senti as minhas pernas ficando bambas e só a encarei, enquanto uma lágrima única, contínua, escorreu pelo meu rosto. Eu sabia que meu rosto não tinha expressão além da lágrima que caía. Eu não disse uma palavra, chorei em silêncio, como a Cíntia de 6 anos, mas fui tomada de sentimentos arrebatadores. Raiva, nojo, indignação. Foi como se a morte do meu tio tivesse fechado uma porta, e ela estivesse abrindo outra na bicuda. Eu constatei que essa ferida nunca vai cicatrizar. Eu vou sangrar para sempre pelo que me fizeram, pois toda vez que coloco um band-aid sobre a ferida, alguém a pressiona com violência e a deixa maior. Tem sempre uma nova revelação, uma nova compreensão, uma nova virada. Eu queria conseguir não pensar nisso, nunca mais falar sobre isso, nem na terapia e nem fora dela, mas é algo que foge ao meu controle. Eu sonho com isso. Eu lembro disso. Eu vejo casos iguais ao meu todos os dias. Às vezes, quando estou no meio do ato sexual, eu começo a dissociar e sinto como se fosse meu tio com a língua enfiada entre as minhas pernas e me sinto suja, angustiada, perco o foco e o tesão. Poucas vezes na vida consegui gozar com alguém. O que eu vivi me castra, me isola, me impede de ser tocada por quem eu amo sem ser levada para um quarto escuro e fétido, cheio de culpa.
Quando minha mãe foi embora, constrangida diante do meu silêncio, eu chorei lágrimas que eu nem sabia que ainda existiam dentro de mim. Chorei de soluçar, por mim e por todas as vítimas dela e pelas possíveis vítimas das vítimas dela e assim por diante.
Nos últimos anos, eu culpei a minha mãe pelo que me aconteceu, por ela ter sido negligente, "por não ter percebido" quando meu tio fazia determinadas coisas tão abertamente, quando ela estava no quarto (de costas). Mas aquela informação acrescentava um grau de culpa direto: ela desencadeou a perversão dos meus tios, que fizeram comigo e meus irmãos o mesmo que ela fez com eles. Afinal, se abusaram de mim de todas as formas, também abusaram dos meus irmãos transando com mulheres na frente deles quando eles eram crianças, algo que foi instigado lá atrás, pela minha mãe. Pensei em todas as crianças que ela usou e feriu, em quantas meninas sofreram como eu sofri e sofro, pelos atos dela. Mas o pior foi pensar: e se ela percebeu o que meu tio fazia comigo? E se isso a excitava?
O que ela queria com essa confissão? Era uma forma de mostrar arrependimento e de me dizer que acreditava em mim? Ela queria o meu perdão? Era só sobre a dor dela, de ter fodido a vida do próprio irmão, que se tornou um pervertido, alcoólatra, cheirador de pó, que ficou anos se arrastando pela vida, depois de várias overdoses e complicações de saúde em função da vida que levava?
A minha mãe também sofreu assédio de um tio dela, o que ela me contou e o que sempre me revoltou, pois para mim era inconcebível ela ter passado por uma coisa e não acreditar quando eu relatei ter sofrido algo similar. E eu sei que assim como eu e meus irmãos, ela foi exposta a pornografia desde a infância e se tornou viciada nisso muito cedo. Mas perpetuar isso foi uma escolha. Ter colocado meus irmãos e eu para assistir pornografia quando éramos crianças foi uma escolha. As vezes que ela transou na minha frente, foi uma escolha.
Assim como os meus tios terem abusado de mim e dos meus irmãos após serem abusados por ela, foi uma escolha deles. Minha família está presa num ciclo de violência muito forte, que foi se estabelecendo geração após geração. Isso explica as coisas, mas não justifica nada. Eu não consigo sentir pena ou perdoar meus tios. Não consigo sentir pena ou perdoar o que a minha mãe fez e as possíveis repercussões que os atos dela tiveram na vida das crianças que ela abusou. Nas repercuções que isso teve na minha vida. Eu não queria essa informação. Eu não queria que ela tivesse me contado isso. Não queria ter essa imagem na minha cabeça, nem o medo de ela fazer isso com a minha sobrinha ou meus futuros sobrinhos. Não sei que tipo de relação eu posso ter com ela depois de todas as coisas que aconteceram.
E eu não sei que tipo de vida ainda é possível para mim, depois de tudo o que me fizeram. Eu tenho me sentido como se a minha vida estivesse acabando e eu tivesse perdido todas as possibilidades lá no começo de tudo. Me sinto tão cansada e injustiçada. Tão sozinha.
No meu sonho, o meu professor de natação, após compreender porque eu estava fugindo do meu tio, me ajudava a escapar dele e me acolhia em um abraço. Eu estou tão sozinha e sem referências de afeto, que o mais próximo disso que a minha mente consegue fantasiar é um homem que eu vejo alguns dias na semana e troca poucas palavras comigo. Que me oferece um sorriso e um aceno de longe e que me cumprimenta e me elogia por ter conseguido fazer uma aula apesar das minhas dores e da depressão...
Esse é o máximo de socialização que tenho há algum tempo.
Eu me sinto tão sozinha e desesperada pela falta de afeto provocada por uma vida de abusos, que meu impulso é gritar loucamente e me bater contra a parede, mas o meu corpo está tão cansado depois de toda essa violência ancestral e energia gasta em mecanismos de defesa, que nem a autoagressão é uma possibilidade.
Muitas vezes eu fantasio com alguém me abraçando e me tocando com gentileza para amenizar as dores do meu corpo. Outras vezes, pela impossibilidade do afeto,  eu fantasio com alguém me cortando com uma gilete para me fazer sentir esse alívio que eu sozinha não consigo provocar, porque meu corpo está completamente paralisado numa cama.

sábado, 29 de julho de 2023

a não-monogamia para corpos marginalizados

 

O tweet acima pode ser uma piada para muitas pessoas, inclusive para quem o escreveu, mas eu levo essa lógica bem a sério. Não é por isso que EU sou monogâmica, mas as coisas são por aí quando falamos em não-monogamia para corpos dissidentes. Enquanto a galera não-monogâmica luta pelo direito sagrado de ter vários parceiros (afetivos e/ou sexuais), pessoas como eu, que vivem na sarjeta afetiva gerada pela desumanização de determinados corpos, queriam a possibilidade de ter ao menos UMA pessoa.
Apesar de eu entender e validar a luta pela não-monogamia enquanto um direito civil (com todas as suas repercussões morais e legais), no que diz respeito ao acesso à afetividade e liberdade sexual, não-monogâmicos e eu não falamos nem a mesma língua. Tenho completa aversão à imposição desse formato de relação como algo moralmente e espiritualmente "elevado", "evoluído", "superior", "moderno", e por fim, a solução para sentimentos e comportamentos que levam à violência de gênero e "crimes passionais", como ciúmes e possessividade. Na prática, a não-monogamia pode ser uma ferramenta de manutenção do patriarcado e da violência contra a mulher (especialmente violência psicológica) tanto quanto a monogamia. Muitas são as pessoas não-monogâmicas, especialmente homens cis (mas não apenas eles!), que usam a "filosofia" da não-monogamia para seduzir, manipular e prender emocionalmente pessoas fragilizadas, especialmente mulheres fora do padrão, usando ainda um discurso pró-feminista e liberal. Como se a não-monogamia fosse a evolução natural do ser humano. Como se só mudar o formato de relacionamento, sem conscientizar e curar pessoas, fosse eliminar todo um conjunto de pensamentos coletivos e opressões que se arrastam ao longo da história da humanidade. O maior problema disso é que por se acharem "evoluídos" e "puros de sentimentos", pessoas não-monogâmicas colocam a culpa de todos os problemas das relações humanas na monogamia, se isentando dos processos de opressões que eles também praticam (especialmente contra membros de minorias).
Quando aponto a manipulação, mau-caratismo e a falta de responsabilidade afetiva costumeira de pessoas não-monogâmicas que se julgam tão superiores e desapegadas, muitas pessoas não-monogâmicas alegam: "mas essas pessoas (com comportamentos questionáveis) não são não-monogâmicas de verdade". O que isso significa? Se uma pessoa se rotula como não-monogâmica, usa discursos não-monogâmicos e vive uma vida não-monogâmica, se relacionando abertamente com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, então ela é não-monogâmica, mesmo que ainda carregue traços da monogamia em suas relações. Não é possível validar apenas não-monogâmicos com comportamento "ético" e dizer que os não-monogâmicos tóxicos (que na minha experiência são uma grande maioria) "não são não-monogâmicos de verdade". Sim, essas pessoas fazem parte da mesma comunidade que "você"! A comunidade não-monogâmica não é um paraíso relacional!
Sendo bem sincera, eu não acredito que exista um só não-monogâmico completamente ético e que haja de acordo com seus discursos o tempo todo, porque não é possível se relacionar em cima de racionalidade e códigos sociais o tempo todo. Nós somos humanos e temos sentimentos que falam mais alto do que nossas intenções, do que a nossa razão e às vezes até mais alto do que nossos princípios teóricos. Novamente, fica fácil se esquivar de responsabilidade quando a pessoa acha que já pratica o máximo de ética, empatia e que está acima do bem e do mal! Acima não apenas de monogâmicos, mas também de outros não-monogâmicos que são "a vergonha do rolê".
Voltando ao foco desse texto: ser totalmente fora do padrão, sem nenhuma passabilidade, e experimentar uma não-monogamia real e que não destroça a mente, é bem raro. Diria que são coisas incompatíveis. A maioria das pessoas gordas maiores, travestis, negras retintas e/ou com deficiência (grupos que são as "as minorias das minorias", que têm menos visibilidade até dentro das militâncias), passam A VIDA sem conseguir acessar o afeto. Quanto maior o número de características rejeitadas pela sociedade uma pessoa possuir, menor o acesso ao afeto, ao amor e até ao sexo COM DIGNIDADE. Uma pessoa gorda branca e cisgênero vai sofrer opressão e ter afeto negado, mas uma travesti gorda e negra vai sofrer muito mais (e assim por diante).
Como já expus muitas vezes ao longo dos anos, muitas pessoas gordas (que sempre foram gordas) chegam à vida adulta sem nunca ter beijado na boca. Muitas de nós entram na terceira idade sozinhas, no vazio afetivo de nunca ter vivido um amor correspondido, sem nunca ter namorado, ou sequer transado.
Outras tiveram e têm seus corpos usados para sexo das formas mais estereotipadas e animalizadas possíveis, mas nunca receberam afeto. Quando muito, foram alimentadas com migalhas de afeto. Com ilusões de afetividade. Podem ter recebido um pouco de carinho entre um ato sexual e outro, mas nunca experimentaram isso de forma plena. Nunca foram levadas a um lugar legal, para um encontro de verdade. Sempre ficaram confinadas em quartos de motéis, ouvindo que são "maravilhosas" entre 4 paredes. Nunca foram assumidas, apresentadas para amigos e família. Nunca receberam flores, uma declaração. Nunca tiveram ninguém para dividir as dores e as delícias da vida. Nunca puderam fazer planos conjuntos e pensar em construir uma família.
A não-monogamia me soa como estar faminta e colocarem um prato vazio na minha frente. Quando eu olho pra mesa ao lado, vejo uma pessoa diante de um banquete, berrando: TRAGAM MAIS!
Eu evito abordar esse assunto, porque confesso que sinto um amargo na minha boca e na minha alma, e sei que depois de expor minhas feridas (que são na verdade feridas coletivas), eu vou ser silenciada.
Uma vez, tempos atrás, falei sobre as MINHAS experiências com a não-monogamia e sobre o quanto ela pode ser prejudicial e impraticável para corpos marginalizados (focando no corpo gordo) e uma pessoa gorda e trans soltou os cachorros em mim para defender a não-monogamia. Atacou e maltratou uma pessoa gorda, com feridas reais, para proteger um SISTEMA (relacional). Não fica muito longe do fanatismo religioso. Até então, essa pessoa dizia me adorar e que eu era necessária, mas quando fiz essa crítica, me tornei a inimiga dos não-monogâmicos que se acham o suprassumo da evolução e desconstrução humana. Diante do meu desabafo, o qual fiz logo após sair de uma relação não-monogâmica que acabou com a minha vida (e da qual ainda não me curei, após um ano e meio), essa pessoa disse que eu estava falando um monte de bosta, que não tenho empatia por pessoas não-monogâmicas (risos), que só tenho empatia pelo que me convém (pessoas gordas) e que eu deveria "estudar". A carteirada academicista foi o que mais me incomodou! É muito elitista querer invalidar discursos sobre sentimentos HUMANOS só porque eles não foram publicados por uma editora e nem aprovados pelo meio acadêmico. Quando se trata de vivências, as reflexões de quem sofre com uma questão são muito mais relevantes do que teorias academicistas. Tudo que eu falo sobre gordofobia, tem por base minhas experiências pessoais e a forma como eu observo o mundo (conversando com outras pessoas gordas em diferentes contextos e analisando situações que compartilhamos e assim sendo, são coletivas). Não são teorias acadêmicas, são reflexões minhas, desabafos meus! Eu falo porque preciso falar, e na esperança de que as pessoas magras absorvam vivências gordas e nos tratem com mais empatia e humanidade. Sendo vivências e opiniões minhas, as pessoas podem concordar ou não com a forma que eu vejo e exponho as coisas, mas não podem me invalidar. EU QUE VIVI E VIVO ISSO. Discordarem de mim e me atacarem não vai mudar os fatos (o que eu vivi e vivo). Da mesma forma que eu não vou em perfis que lutam pela normalização ou que até ROMANTIZAM a não-monogamia para forçar minha visão. Quando eu vejo um perfil desses ou pessoas que sigo começam a falar da não-monogamia como uma evolução da alma, sem fazer recorte algum, eu silencio ou até bloqueio para que não fique aparecendo para mim, pois é algo que me faz mal. Eu falo sobre a MINHA visão da não-monogamia aqui no MEU espaço!
E acima de qualquer coisa, MINHA identidade é gorda! O que mais ME atravessa é a gordofobia! Mesmo que eu fosse não-monogâmica, primeiro eu seria GORDA, primeiro eu seria atravessada pela gordofobia e primeiro viria a luta anti-gordofobia. Meu corpo é a primeira coisa que enxergam em mim e é o que determina como vou ser tratada na sociedade! Determinou como fui tratada dentro de experiências não-monogâmicas também. Se você se acha uma pessoa gorda, mas não é atravessada pela gordofobia em todos os aspectos da sua vida, ou você não é uma pessoa gorda de verdade, ou goza de fortes privilégios (estéticos, de status ou financeiros). Você ser uma pessoa gorda e não passar por uma questão que outras pessoas gordas estão apontando, não vai significar que nenhuma pessoa gorda passa por isso, e sim que você é uma exceção à regra.
As pessoas podem odiar, inclusive membros de outras militâncias, mas minhas vivências e minha luta sempre vão ter um recorte sobre corpos gordos. Tudo que eu for falar, eu vou trazer a diferença de como é passar por isso sendo uma pessoa magra e sendo uma pessoa gorda. E nesse contexto, assim como no meio LGBT+, a gordofobia é presente na comunidade não-monogâmica.
Muitas vezes falo de mim, mas com a certeza de que não sou a única vivendo essas coisas, porque recebo relatos diários de pessoas gordas e membros de outras minorias que se identificam com as minhas vivências e minha fala. Sobre a não-monogamia, posso dizer que além das minhas próprias experiências, já conheci muitas pessoas gordas (inclusive maiores) que viveram e vivem a não-monogamia, seja porque se sentiram forçadas a isso, seja porque acreditavam nesse modelo de relação e queriam viver isso. E mais vezes sim do que não, eu acompanhei o sofrimento de muitas dessas pessoas. Sofreram em silêncio, aguentando coisas que nenhuma pessoa padrão aguentaria, para manterem a pose de DESAPEGADAS.
O que se tornou muito evidente para mim, tanto nas experiências dessas pessoas quanto nas minhas próprias experiências, é que uma coisa é viver a não-monogamia na teoria - estar aberto para amores "livres" e à possibilidade de se envolver com mais de uma pessoa ao mesmo tempo; e outra coisa bem diferente é viver isso na prática: ter a possibilidade de ser amado por mais de uma pessoa ou ser possibilidade sexual para múltiplas pessoas.
Explico: conheci várias pessoas gordas maiores (homens, mulheres e não-binárias, tanto hetero quanto não-hetero) que tinham relacionamentos não-monogâmicos com pessoas magras ou mais próximas do padrão do que elas e TINHAM a LIBERDADE para se envolver com outras pessoas, mas não tinham outras pessoas interessadas nelas. Enquanto seus parceiros ou parceiras com maior passabilidade e aceitação estética tinham pessoas interessadas por eles e se relacionavam com múltiplas pessoas, vivendo a não-monogamia de fato, essas pessoas gordas maiores ficavam chupando o dedo. Elas só carregavam o rótulo e as responsabilidades de ter que lidar com essas relações, sem poder viver isso. Assistiam seus pares sendo cortejados, se envolvendo com outras pessoas, e lidavam com ciúmes, insegurança e a sensação de estarem sendo deixadas de lado. Com o plus da sensação crescente de rejeição e a frustração, porque não eram possibilidade para ninguém, mesmo estando abertas para isso. Logo, uma coisa é ter a LIBERDADE, outra é ter a POSSIBILIDADE.
Acompanhei (em off) uma mina gorda maior que era casada, o relacionamento era não-monogâmico. Ela e o marido iniciaram um trisal com uma mulher magra e com o tempo ela começou a se sentir colocada de lado por ambos. Eles transavam na cama dela, ao lado dela, enquanto ela chorava sem que eles percebessem.
Outra mulher gorda entrou em um relacionamento a três com seu parceiro e no fim foi TROCADA. Terminaram com ela e ficaram juntos. Ela foi "expulsa" da relação na qual entrou com seu parceiro.
Foram muitas as pessoas gordas (maiores) que vieram debafar suas dores comigo. Elas não estavam felizes, mas em 100% dos casos, mantinham a imagem pública de desapego e satisfação com esse tipo de relação. Estavam enganando a si mesmas e aos outros, reforçando um imaginário de não-monogamia perfeita e inclusiva para todos os corpos. A não-monogamia não é automaticamente inclusiva a todos os corpos. Pessoas não-monogâmicas não são automaticamente não-gordofóbicas. Na monogamia ou na não-monogamia, as pessoas escolhem quais corpos elas vão amar, quais corpos elas vão comer, e quais corpos elas vão rejeitar. O que muda entre a monogamia e a não-monogamia, é a cobrança de aguentar ou aprender a lidar com situações que a grande maioria das pessoas gordas não têm condições de bancar, depois de uma vida de rejeição e preterimento.
Eu (monogâmica convicta) já aceitei o formato não-monogâmico de relação para não perder a pessoa (não-monogâmica), e só eu sei o que eu passei. Eu "poderia" ter me negado a embarcar nessa e abrir mão da pessoa, mas além de estar apaixonada, como eu poderia fazer isso, quando esperei pelo AMOR a minha vida toda? Sabendo que poderia passar muito tempo até surgir outra pessoa que tivesse interesse em se relacionar comigo? Sabendo que posso nunca mais ter isso? Diferente de pessoas padrão, ao terminar uma relação, eu não vivo com a certeza e com o consolo de que "vai surgir outra pessoa" futuramente. Ao fim de uma relação, eu tenho em mente que pode levar anos até me tocarem novamente. Que pode nunca mais acontecer. Abrir mão de um amor que você sonhou a vida inteira é muito mais difícil quando você ouviu desde criança que "ninguém iria te querer", fala sustentada pela rejeição crônica ao longo de toda uma vida. Eu aceitei essa relação num formato no qual eu não acredito e que não faz bem para mim, pensando que eu conseguiria lidar, e que aquilo seria "menos pior" do que não ter a pessoa. Depois de anos e anos de solidão e expectativa, ter uma pessoa pela metade soou "menos pior" do que não ter pessoa nenhuma.  Eu pensei que pudesse conviver com as repercussões de um relação não-exclusiva. E eu descobri que a agonia de ter alguém pela metade é igual ou até pior do que a agonia de não ter ninguém. Só eu sei o quanto essa experiência minou minha autoestima e criou novas camadas de insegurança e infelicidade na minha vida. Me deixou de fato traumatizada. Não sei se eu vou poder confiar em mim mesma ou em alguém novamente. Eu tenho a parcela de culpa de ter aceitado isso. Mas a pessoa não-monogâmica não ligou para os meus gatilhos, para a minha história, para o recorte ao qual estou inserida. Pelo contrário, alimentou minhas inseguranças, ativou meus gatilhos. Não teve cuidado e nem conseguiu me fazer sentir importante em sua vida "apesar" de não ser a única. Pessoas monogâmicas também brincaram com os meus sentimentos e agiram sem cuidado ao se relacionar comigo, mas soa muito mais hipócrita quando esse tipo de comportamento parte de não-monogâmicos que se colocam como espiritualmente superiores e que falam tanto sobre "amor livre", "sagrado feminino", ética e empatia.
O que eu sei, é que eu nunca mais quero ASSISTIR alguém que eu amo, amando outra pessoa. Nunca mais quero compartilhar alguém que eu amo com ninguém. Eu não quero ver quem eu amo se declarando para outra pessoa e depois passar a madrugada inteira stalkeando uma outra mulher, olhando suas fotos, chorando e me comparando, pensando em todas as formas que eu sou INSUFICIENTE e menos do que ela.
Isso me faz menos evoluída? Me faz antiquada? Me faz possessiva?
Todos os dias eu lembro dessa experiência e sinto novamente a dor e a vergonha que senti naquela madrugada, desejando ardentemente ser outra pessoa e receber o amor que ela recebia. Foi o fim de uma relação, mas acima de tudo, foi o fim do meu senso de dignidade e da autoestima que construí a duras penas.
Como eu posso ter segurança para viver um relacionamento não-exclusivo, quando passei a vida inteira ouvindo que não sou suficiente? Que ninguém vai me querer e me amar de verdade? Quando passei a vida sendo comparada a outras mulheres, sendo colocada como menos do que elas e sendo trocada pelo que é mais "socialmente aceito"? Como eu vou dividir o tempo e a atenção de quem eu amo com outra pessoa, quando nunca fui prioridade de ninguém? Como não vou sentir ciúmes vendo quem eu amo beijando outra pessoa, fazendo declarações, construindo intimidade? Construindo uma vida! Quando eu nunca atingi o nível de intimidade de verdade com ninguém, porque nunca tive oportunidade! Nunca me deram oportunidade.
Depois de uma vida de afeto negado, de rejeição, de solidão e preterimento, não tem como eu ter segurança para bancar isso sem me esfolar inteira. Pessoas padrão (ou com passabilidade) querem "desconstruir o amor romântico", mas quem vive à margem da sociedade não conseguiu nem construir o amor tradicional em suas vidas ainda!
Ser não-monogâmico não é sobre maturidade ou evolução, é sobre privilégio. Pessoas que passaram a vida inteira sendo rejeitadas e maltratadas, dificilmente vão ter as ferramentas para desconstruir as inseguranças e o ciúmes que esse formato de relação gera. Pessoas padrão, de forma geral, têm a certeza de si. Certeza proporcionada por uma vida de abundância afetiva.
Ter a possibilidade de ser desejado e amado, ainda mais por mais de uma pessoa simultaneamente, é privilégio de gente padrão.

sábado, 8 de julho de 2023

os pêlos de Frida

Diferente de muitas pessoas que foram  socializadas como "mulheres", eu sinto que a "feminilidade" e a "delicadeza" não me foram impostas. Pelo contrário, a feminilidade e as noções de delicadeza me foram negadas desde muito cedo. A delicadeza, por sinal, me foi negada não apenas na minha própria expressão, mas na forma como as pessoas, sobretudo homens, sempre me trataram e ainda tratam. Eu nunca fui vista como delicada e nem tratada com a delicadeza com a qual mulheres padrão (magras, brancas e sem deficiência) ou com passabilidade foram e são tratadas.
Sendo uma pessoa gorda desde a infância, eu nunca fui vista como "mulher suficiente" ou mesmo "mulher de verdade". Assim, as expectativas que lançaram sobre mulheres padrão nunca foram realmente aplicadas a mim. Sim, eu cresci com as mesmas limitações patriarcais das outras mulheres. Cresci com as mesmas referências femininas do resto das mulheres. Cresci estudando a mesma história, vendo as mesmas modelos e atrizes, as mesmas novelas e filmes, as mesmas propagandas... mas ouvindo (e vendo, na ausência ou na estigmatização de corpos "femininos" como o meu!) que nada daquilo era sobre mim ou para mim. Que nada daquilo me era permitido. Eu não tinha acesso ao que as mulheres padrão tinham acesso, a começar por itens de vestimenta para bancar minha expressão, mas não apenas isso. Eu tentei, com o que eu tinha, expressar minha feminilidade, mas não importava o quanto eu tentasse, minhas expressões não eram legitimadas e nunca foram o suficiente. Me olhavam e me tratavam como alguém tentando encenar um personagem. Como se nada daquilo fosse natural ou pertencente a mim. Me julgavam como alguém "tentando demais", a ponto de se tornar ridícula.  Minhas expressões de feminilidade eram motivo de chacota, tanto por parte de meninas e mulheres, quanto por parte de meninos e homens. Me esculhambaram a tal ponto, que eu também comecei a me sentir ridícula e como se estivesse interpretando o papel de mulher, ao invés de estar vivendo enquanto uma.
Então, eu aprendi a apagar quem eu queria ser. Aprendi a refrear meus desejos e vontades para não chamar atenção e conseguir sobreviver. Até aprendi a me camuflar, adotando "símbolos masculinos" na minha estética e no meu jeito. Com roupas compradas na sessão masculina, que era o que me servia, me tornei uma figura masculinizada, engrossei minha voz, falava "como homem", me colocava como "força bruta", tudo para ser aceita em grupos de homens que até me estendiam amizade, mas que não me viam como mulher, e muito menos me viam como um deles.
Vivi muitos anos da minha vida assim, me encolhendo e sendo encolhida perante uma sociedade que não me via nem como mulher e nem como homem "de verdade".
Alguns anos atrás eu comecei a resgatar a feminilidade que tentei expressar lá atrás. Eu ESCOLHI a feminilidade para mim. Independente da minha identidade de gênero, o que ainda é algo bem abstrato pra mim, eu escolhi performar a feminilidade e tenho lutado pelo meu direito de expressão, mesmo que muita gente continue me vendo como insuficiente e uma piada dentro disso.
Para me "afirmar", muitas vezes eu procuro me "desvincular" de qualquer símbolo que seja considerado "masculino", mesmo que sejam coisas inerentes a mim enquanto ser humano.
Dois anos atrás eu iniciei uma conversa aqui sobre a minha relação, enquanto pessoa gorda socializada como mulher, com meus pêlos faciais. Apesar de ter parado de depilar minhas axilas, pernas e partes íntimas há vários anos, nunca consegui aceitar meus pêlos faciais. Mesmo que os pêlos nas pernas, axilas e partes íntimas sejam tido pela sociedade como símbolo "masculino", eles foram transformados em símbolo de liberdade feminina. Ainda existe muito preconceito, mas não carrega o mesmo peso dos pêlos faciais. Houveram períodos na história onde os pêlos pubianos eram tão comuns em mulheres quanto em homens. Não faz tanto tempo que a norma era mulheres com pêlos pubianos e isso era natural até na grande mídia. Ter crescido com referências de mulheres com pêlos pubianos me fez sentir mais segura e validada ao deixar os meus próprios pêlos pubianos livres.
Já o pêlo no rosto da mulher, sempre foi extremamente estigmatizado. Não existem períodos onde eles foram normalizados. De frases como "com mulher de bigode, nem o diabo pode" à animalização de "mulheres barbadas" que eram atração de "circo de aberrações", mulheres com pêlos faciais sempre foram hostilizadas e motivo de piada e nojo. A maioria das mulheres tiram os pêlos do buço, mas é como se isso fosse um segredo coletivo. Só agora, com a internet, surgem referências positivas, mas ainda é um tabu muito grande para ser quebrado no dia a dia, quando estamos sozinhas e fora da bolha da internet. Eu posso esconder os pêlos das outras regiões do meu corpo se eu quiser, mas não tenho como esconder o meu rosto.  Ele é a primeira parte de mim que as pessoas enxergam... Me sinto muito mais exposta aos preconceitos das pessoas. Além disso, parece que ironicamente, os pêlos do meu rosto crescem em maior abundância do que o do restante do meu corpo. A sensação de falta de controle é muito grande.
Após dois anos desde a primeira vez que falei disso, a situação piorou consideravelmente. Antes eu conseguia tirar os pêlos e ter um respiro antes de eles voltarem, mas agora eu mal tiro e já estão crescendo novamente, se tornando perceptível em poucos dias. Isso em partes porque meus cabelos, os pêlos que eu gostaria que crescessem, caíram muito por causa dos meus problemas de saúde física e mental, e eu estou usando um produto para fazê-los crescer, mas que tem como efeito colateral o aumento dos pêlos faciais.
Talvez porque a minha autoestima esteja tão fragilizada nos últimos dois anos, a minha paranóia também piorou. Se antes me bastava tirar os pêlos com aparelhos de barbear, agora eu preciso tirar pela raiz e tenho apelado para depilação a cera. A dor "não me importa", mas esse método é agressivo para a pele e para o bolso, o que restringe o meu acesso a ele.
Eu queria conseguir lidar melhor com isso. Tentei olhar para esses pêlos com mais carinho e livre dos estigmas sociais (que pesam mais ainda sobre mulheres gordas). Mas é muito difícil aceitá-los, sentindo que eles me afastam da percepção de feminilidade que eu luto para manter. Há pouco tempo o feminismo e a própria comunidade LGBTQIA+ mostraram como os pêlos faciais estão atrelados à masculinidade no imaginário social, quando escorraçaram uma travesti por ela manter uma barba. É uma contradição muito profunda. Vai contra tudo pelo que lutamos. A verdadeira desconstrução de gênero está muito distante ainda. Mas há de se pensar: quando invalidam pessoas de barba enquanto mulheres trans e travestis, quando dizem que mulheres de barba devem ser excluídas de espaços femininos (especialmente banheiros) onde ficam também as mulheres cis que têm pelos faciais e BARBAS? As mulheres cis que não têm passabilidade social de mulheres cis.........
Há meses tenho andado por aí de cabeça baixa, tentando esconder meu rosto com os cabelos. Sentindo os olhares de nojo. Me sentindo nojenta por tabela, mesmo sabendo que eu sou uma pessoa com bons hábitos de higiene pessoal. Eu me cuido de forma até mesmo obsessiva, justamente pelos estigmas sobre o corpo gordo. Uso bons sabonetes, cremes corporais, faço skin care, mas a percepção social me contamina toda vez que olho pro espelho e vejo os pêlos escuros.
Tenho ficado autoconsciente ao postar fotos do meu rosto, com medo de notarem os pêlos, especialmente na linha do buço.
Pior, tenho sentido medo de ser tocada e beijada e sentirem minha pele áspera, como eu sinto ao passar minha própria língua. Medo de sentirem a presença dos pêlos mesmo que eles não estejam tão visíveis...
Mas eu sei que quando tenho vergonha e fico insegura, eu me torno refém disso. Então decidi testar meus próprios limites para tentar lidar com a situação. Já que eu não teria acesso a depilação por alguns dias, decidi "assumir" esses pêlos. Decidi deixar eles crescerem mais, para ver até onde iam. E tracei uma meta: só iria depilar após fazer uma sessão de fotos para postar aqui e abrir de uma vez essa insegurança. Essas são as primeiras fotos.
Tanto no dia a dia, quanto nas fotos que fiz, eu decidi reforçar os símbolos femininos em conjunto com os pêlos da linha do buço. Os pêlos combinando com batom vermelho ou vinho. Com adereços "femininos". Com roupas "provocantes". Assim, eu quis que se tornasse um símbolo da minha feminilidade. Foi bem difícil. Eu me senti autoconsciente toda vez que fui para a academia e os professores olharam com estranheza. Toda vez que eu estava no transporte público e senti os olhares das pessoas.  Toda vez que postei fotos sem filtro.
Mas quando me arrumei e tirei as fotos, de repente eu me senti muito bem. Me senti hiperfeminina. Um tipo forte de feminilidade.
As lentes não capturam os pêlos como eles realmente são. Eu tentei muito retratar a realidade, por isso não usei filtros. As câmeras por si só suavizam nossa pele, nossos traços, nossos pêlos, e isso também é uma ferramenta de controle social. Aqui nessa bolha, nós mentimos até sem querer. Ninguém é exatamente como parece.
Pessoalmente meus pêlos estão mais grossos e mais perceptíveis. E eu não pretendo mantê-los, a depilação já está marcada. Ainda não estou pronta para adotar esses pêlos e a carga social que eles carregam, mas gostei desse registro. Um detalhe é que eu tirei as fotos e só depois, quando fui ver o resultado, verifiquei que o livro com o rosto e a monocelha de Frida ficaram dentro do enquadramento! A Frida ali encarando meu medo comigo. Achei providencial!

sexta-feira, 30 de junho de 2023

não era amor

Juliana
se matou
por Rafael

10 anos atrás
Juliana se matou
Na minha frente.

Se matou por Rafael
Na minha frente...

Muita coisa passou por Juliana
Antes de Rafael, é verdade....

Quando criança, Juliana
Foi abusada pelo próprio avô
E ganhou mais de 10 personalidades

Ao se olhar no espelho
Ela nunca sabia quem encontraria.

Então chegou Rafael—
Tão controlado, com sua fala macia
Tão inofensivo, com seus olhos tristes
Tão profundo, com sua alma torturada
Tão culto, com seu violino afinado...

Parecia a calmaria 
Depois da tempestade
Parecia um porto seguro
....Para Juliana 

Mas a verdade estava bem longe
Do quadro pintado
Rafael tinha uma máscara
Grudada no rosto
Tão realista
Que enganava todas as Julianas

Ele estralava os dedos e lá ia
As Julianas
Com seus rabos abanando.

Depois Juliana voltava...
Um emaranhado de Julianas
Com os olhos vermelhos de tanto chorar...

Num momento de descontrole
O espelho se partia
Uma personalidade refletida
Em cada caco......

Em cada caco que
Rasgava sua pele

.... Uma personalidade dentro
De cada gota de sangue
Pingando no chão branco.

O que fez Juliana se matar
Foi amar Rafael

Ela o amava tanto
Que o amava com cada uma
De suas personalidades...

O que todas elas tinham em comum
Era o amor por Rafael

Rafael, que tinha um segredo:
Com suas roupas limpas,
Seu diploma, seu livros
E sua juventude
Rafael era sujo como o avô de Juliana
Ele também gostava de crianças

Juliana não se importou
Desde que Rafael também gostasse dela
... De ao menos uma de suas tantas versões 

Ele gostava de Juliana
Nas horas em que comia
Em segredo 
Cada personalidade

Eram muitas Julianas dedicadas
A servi-lo.

Depois ele voltava para seu violino
E Juliana não existia;
Nenhuma delas...

Juliana esperava afeto de Rafael,
Que maltratava conscientemente 
Todas as suas versões.

Juliana se matou por Rafael.
Deixou sua mãe por Rafael.
Deixou seu pai por Rafael.
Deixou seu irmão por Rafael.
Juliana se matou na minha frente
Por Rafael.

10 anos atrás
Juliana se matou
Não por amor
Mas por Rafael 

Na minha frente...