segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

5 minutos

 Hoje me juraram de morte. Foi assim: uma bruxa-vidente viu a minha morte em seus sonhos, e veio me pedir que eu faça exames e cuide da minha saúde, pois quando ela sonha, acontece. Que belo alimento para a ansiedade de uma hipocondríaca! Uma hipocondríaca que se diz ateia, mas tem contestado isso intimamente um pouquinho a cada dia. Uma hipocondríaca que está sempre às voltas com a vida e a morte, querendo viver em um instante, e buscando a mais cruel das mortes em outro.

Mas ontem, ah, ontem foi um bom dia. Que dia bonito, sem pensar em morte ou deuses ou doenças. Um dia doce, traçando beijos em uma constelação de pintas, em veias de braços, e num rosto que visto bem de pertinho é ainda mais bonito. Sentindo um abraço tão bem encaixado que parecia ter sido feito sob medida (calma aí com a emoção, Cíntia!).
E depois, o uber em 5 minutos.
Quantos beijos cabem em 5 minutos? - eu perguntei. Ele riu e nos beijamos.
Mas não era uma pergunta retórica.
Cheguei em casa sentindo a vibração de lábios nos meus lábios e dormi o sono dos justos, não sem antes perguntar, repetidamente, para mim mesma: "quantos beijos cabem em 5 minutos?". Eu precisava usar isso numa poesia, aqui está. Mas, bem, dormi, e foi o sono de quem teve o que desejava há muito tempo.
E aí acordei com a sentença e a minha mente já começou a maquinar: quanto tempo eu tenho? Será que eu tenho tempo suficiente? Será que eu vou conseguir chegar onde eu quero, para justamente nesse momento, morrer? Morrer e cair no esquecimento, como a Thamires, que morreu e ninguém ligou, e eu mesma só descobri 1 ano e meio depois.
Para controlar a minha ansiedade, peguei um livro. Ele não consegue me prender, não consegue me tirar dos meus próprios pensamentos. A história está meio confusa, meio maçante, meio blasé. E eu não tenho apego pelo blasé.
Enquanto tento me concentrar no livro, atormentada pelos meus pensamentos, chega até mim o perfume de ontem, ele vem da minha camiseta da Janis Joplin que repousa ao meu lado. Perdendo as palavras da narrativa, sinto o cheiro que prova que aconteceu, e que eu quero sempre mais, mais e mais. Talvez eu não consiga lavar essa camiseta por algum tempo, vou deixá-la com o aroma de ontem, a mistura de kaiak, pele, desejo e sexo. Talvez minha seguidora-bruxa-vidente esteja certa e eu morra antes de ter tempo de lavá-la, ou antes de repetir o ontem.
Estava perdida em pensamentos, quando ouvi o tique-taque. Pousei o livro aberto para baixo. Fazia muito tempo que eu não ouvia o som tormentoso de um relógio. Há muito me desfiz de tais objetos que só servem para me afrontar. Mas agora ouvia, bem nítido, tique-taque, tique-taque, bem baixinho, tique-taque, mas perto. Quanto tempo eu tenho? Vai dar tempo? Meu deus! (pera lá, é só uma expressão, não uma anulação do ateísmo).
Avistei o relógio azul que ganhei dos meus irmãos. Ali estava, com seus ponteiros impiedosos, ligeiros, , fazendo meu coração perder o compasso, angustiando a minha alma. Findando as coisas.
Quantos beijos cabem em 5 minutos? Um longo beijo até ficar sem ar? 5 beijos de um minuto cada, cronometrado? Muitos e muitos beijinhos pelos lábios e pelo rosto todo? Um no ombro pra fechar?
... Em 5 minutos não cabe o suficiente de nada que valha alguma coisa. Vou de Cazuza: "você tem exatamente três mil horas pra parar de me beijar". Depois dobramos a meta.

Que a vidente esteja errada, que a vida tenha renovado meu contrato no dia 3, que ele me beije de novo e de novo e de novo.
Amém (uso fluido)

quarta-feira, 29 de maio de 2024

maio de 2014

Aviso de gatilho: dependência química 

Esse mês eu completei 10 anos sem cocaína. Nunca pensei que isso seria possível. Dá até medo de dizer isso, de "comemorar" isso, e um dia ter que admitir que voltei à estaca zero. É o meu lado ansioso falando, mas eu nunca descarto essa possibilidade, porque mesmo depois de 10 anos sem, continua sendo muito difícil resistir a tentação. Eu ainda sonho com cocaína, e acordo com a sensação de que usei. Acordo querendo mais. Ainda sinto o cheiro dela, feito um cão farejador, nos pontos de São Paulo onde eu comprava. Ainda sinto vontade de me entregar a ela nos meus piores dias. E não só a ela, mas às outras drogas que usava na época, e que em conjunto, me davam o amortecimento que eu precisava para viver, mas que ao mesmo tempo me destruíam. Eu sentia ela agindo no meu corpo, me matando aos poucos, me fazendo vomitar sangue, mas eu não conseguia e nem queria parar aquilo. Sim, eu não queria. Eu queria a decadência e a dor que ela me trazia. Eu não sei porque sou assim, não sei porque vejo beleza na decadência, mas sempre vi e ainda vejo. A decadência me atrai como uma lâmpada atrai mariposas. Não ser tão decadente é uma escolha diária, desde que em um dia de maio de 2014, assim do nada, eu disse "chega". E me mantenho "limpa", apesar das amarguras da vida. Apesar da atração pela decadência. Apesar da necessidade, que não é só psicológica, mas também física. 
Nem eu entendo de fato o que me fez parar e resistir todos esses anos, porque tenho poucos motivos palpáveis para ficar sóbria. Talvez seja o fato de que com o tempo, ela foi fazendo menos e menos efeito "positivo" e passou a me proporcionar apenas os desprazeres. Ou talvez seja porque eu não gostava de mim quando usava cocaína. Eu me tornei uma pessoa irresponsável e mentirosa. Eu vivia uma vida dupla, tripla, sempre tinha que cobrir meus rastros, inventar mentiras que nem importavam de verdade, mas que dentro da minha paranóia crescente, eram necessárias. 
Os danos que a cocaína causou na minha vida continuam firmes e fortes depois de mais de 10 anos. Acredito piamente que muitos dos meus problemas de saúde física e mental atuais se devem ao período de uso de cocaína, álcool (que consumiu ainda mais a minha vida do que a cocaína) e outras drogas. Mas o pior pra mim são os danos morais. Eu tive que fazer coisas humilhantes para manter esse vício. Muitas coisas eu não gosto nem de relembrar e que provavelmente nunca vou contar para ninguém.
Esses dias meu irmão descobriu uma mentira que contei para ele lá atrás, para encobrir o uso de drogas, e ficou com tanta raiva de mim, que seu rosto ficou vermelho. Eu vi o olhar de decepção e até repulsa dele e me senti péssima. Me senti como se tivesse cometido tal falta ontem. Constantemente tenho que me desculpar por coisas que fiz mais de 10 anos atrás.
A raiva dele foi como ser punida por algo que não fui eu que fiz, porque de muitas formas, eu não sou mais a Cíntia que mentiu pra ele. Eu sou uma pessoa completamente diferente da Cíntia de 21 anos. De 24 anos. Mas isso não apaga o erro...
Depois desse episódio com ele, fiquei pensando em quão pouco minha família me conhece, inclusive meus irmãos, que eu amo e considero próximos. Eu tive que mentir tanto, esconder tanto, que me tornei uma desconhecida para quem estava mais perto de mim. Acho que quem me lê aqui, conhece mais de mim e do meu passado do que quem viveu o passado comigo.
Hoje tenho a Júlia na minha vida e penso muito nela, em quem eu vou ser pra ela, no exemplo que eu vou dar, e isso me impede de me entregar aos meus pensamentos mais decadentes e autodestrutivos (porque eu sempre fiz mais mal pra mim do que pros outros, mas às vezes o mal respinga).
Ela tem sido meu freio. Porém, nem sempre é o suficiente ser a tia que precisa dar exemplo. Muitas vezes eu só quero me entregar aos meus impulsos e necessidades destrutivas.
Mas é como dizia Renato Russo (e o NA): "só por hoje eu não vou me destruir"... E por 10 anos, tenho me preservado "por hoje", somando vários hojes. Estou o mais sóbria que já estive na vida. Parei de beber há bem menos tempo do que parei de cheirar, mas há um tempo significativo. Ando me sentindo até meio zen. Apesar dos pesares, parece que encontrei um pouco de paz. Só por hoje...

sexta-feira, 5 de abril de 2024

do zero

O surto veio, fui de Britney. Foi uma decisão bem difícil, que eu já considerava há algum tempo, mas contive minha impulsividade, em partes por medo. Eu já raspei a cabeça quando mais jovem, a primeira vez em um ato de desespero muito maior do que o atual. Na época, fazer isso me trouxe muito alívio, mas também muitas inseguranças e julgamentos. Aos vinte e um anos, eu ligava muito mais para o que pensavam sobre mim do que hoje. Eu não achava meu rosto bonito, não achava nada em mim bonito, e sem os cabelos estava despida. Me sentia livre por ter me livrado dos cabelos, mas me sentia feia, e como apontavam de forma pejorativa, "mascunilizada". É verdade que amadureci muito desde aquela época e aprendi a ver beleza em mim mesma. Construí minha feminilidade, independente de orientação de gênero. Aprendi mais sobre mim. Não tenho mais que dar satisfações para ninguém. Mas são várias as questões que me atravessaram e me fizeram ter medo de perder meus cabelos... de ficar careca, exposta, de ser menos atraente para as pessoas.e
De 2014 pra cá, meus cabelos cacheados e volumosos se tornaram o pilar da minha autoestima e uma das minhas características mais marcantes. Mas até isso a depressão me tirou. Eu atingi níveis tão altos de estresse, que meus cabelos, ora volumosos, viraram fiapos patéticos. Eu me apeguei por mais de 2 anos aos cabelos que restaram, vendo com pavor eles caindo aos tufos a cada vez que eu penteava ou sequer passava as mãos. Chorei de desespero muitas vezes, me senti feia, novamente vi minha autoestima destruída. E quando as pessoas comentavam, me sentia impotente. Tentei de tudo para preservar eles, mas muitas vezes quis raspar de uma vez e começar do zero. Minha psicóloga me perguntava se essa era uma decisão que eu conseguiria bancar nesse momento, e  eu não sabia dizer. Na verdade, achei que não, então me controlei ao máximo e de forma surpreendente. Devo admitir que meu maior medo era que isso afetasse ainda mais minha vida sexual e afetiva. Que numa sociedade machista, minha cabeça raspada seja um repelente.
Mas tem uma pessoa em especial que eu pensei muito, com temor: "será que ele vai me achar feia?". Ele gostava dos meus cabelos, sempre dizia. Bem, não importa. Não adiantava eu continuar me apegando a fiapos de cabelos, assim como não adianta eu ficar me apegando a um amor que não se concretizou. Meus cabelos não fizeram ele ficar, e provavelmente não seriam motivo para ele voltar algum dia. Depois de uma semana em uma crise que me fez sentir como se tivesse dado muitos passos para trás, eu levantei da cama e decidi. Mais ou menos. Foram horas de espera até o salão abrir. Num minuto eu dizia: "eu vou", no outro dizia: "melhor não". Fiquei olhando do meu portão e quando o salão abriu fui lá e pedi para raspar. Ele lançou o típico "tem certeza?" E eu disse, sem hesitar: sim. Foi muito mais tranquilo do que eu pensava, tanto na tratativa do cara, quanto no meu psicológico. Não senti tristeza e nem desespero. Não senti alívio também. Não me senti, a princípio, nem feia e nem bonita. Não me senti "masculinizada".  Quando voltei pra casa, comecei a me olhar no espelho, olhei toda vez que passei na frente dele e parei para me admirar.  Me olhei de uma forma que não me olhava há tempos... E me vi. Vi minha essência. Eu não sou meus cabelos. Não sou um objeto para agradar ninguém. Me senti linda pela primeira vez em muito tempo. Me senti potente, feminina. Como uma tigresa... É assim que tenho me visto nos últimos dias. E aí me senti livre. Senti tesão. Me senti fresca, limpa. Manter cabelos tendo depressão, e principalmente em dias quentes, não é um trabalho fácil. Nos últimos dias, sem os cabelos, tenho feito skin care, tenho sentido vontade de me maquiar, de me enfeitar, até meu jeito de andar voltou a ser como antes... 
Meu objetivo era raspar para ver se os cabelos cresciam novamente mais fortes, mas acho que vou manter a cabeça raspada por algum tempo. Talvez as pessoas me julguem, talvez eu não fique com ninguém por muito tempo, talvez não me vejam como atraente. Mas nesse momento, isso faz sentido pra mim. Só isso importa.


segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

leitura: paciência



Título: Paciência
Autor: Daniel Clowes
Editora: Nemo
Ano de lançamento: 2017
Número de páginas: 181
Lido em: 31-12-23 a 01-01-24

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"Ela é a última pessoa em quem vou encostar. Pode ser que ainda tenha algum pedacinho, alguma célula
dela na minha pele."

Paciência, de Daniel Clowes, foi um presente que ganhei de aniversário e que me acompanhou nessa virada de ano solitária. Já li algumas obras do Clowes, sendo "Ghost World" uma das minhas graphic novels preferidas da vida. Além disso, sou apaixonada por enredos que envolvem viagem no tempo e paradoxos, e essa é a premissa dessa graphic novel, então eu já esperava que seria uma leitura do meu agrado. Eu tento não criar tanta expectativa sobre histórias com viagem no tempo, porque é algo muito difícil de conduzir sem deixar furos ou se tornar algo altamente previsível, mas sendo Clowes, não consegui evitar criar expectativas, porém posso dizer que mesmo com a expectativa elevada, ela ainda conseguiu me surpreender positivamente.
A história começa no ano de 2012, quando Jack Barlow e sua esposa, Paciência, descobrem que terão um filho. Eles ficam muito felizes com a notícia, mas por outro lado, sendo bastante pobres e vivendo num momento de crise financeira nacional, eles começam a entrar em desespero por todas as demandas financeiras que ter um bebê exige. Paciência está desempregada e Jack encara um trabalho com salário ínfimo e sem perspectiva de conseguir algo melhor, já que não concluiu os estudos. Ele tenta manter uma fachada de esperança para não preocupar a esposa, mas as preocupações financeiras fazem com que eles fiquem introspectivos, mantendo seus pensamentos de insuficiência para si mesmos, ao invés de tentarem resolver os problemas juntos. Eles vivem nessa dualidade: enquanto Jack se acha pouco para Paciência, Paciência se acha pouco para Jack. 
Aliás, comunicação não é o forte do casal. Paciência dá sinais de ter um passado tenebroso e que ainda lhe assombra, mas nas poucas vezes em que ela tenta se abrir, Jack não quer falar sobre, achando que é melhorar deixar o passado no passado, para que ela não fique mais chateada.
Um dia, ao voltar do serviço, Jack encontra Paciência morta. A polícia logo o coloca como o principal e único suspeito do crime e ele é jogado na cadeia, onde fica por 10 meses, passando pelas mãos de advogados públicos incompetentes. Até que um dia o libertam e informam que encontraram fibras e DNA de outra pessoa na cena do crime. Com o tempo que passou, o caso esfriou e é arquivado.
Jack decide investigar por conta própria e viaja até a cidade de onde Paciência veio, seis anos antes, para tentar descobrir mais sobre sua vida e talvez encontrar suspeitos ou a pessoa que a assassinou. Paciência não tinha família viva além de uma irmã de criação que é uma viciada em drogas e tem pouco de concreto para oferecer para Jack além do nome de um ex-namorado, "Andy". Jack procura muito por esse ex-namorado, mas não encontra rastros dele.
Então somos levados para o ano de 2029, num mundo futurístico, onde Jack, agora na casa dos 50 anos, foi incapaz de superar a morte de sua esposa e filho, continua amargurado e buscando pistas para solucionar o crime. Toda a vida de Jack gira em torno do que aconteceu. A única coisa na qual ele pensa além do passado com Paciência e em seu assassinato, é na vida que poderia ter tido ao lado dela e do filho. Ele não tem amigos e não se envolveu novamente com nenhuma mulher. Ao longo dos anos ele apenas nutriu sua obsessão e rancor pelo que aconteceu.
Até que ele conhece uma prostituta e lhe conta sua história. Ela então lhe conta sobre Bernie, um cara que é tão obcecado quanto ele pela morte de alguém do passado e que vive falando sobre viagem no tempo. Isso entra na mente de Jack, e como todas suas tentativas de investigação deram em nada, ele decide ir atrás de Bernie para tentar voltar no tempo e impedir a morte de Paciência e seu filho.
Após vigiar e seguir Bernie, Jack descobre que o homem construiu um dispositivo e fez um elixir capaz de enviá-lo ao passado. Ele então rouba tal tecnologia de Bernie e embarca em sua jornada para salvar sua esposa e seu filho. Sua primeira parada é em 2006, seis anos antes do crime. Jack vai para a cidade onde Paciência cresceu e começa a observar sua vida, tentando descobrir mais sobre ela e sobre as pessoas com quem ela convive, tentando descobrir quem a assassinou.
Nessa busca, ele acaba descobrindo coisas sobre sua esposa que nunca havia imaginado, e apesar de tentar não interagir com ninguém do passado e deixar as coisas seguirem o curso natural para que eles se encontrem e se casem, Jack acaba se envolvendo mais do que deveria nos eventos, o que pode gerar consequências no futuro que ele conheceu ao lado de Paciência...
Como disse, criar uma história sobre viagem no tempo não é uma tarefa fácil. Muitas pessoas que tentaram, no cinema ou na literatura, esbarraram em clichês ou meteram os pés pelas mãos, criando  roteiros cheios de furos e confusão. Daniel Clowes, no entanto, conseguiu conduzir e amarrar a história muito bem. Apesar da complexidade do tema, ele produziu uma narrativa clara, envolvente e sagaz, que aborda a dor do luto, a revolta pelas desigualdades sociais e, claro, a dificuldade de viajar para o passado sem criar uma profecia autorealizável. Além disso, também explora os impactos da viagem no tempo para o corpo humano, uma vez que somos sacos de células. Nesse sentido, é especialmente interessante acompanhar uma história do gênero por quadrinhos, já que nessa mídia não existe limitação nenhuma para efeitos especiais, desde que a pessoa responsável pela arte tenha talento e imaginação, e esse é o caso em  "Paciência". As artes são muito bonitas e detalhadas (até nos planos de fundo), com cores vibrantes na era mais futurística e com ambientação saudosista quando o personagem viaja mais para o passado. Nos momentos em que fica evidente os danos físicos da viagem no tempo, temos uma explosão psicodélica de formas e cores que tomam conta das páginas de forma extraordinária.
Como era de se esperar de Daniel Clowes também, apesar da crueldade explícita e do tom sombrio dos personagens, temos diversos momentos de humor ácido e linguagem muito desbocada. No entanto, vale ressaltar que em muitos momentos há uma apelação contra o corpo gordo. São muitos os momentos de estigamatização do corpo gordo e gordofobia recreativa. Tem vários personagens gordos e Jack ataca a aparência de todos eles.

Tirando isso, foi uma leitura muito interessante e divertida, que também me gerou alguma reflexão: será que se esse crime não tivesse acontecido, Jack e Paciência teriam realmente ficado juntos e sido "felizes para sempre" como ele fantasiou por anos? A conexão deles me parecia tão fraca. Eles eram claramente codependentes, mas ao mesmo tempo não se abriam muito um para o outro. Não se conheciam profundamente. É possível realmente amar alguém que não conhecemos? Acredito que esse é um clássico caso onde os sentimentos são amplificados pela perda, e que beira mais obsessão do que amor. Não que seja uma obsessão injustificada, afinal, ele perdeu a esposa e o filho, independente do que viesse a acontrecer entre eles no futuro. Mas no fim das contas, o Jack do futuro conheceu mais de Paciência do que o Jack que a perdeu no começo da história algum dia conheceria.
Por fim, o motivo do crime não foi super elaborado e nem o final que eu esperava, mas me agradou. Fez sentido para a história. E o final do personagem Jack também foi muito legal e fechou bem a história.

Leitura recomendada! 

* Uma pequena crítica que eu tenho, é para a tradução e revisão de texto, que em determinados momentos deixou a desejar, especialmente quando li um "ciclano" ao invés de "sicrano". Em escrita informal, amadora ou em tradução gratuita, eu não ligo para como as pessoas escrevem e considero que o importante é se fazer entender. Mas uma tradução e publicação desse porte merecia mais atenção e cuidado.

Vou dizer o final que eu esperava abaixo e isso pode ser um tipo de spoiler, então leia por sua conta e risco!
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Pensei que o prório Jack mais velho (que viajou no tempo) poderia acabar sendo o assassino por algum motivo. O próprio personagem levanta esse receio em determinado ponto da história

domingo, 31 de dezembro de 2023

mudança

No começo do ano eu disse que meu espírito estava pedindo por mudança. Mas como mudar? De tantas formas, mudança nunca foi algo fácil para mim. Eu já fui bem impulsiva, até mesmo destemida diante do perigo, mas essa impulsividade nunca produziu nenhuma mudança real na minha vida. Em questões práticas e necessárias para viver em sociedade, sempre me vi travada.
Hoje eu me vejo como uma pessoa muito mais cautelosa. Os anos e as pessoas me fizeram alguém medrosa. Até na minha autodestruição eu fiquei mais contida. E de repente, nada daquilo fazia sentido. A autodestruição, que antes me dava algum alívio, já não surtia efeito.
Eu precisava de uma mudança, meu espírito estava pedindo por isso, mas eu não sei como mudar. Qual direção tomar? Quais medidas? Quais ações? E eu caí num abismo, que foi desconhecer a mim mesma. Comecei a perceber que as coisas que eu gostava, já não gosto mais. Que o que antes era meta, deixou de ser. Que muito do que eu acreditava, já não acredito. Que as coisas com as quais me identicava, já não me identifico. Que muitas vezes digo que gosto de algo que gostava antes, só por hábito. Hoje eu conheço mais quem eu fui, do que quem eu sou.
E ninguém me conhece também. Não de verdade. As pessoas conhecem e buscam quem eu fui, não quem eu sou.
Do que eu gosto agora? Quem eu sou agora?
Como mudar, quando não sabemos quem somos e o que queremos?
Até que o universo impulsionou esse processo de mudança pra mim. De certa forma, as coisas foram se encaixando e funcionando a meu favor. Não estou dizendo que esse ano foi fácil, pelo contrário. Eu senti muita dor, física e emocional. Senti muita solidão. Mais do que eu pensei que pudesse suportar. Mas também ganhei algumas ferramentas e armas para tentar navegar pelo caos que sempre foi minha vida.
Primeiro, a natação, que é algo que eu gosto desde criança e não tinha acesso. Voltar para a natação depois de tantos anos, foi como reencontrar a Cíntia de 10 anos. Em alguns aspectos, eu me vi muito similar a ela, mas em outros, muito diferente. Eu achei que ela sentiria orgulho de saber que nós não temos vergonha do nosso corpo mais e que estamos finalmente construindo uma relação mais saudável com comida. Apesar dos muitos desafios envolvidos em fazer aulas de natação, tive muitos momentos de paz e contentamento dentro da água esse ano. E espero levar isso para 2024.
Depois consegui uma psicóloga muito boa e empática, com a ajuda de um amigo, e na sequência uma psiquiatra especialista em neurodiversidade, com a ajuda de uma seguidora gorda e autista, e embarquei num processo de olhar pro meu passado e pros meus diagnósticos até aquele momento de uma forma diferente. Há muito tempo eu sentia que meus diagnósticos dos último 10 anos não contemplavam minhas vivências e minhas dificuldades diante do mundo. Eu sentia que não era o suficiente para explicar minhas necessidades de suporte. A psiquiatria vai avançando, e com isso mudam definições e conceitos. Aos poucos, quem não era visto e nem validado, começa a ser. Poucas vezes tive um acolhimento psicológico e psiquiátrico realmente humano. Poucas vezes me senti vista em consultórios de saúde mental. Com essas duas profissionais atuais, eu senti que fui vista e validada. Viram além da tristeza, além das cicatrizes, além até mesmo dos abusos. Olharam e me ajudaram a olhar pra minha vida toda, desde quando eu era bebê. Eu descobri coisas (com a ajuda da minha mãe, que respondeu questionários) sobre a minha primeira infância que não fazia idéia e que elucidaram muitas questões do passado e do presente. Que levaram a novos diagnósticos, que podem me garantir o suporte que eu preciso para talvez conseguir mudar de forma mais substancial.
Receber diagnósticos corretos depois de tantos anos de luta pela minha saúde mental foi positivo, mas não posso dizer que foi fácil desapegar de diagnósticos que carreguei por mais de 10 anos, mesmo que com eles eu carregasse muita marginalização e negligência. Era o que eu sabia. Eu passei anos lendo e estudando sobre aquilo. Agora eu estou num campo semi-desconhecido. Ainda estou digerindo tudo que está atrelado a isso, inclusive as possibilidades que me foram negadas com um diagnóstico errado por boa parte da minha vida. Eu poderia ser outra pessoa se tivesse tido o tratamento adequado. O que ainda é possível salvar disso?
Esse ano eu fiquei bem introspectiva, mais do que o normal, e guardei muito de mim para mim mesma.  Eu sempre olhei muito para o meu passado, o expus, mas sempre com rancor, às vezes até de mim mesma. Nunca consegui me acolher muito bem. Com a minha psicóloga atual, eu estou conseguindo olhar para o passado, para as diversas Cíntias que fui, com acolhimento. Quando não sou capaz de dar esse acolhimento, minha psicóloga acolhe as Cíntias do passado e a Cíntia do presente, sentada ali na sua frente.
Acho que nunca estive tão aberta para o tratamento psiquiátrico e psicológico como estou nesse momento, e minha cabeça também está mais clara com as medicações e as intervenções terapêuticas agora que não consumo nenhum tipo de droga (nem mesmo álcool) e não estou sendo dopada com remédios ineficientes para o meu caso. É algo totalmente diferente do que vivenciei até aqui, fazendo tratamento desde os meus 15 anos. Isso é mudança, certo?
Depois de receber os novos diagnósticos, sobre os quais ainda não me sinto confortável para aprofundar muito, fui conversar com a minha psiquiatra anterior à atual, que me acompanhou antes da pandemia. Eu gostava muito dela e nos tornamos amigas quando o sistema nos separou enquanto paciente e profissional. Falei para ela sobre esses novos diagnósticos e pedi a opinião informal dela, como alguém que sabe da minha história e me acompanhou, mesmo que por pouco tempo. Ela deu sua opinião, mas o que me marcou foi quando ela disse que tudo que eu passei na infância foi enlouquecedor. E que eu enlouqueci, mas os livros me salvaram, de alguma forma, e a minha loucura ficou contida dentro de uma intelectualidade. Eu senti essas palavras. Acho que foi um misto dessa reflexão com o efeito dos remédios, mas depois disso eu recuperei o apetite pela leitura de uma forma que não conseguia há anos. Consegui ler diversos livros depois desse processo e dessa conversa. Voltei a me envolver com as histórias que leio, voltei a sentir aquela ansiedade boa para saber o que acontece a cada virada de página, voltei a ficar tão imersa nas páginas, que os problemas somem. Comecei até a me desesperar um pouco por todo o tempo que perdi, que deixei de ler. Eu fiquei e estou muito contente por voltar a me sentir assim sobre livros.
Por fim, no último minuto do segundo tempo, veio a maior mudança desse ano: a mudança forçada de casa. Fui despejada injustamente de onde morava e em menos de 20 dias, completamente sozinha, tive que encontrar uma nova casa, encaixotar tudo, encontrar prestadores de serviço, limpar tudo,  fazer a mudança e agora termino 2023 tentando finalizar essa mudança. Tentando colocar tudo no lugar, zerar as caixas.
Quando eu recebi o despejo, tentei não me desesperar. Eu já queria mudar de lá, por vários motivos, mas tinha medo. Medo de ir pra outro lugar, de ter que me adaptar a outro lugar, de desapegar de um espaço no qual vivi momentos que nunca mais irei viver, com alguém que amei muito. Medo de ter que conhecer novas ruas. Andar por novas ruas. Conhecer novos vizinhos. Eu iria adiar essa mudança o máximo, pelo medo. Mas a vida se encarregou de me forçar a mudar, porque eu precisava disso. Dizem que há males que vêm para o bem, não? Dessa vez essa frase pareceu verdade. Eu encontrei uma casa muito melhor, que parece ter sido feita para mim, e com toda correria, deu certo.  Eu tinha outros planos para esse fim de ano, para o natal, ano novo e meu aniversário, mas se não fosse isso, se eu esperasse, provavelmente perderia a oportunidade de estar nessa casa que acredito que me fará muito bem.
Eu não fui tudo que queria ser em 2023, mas fui o que deu pra ser.