quarta-feira, 22 de novembro de 2023

leitura: solitária

Título: Solitária
Autora: Eliana Alves Cruz
Editora: Companhia das Letras
Ano de lançamento: 2022
Número de páginas: 161
Lido em: novembro de 2023
Comprar na Amazon


"É curioso reparar como algumas pessoas nesse mundo não têm direito à meninice. Quando ainda mal se sustentam em cima das pernas, são vistas como adultas; enquanto outras serão para sempre garotos e garotas."

Essa é uma boa frase para resumir "Solitária", que começa sua narrativa no sudeste, no fim dos anos 90, sob a perspectiva de Mabel, uma garotinha negra que um dia é levada por sua mãe, Eunice, para o luxuoso apartamento onde esta trabalha para uma família muito rica como doméstica. Ali Mabel é imediatamente confinada a um quartinho de empregada, pois sua presença é um incomodo para Lúcia e Tiago, os patrões de sua mãe. Logo nesse primeiro contato com essa família, Mabel conhece Irene, uma menina negra de 13 anos que foi trazida do interior para ser a babá de uma criança branca. Nesse mesmo dia, Mabel presencia um acidente envolvendo essa criança branca e vê Irene sendo punida pelo ocorrido, sabendo, mesmo em seus poucos anos, que aquela moça poderia ser sua irmã.
Quando a patroa de Eunice engravida, a presença de Mabel na casa passa a ser "tolerada", desde que ela "não faça barulho" e "não fique no caminho". Na verdade, Mabel começa a ser usada como força de trabalho, tendo que ajudar sua mãe nos afazeres domésticos e nos cuidados da filha dos patrões da mãe. Enquanto Mabel tem sua infância roubada e passa a dividir de forma permanente com a mãe o quartinho de empregada onde tudo é reduzido, Lúcia ganha "duas domésticas pelo preço de uma". Porém, assim como sua avó, uma mulher orgulhosa de suas raizes e insubordinada, à medida que Mabel vai crescendo, ela vai se revoltando contra aquela família e contra aquele sistema de servilidade ao qual sua mãe está presa e decide estudar e se tornar médica para tirá-las daquela situação. Os patrões de sua mãe tratam de forma desdenhosa o sonho de Mabel de se tornar médica, algo quase impensável para uma menina negra e filha de uma doméstica, mas a menina está  determinada e se empenha nesse objetivo. Enquanto se divide entre os afazeres domésticos, uma rotina rigorosa de estudos e seus dilemas de adolescente, Mabel cresce solitária entre as quatro paredes silenciosas do quartinho de empregada, tendo que arcar sozinha com as consequências dos seus atos, enquanto sua mãe se dedica não à criação dela, mas à da filha branca de sua patroa, uma menina tão mesquinha e mimada quanto seus pais, mas por quem Eunice tem muito amor.
A segunda parte do livro nos oferece a perspectiva de Eunice, uma mulher negra reduzida não aos seus sonhos, mas às suas responsabilidades. Uma mulher que se viu esposa e mãe muito cedo, como muitas antes de si, e que teve que se conformar com o sistema, abrindo mão de seu orgulho e de seus desejos para sustentar uma mãe idosa e doente e uma filha pequena, enquanto seu marido, um homem alcoólatra e por vezes agressivo, vencido pelo sistema, abandona não apenas a família, mas a si mesmo.
Eunice se anula em função dos patrões e pela moral machista da sociedade e se vê constantemente dividida entre o amor que sente pela filha e o amor que sente por Camila, a filha da patroa, já que a criou desde bebê. Mas quando os atos irresponsáveis de Camila culminam em uma grande tragédia, Eunice precisa tomar uma decisão.
Além de Mabel e Eunice, o livro também tem seu foco narrativo na família do porteiro Jurandir, que vive em um quartinho tão "inho" quanto o de Eunice e Mabel, porém mais insalubre, com poluição o invadindo dia e noite. "Solitária", o título do livro, não se refere apenas ao sentimento de solidão, mas também aos quartinhos destinados às classes mais pobres, que são como prisões. Jurandir é viúvo e pai de João Paulo e Cacau. Enquanto o segundo decide, assim como Mabel, focar nos estudos para a possibilidade de uma vida melhor, João Paulo é um jovem revoltado contra o sistema, mas que não sabe para onde direcionar sua revolta, ocupando, na visão social, o papel do homem negro "marginal", apesar de estar muito longe de sê-lo: João Paulo também trabalha desde muito novo e teve sua infância tolhida pelo racismo.
Solitária é um livro curto, mas que abarca muitas coisas. Na minha opinião, não precisava ser tão curto. A autora poderia ter acrescentado mais camadas para alguns dos personagens secundários, poderia ter criado mais cenas e ter marcado melhor o espaço entre as fases que transcorrem ao longo de 20 anos, para dar mais profundidade aos acontecimentos. Algumas situações são colocadas de maneira muito abrupta. Ainda assim, com "Solitária", Eliana Alves Cruz cumpre bem a função de desenhar vários aspectos de uma sociedade racista e elitista, nos mostrando diferentes perspectivas e reações a essa estrutura que se perpetua há séculos. Esse livro fala sobre a infância roubada de crianças negras, sobre a eterna criancice de pessoas brancas, sobre mulheres negras que precisam abrir mão de cuidar de seus filhos para cuidar dos filhos de pessoas brancas, sobre homens negros em situação de rua e muitos outros resultados do racismo estrutural. De forma direta ou mais sutil, esse livro tem muito a dizer.  Muito atual e trazendo eventos reais, ele é um registro do cenário social e político dos  últimos 20 anos do Brasil, retratando uma elite não só acostumada a escravizar pessoas negras e pobres, mas também ressentida dessas pessoas finalmente estarem ocupando espaços até então exclusivos a ela. Uma elite sem vergonha de dizer coisas como: "esse vaso vale mais do que vinte anos do seu salário" e que apoia um governo golpista para tentar manter seus privilégios.
O que me chama mais atenção, porém, para além da abordagem sobre o impacto do racismo sobre a infância de crianças negras, é a demarcação das diferenças psíquicas e estruturais do racismo entre homens e mulheres, já que além do racismo, mulheres enfrentam também a carga do machismo e da maternidade compulsória (muitas vezes fruto da falta de educação sexual): mulheres negras não podem se dar ao luxo de se abandonar, não podem esmorecer, elas têm que se manter fortes, dentro de quartinhos solitários, para ser a base da próxima geração de pessoas negras. Afinal, por trás de cada pessoa negra, especialmente mulheres negras, têm outras mulheres negras que lutaram muito e deram o sangue para um futuro melhor para os seus. Mesmo que de formas diferentes, mulheres negras estão sempre sustentando umas às outras.

Livro recomendado.

sábado, 18 de novembro de 2023

as últimas horas da borboleta...

o que me move...?
Estava a caminho da academia. Estava atrasada, mas sabia que se a deixasse ali, ela morreria grudada no asfalto, assim como a borboleta que encontrei outro dia.
Sempre que eu vejo uma borboleta voando, eu paro, na expectativa de que ela pouse em mim, um presságio de felicidade. Mas elas nunca pousam. Elas passam por mim. As pessoas dizem que não adianta correr atrás de borboletas, nós temos que cuidar do nosso jardim e elas virão. (...)
Todo inseto que me procura, está morrendo (quase nunca borboletas). Eu coloco uma música triste, faço companhia... Mas eles morrem sozinhos, como toda criatura.
Bem, apesar do atraso, eu abaixei e recolhi a borboleta do asfalto. Minha intenção era deixá-la em algum canteiro ou árvore, mas ela estava ferida. O vento batia e a arrastava. Ela não conseguia manter seu voo. Tentei deixar num jardim no caminho do ponto de ônibus, mas não tive coragem. Fiz minhas mãos em copo, levando ela no centro escuro e protegido contra o vento. Peguei o ônibus com a borboleta nas mãos, todo mundo me olhando com curiosidade ou estranheza. Mas, como eu faria com ela ao chegar na academia? Guardaria no armário? Lembrei que lá tem um jardim bem grande no estacionamento. Fui lá, a deixei em um graveto entre árvores, folhas e flores. Entre predadores. Fiz a natação pensando nela. Se ela conseguiria se defender. Se teria sido comida por formigas. Depois da aula, fui lá olhar. Pensei em deixar ela lá, parecia mais digno morrer na natureza selvagem do que ficar entre as paredes da minha casa, depois de uma longa metamorfose. Novamente, não tive coragem. A coloquei em um copo, dessa vez de plástico, peguei o ônibus, depois o trem, sempre cobrindo o copo com a mão para o vento não machucá-la. Vim para casa sob um sol escaldante, com receio de morrermos no caminho. Chegamos em casa molengas, mas sobrevivemos.
Ela não pousou em mim. Ela aceitou a minha mão. Ela não me trouxe felicidade. Ela me trouxe, sim, alegria por sua existência e por sua beleza, aflorou meu instinto de proteção, me fez sentir ternura... mas me trouxe outros sentimentos negativos por seu destino. Pelo destino de todos os seres. Hoje essa borboleta me moveu, mas ao cruzar o meu caminho, ela me trouxe tristeza em um dia já triste, por me fazer pensar no desperdício que é passar por uma transformação longa e dolorosa, criar asas, para no fim acabar confinada em um quartinho, esperando a morte. E depois, tirando essas fotos — confesso, por imposição minha —, ela me fez olhar pra mim e me fez pensar no meu tempo passando. No meu rosto mudando. Nas novas marcas que eu tenho ignorado. Eu vi beleza nisso tudo, na minha pele, nas nossas cores, em suas asas, mas tem sempre um pouco de tristeza também.

O que me move...?

A minha solidão? O meu desejo pela companhia? O meu medo de morrer sem ter ninguém para me aninhar e me proteger do vento... O que me move é o meu medo de ser arrastada por esse mundo, assim, sem defesa. Quando acolho um inseto morrendo, não sou movida só por bondade, por identificação ou por hiperfoco: tem muito mais de egoísmo. Por alguns momentos eles me tiram da minha solidão. É um tipo tão triste de companhia. Um tipo tão triste de beleza.

sábado, 11 de novembro de 2023

leitura: pequena coreografia do adeus


Título: Pequena Coreografia do Adeus
Autora: Aline Bei
Editora: Companhia das Letras
Ano de lançamento: 2021
Número de páginas: 282
Lido em: novembro de 2023
Comprar na Amazon

"A queda ensina mais do que o voo"...

Essa é uma das muitas frases impactantes desse livro tão inovador de Aline Bei, que de forma magistral lapida um romance em formato de poesia. Quem não gosta da estrutura da poesia e está preso à prosa, seja pelo aspecto visual ou pela diferença de ritmo, pode estranhar ou até mesmo não dar uma chance à obra de Bei, mas qualquer pessoa com um pingo de sensibilidade que se permitir ler este livro vai ficar extasiada por seu talento e por sua força narrativa.
"Pequena Coreografia do Adeus" nos apresenta, em primeira pessoa, a história de Júlia, desde sua infância, à sua adolescência e começo da vida adulta. Enquanto criança, Júlia vive com sua mãe, Vera, e seu pai, Sérgio, que arrastam uma relação infeliz e por vezes psicologicamente violenta. Vera é uma mulher que veio de um contexto de violência e abandono familiar e carrega um enorme descontentamento pelo rumo que sua vida tomou. Ao longo dos anos, levando consigo as mágoas pela própria mãe e pelo casamento miserável, Vera teve seus sonhos aniquilados e desconta suas frustrações e rancores agredindo a filha, Júlia, tanto fisicamente, quanto psicologicamente. Ela se justifica repetidamente dizendo que sua mãe "era muito pior do que ela", mas Júlia sabe que ser "menos pior" do que alguém ruim não é o suficiente, e logo surge a dúvida, para nós, leitores: será Júlia capaz de quebrar esse ciclo e ser MELHOR do que sua mãe?
Todos os dias a menina leva surras cada vez mais pesadas, enquanto seu pai assiste em silêncio, omisso ao que acontece dentro de sua casa. Seu pai é um homem órfão, que também tem pouco repertório afetivo e não sabe expressar seus sentimentos. Até que um dia ele decide, sem muitos rodeios, abandonar a esposa, dizendo que "ninguém a aguenta". Porém, ao abandonar Vera, Sérgio acaba, por tabela, abandonando Júlia à própria sorte em uma casa onde ela é abertamente vitimizada. A filha até pede para morar com o pai, mas ele rejeita veementemente a ideia. Júlia entende que enquanto seu pai abandonou sua mãe de uma vez, a abandona em pequenas doses.
Pessoalmente, acredito que uma pessoa que se omite nessas situações, é tão ruim quanto quem pratica as agressões, mas é muito comum, na nossa sociedade, em casos de divórcio, a integridade da criança não ser levada em consideração, como se um casamento fosse apenas sobre um casal. Um casamento que gera filhos, é sobre eles também! Como um pai ou uma mãe pode virar as costas e deixar para trás um filho ou uma filha sofrendo abusos? Como em muitos momentos desse livro, eu me identifiquei profundamente com Júlia. Senti isso na pele. Meu pai "não suportava a minha mãe", falava que ela era a pior pessoa do mundo, mas me deixou com ela. Como meu pai, o pai de Júlia pensou apenas nos próprios incomodos e problemas.
Com o abandono do marido, Vera se torna mais amargurada e mais agressiva, exceto a noite, quando busca afeto na filha para silenciar sua solidão. Júlia aproveita o que pode quando sua mãe abaixa a guarda, porém, na maior parte do tempo, a menina fica sozinha com suas dores e só tem seu diário e um pouco de música para lhe acolher. Júlia não consegue se ajustar na escola, especialmente após o divórcio dos pais, pois além de ser "diferente", passa a reproduzir a violência que sofre, agredindo suas colegas. Em uma ocasião, chega a quebrar o nariz de uma menina. Para "ensinar" à Júlia que "quebrar coisas tem consequências", Vera lhe dá uma surra e quebra todos seus pertences. A lição que Júlia tira disso, é que "quebrar coisas tem suas consequências apenas dependendo de quem você é". 
Apesar da agressividade, Júlia é querida por professores, que diferente de seus pais veem seu potencial criativo, sua sensibilidade e sua inteligência. A diretora então sugere que Júlia comece a praticar balé para ter onde alocar suas emoções e energias. A garota fica muito feliz com a ideia, pois ama música e vê muita beleza na dança, mas não é bem aceita pelas outras meninas e nem pela professora de dança e novamente é rejeitada, recebendo o rótulo de inadequada e sendo jogada na solidão.
A história de Júlia é pesada e triste. É, por fim, um perfeito retrato de filhos de pais disfuncionais, de pais divorciados e de famílias presas em ciclos de violência; pinta fielmente a solidão e a impotência de algumas crianças frente a pais que abusam de "autoridade". Contudo, Aline Bei consegue contar essa história de forma quase leve. Não é uma leitura que gera agonia, apesar de gerar revolta e muito impacto com frases muito marcantes e análises sociais certeiras. É realmente como assistir ao mais sensível balé de palavras. O que me impressiona e me encanta, é que apesar de toda a violência e solidão a qual foi exposta, o que gerou muita revolta justificada, uma inadequação e sentimento de desconfiança natural, Júlia consegue, SIM, se tornar uma pessoa boa, empática e sensível. Uma pessoa que oferece muito mais aos pais do que eles merecem.
Eu me identifico muito com a Júlia em diversas questões. São tantos detalhes que a autora inseriu nessa história que eu também vivi, tantas situações que eu jamais pensei que outras pessoas tivessem passado, que me senti até mesmo invadida, como se ela tivesse tirado confissões de mim e usado em sua obra. Fico pensando se essa é a vivência da autora, apesar de haver uma afirmação de praxe de que tudo aquilo é ficção. Para mim é muito estranho alguém relatar tudo isso de forma tão precisa sem ter vivido isso. Talvez porque minha escrita é muito focada em mim mesma... 
Eu só não gostei do final. Queria ter visto mais essa pessoa que a Júlia se tornou e quem ela ainda poderia se tornar... mas isso não importa. A trajetória é o que importa. Foi uma experiência incrível ler esse livro, foi muito enriquecedor para mim, não só enquanto leitora, mas também enquanto escritora. Confesso que senti um pouco de inveja da genialidade de Aline Bei! Para algumas pessoas isso pode soar horrível, mas na minha linguagem, isso é uma forma de expressar minha admiração. Espero um dia conseguir escrever tão bem, criar uma história tão boa e inteligente (e ir além das minhas próprias vivências). 

Leitura recomendada!

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

confissão

aviso de gatilho: descrições fortes envolvendo pedofilia e comportamento autolesivo, menções a insetos 

Sonhei com o meu tio. Ultimamente eu tenho vivido mais em sonhos e pesadelos do que na realidade (será que essa é mesmo a realidade?). Eu estava na casa onde tudo aconteceu, lá em Ferraz, e ele estava atrás de mim, com um lado do corpo podre. A cara dele estava diferente, mas eu sabia que era ele. Eu estava fugindo dele. Tinha uma multidão atrás dele, e de forma aleatória, o meu atual professor de natação estava bem ao lado dele. As pessoas tentavam me forçar a parar de fugir, a ser receptiva. A ser educada.
...
Era assim que faziam quando eu era criança. Às vezes eu tentava evitar ficar sozinha com o meu tio, porque sabia que ele faria coisas que eu não entendia, mas que me deixavam desconfortável, e me diziam, de forma impaciente: "vai lá ficar com o Andy". Como se eu fosse um estorvo que cabia a ele cuidar. O papel dele era cuidar de mim. Minha mãe pensava que ele estava cuidando de mim, enquanto ele me fazia tocá-lo por baixo das cobertas, ao lado dos meus irmãos, que assistiam TV sem saber o que estava acontecendo. Minha avó pensava que ele estava cuidando de mim, no cômodo ao lado, enquanto ele abaixava a minha calcinha e me fazia sentar no colo dele. Meu avô pensava que meu tio estava cuidando de mim, enquanto ele colocava açúcar na cabeça do próprio pau e me fazia lamber. Meu pai não sabia se tinha alguém cuidando de mim ou não, enquanto eu engasgava, enojada, no ato.

Tem dias que eu esqueço que o meu tio morreu. Faz mais de um ano que ele morreu engasgado com um pedaço de pizza, mas como eu previ, ele continua vivo de forma nítida dentro de mim. A morte dele não resolveu nada. Ele nunca morre dentro das minhas memórias e dos meus sonhos que viram pesadelos. Dentro da minha solidão e desesperança. Dentro da minha RAIVA. Dentro do meu medo de que façam algo assim com a Júlia. Ele está vivo no meu corpo moído de dor e cansaço.
Eu lembro da voz dele, da textura dele, lembro do cheiro dele: o cheiro de cachaça que eu também tive em mim por muito tempo e que agora não suporto sentir nos bêbados imundos da cidade.
Tenho tido memórias sensoriais da minha infância. São quase delírios. Sinto esse cheiro de sujeira velha misturado com pinga dentro do meu nariz. Estou sentindo agora mesmo. Sinto os insetos rastejando sob a minha pele, como quando me trancavam no porão e riam do meu desespero. Sinto diariamente dores pelo meu corpo, como se eu tivesse levado uma surra de cinto. Me sinto fora do meu corpo, tentando me agarrar a realidade.
Acho que me debati tanto enquanto fugia dele no meu sonho, que acordei com o corpo todo dolorido (mais do que o habitual), e ironicamente, quando sentei para escrever esse texto, senti algo subindo pela minha perna e quando olhei para baixo tinha uma barata em mim. Não era um delírio, era uma barata bem real e grande, esfregando suas patas imundas na minha pele. Antes eu choraria e gritaria, mas estou me sentindo tão cansada, que nem uma barata subindo pela minha perna me provoca grandes reações.
....
Depois que meu tio morreu, minha mãe me procurou diversas vezes para lamentar a morte dele. Ele era o irmão preferido dela, o irmão caçula, o irmão que ela fazia de boneca, colocando-lhe vestidos. Não contente em anular a minha dor ao ter me tirado de mentirosa por metade da minha vida, mesmo após a morte dele, ela achou que eu seria a pessoa certa para lhe oferecer consolo pela perda de seu irmão, meu abusador. Eu via as lágrimas presas nos olhos dela, mas não sentia nenhuma pena ou empatia e não dizia uma só palavra enquanto ela falava com amor e saudade dele. Diante da minha mãe eu sou muito diferente da pessoa que muitos conhecem. Eu volto a ser a criança sem voz que um dia fui. Não é medo. Eu não sei o que é, mas sei que não é medo.
Pedi para meu irmão intervir e mandar ela parar de falar sobre ele comigo. Até incentivei que ela procurasse um psicólogo, mas ela insistia em me procurar para dizer o quanto estava abalada e deprimida pela morte dele.
Um dia, cerca de um ano atrás, estávamos em pé na porta da minha casa, eu estava esperando ela finalmente ir embora, quando ela soltou, de forma quase casual, que tinha um arrependimento muito grande: ela abusou dos irmãos mais novos quando ela era adolescente. Eles tinham 5, 6 anos e ela os fazia transar com menininhas que também tinham 5, 6 anos, para ela assistir e se satisfazer.
Enquanto ela me dizia aquilo, eu senti as minhas pernas ficando bambas e só a encarei, enquanto uma lágrima única, contínua, escorreu pelo meu rosto. Eu sabia que meu rosto não tinha expressão além da lágrima que caía. Eu não disse uma palavra, chorei em silêncio, como a Cíntia de 6 anos, mas fui tomada de sentimentos arrebatadores. Raiva, nojo, indignação. Foi como se a morte do meu tio tivesse fechado uma porta, e ela estivesse abrindo outra na bicuda. Eu constatei que essa ferida nunca vai cicatrizar. Eu vou sangrar para sempre pelo que me fizeram, pois toda vez que coloco um band-aid sobre a ferida, alguém a pressiona com violência e a deixa maior. Tem sempre uma nova revelação, uma nova compreensão, uma nova virada. Eu queria conseguir não pensar nisso, nunca mais falar sobre isso, nem na terapia e nem fora dela, mas é algo que foge ao meu controle. Eu sonho com isso. Eu lembro disso. Eu vejo casos iguais ao meu todos os dias. Às vezes, quando estou no meio do ato sexual, eu começo a dissociar e sinto como se fosse meu tio com a língua enfiada entre as minhas pernas e me sinto suja, angustiada, perco o foco e o tesão. Poucas vezes na vida consegui gozar com alguém. O que eu vivi me castra, me isola, me impede de ser tocada por quem eu amo sem ser levada para um quarto escuro e fétido, cheio de culpa.
Quando minha mãe foi embora, constrangida diante do meu silêncio, eu chorei lágrimas que eu nem sabia que ainda existiam dentro de mim. Chorei de soluçar, por mim e por todas as vítimas dela e pelas possíveis vítimas das vítimas dela e assim por diante.
Nos últimos anos, eu culpei a minha mãe pelo que me aconteceu, por ela ter sido negligente, "por não ter percebido" quando meu tio fazia determinadas coisas tão abertamente, quando ela estava no quarto (de costas). Mas aquela informação acrescentava um grau de culpa direto: ela desencadeou a perversão dos meus tios, que fizeram comigo e meus irmãos o mesmo que ela fez com eles. Afinal, se abusaram de mim de todas as formas, também abusaram dos meus irmãos transando com mulheres na frente deles quando eles eram crianças, algo que foi instigado lá atrás, pela minha mãe. Pensei em todas as crianças que ela usou e feriu, em quantas meninas sofreram como eu sofri e sofro, pelos atos dela. Mas o pior foi pensar: e se ela percebeu o que meu tio fazia comigo? E se isso a excitava?
O que ela queria com essa confissão? Era uma forma de mostrar arrependimento e de me dizer que acreditava em mim? Ela queria o meu perdão? Era só sobre a dor dela, de ter fodido a vida do próprio irmão, que se tornou um pervertido, alcoólatra, cheirador de pó, que ficou anos se arrastando pela vida, depois de várias overdoses e complicações de saúde em função da vida que levava?
A minha mãe também sofreu assédio de um tio dela, o que ela me contou e o que sempre me revoltou, pois para mim era inconcebível ela ter passado por uma coisa e não acreditar quando eu relatei ter sofrido algo similar. E eu sei que assim como eu e meus irmãos, ela foi exposta a pornografia desde a infância e se tornou viciada nisso muito cedo. Mas perpetuar isso foi uma escolha. Ter colocado meus irmãos e eu para assistir pornografia quando éramos crianças foi uma escolha. As vezes que ela transou na minha frente, foi uma escolha.
Assim como os meus tios terem abusado de mim e dos meus irmãos após serem abusados por ela, foi uma escolha deles. Minha família está presa num ciclo de violência muito forte, que foi se estabelecendo geração após geração. Isso explica as coisas, mas não justifica nada. Eu não consigo sentir pena ou perdoar meus tios. Não consigo sentir pena ou perdoar o que a minha mãe fez e as possíveis repercussões que os atos dela tiveram na vida das crianças que ela abusou. Nas repercuções que isso teve na minha vida. Eu não queria essa informação. Eu não queria que ela tivesse me contado isso. Não queria ter essa imagem na minha cabeça, nem o medo de ela fazer isso com a minha sobrinha ou meus futuros sobrinhos. Não sei que tipo de relação eu posso ter com ela depois de todas as coisas que aconteceram.
E eu não sei que tipo de vida ainda é possível para mim, depois de tudo o que me fizeram. Eu tenho me sentido como se a minha vida estivesse acabando e eu tivesse perdido todas as possibilidades lá no começo de tudo. Me sinto tão cansada e injustiçada. Tão sozinha.
No meu sonho, o meu professor de natação, após compreender porque eu estava fugindo do meu tio, me ajudava a escapar dele e me acolhia em um abraço. Eu estou tão sozinha e sem referências de afeto, que o mais próximo disso que a minha mente consegue fantasiar é um homem que eu vejo alguns dias na semana e troca poucas palavras comigo. Que me oferece um sorriso e um aceno de longe e que me cumprimenta e me elogia por ter conseguido fazer uma aula apesar das minhas dores e da depressão...
Esse é o máximo de socialização que tenho há algum tempo.
Eu me sinto tão sozinha e desesperada pela falta de afeto provocada por uma vida de abusos, que meu impulso é gritar loucamente e me bater contra a parede, mas o meu corpo está tão cansado depois de toda essa violência ancestral e energia gasta em mecanismos de defesa, que nem a autoagressão é uma possibilidade.
Muitas vezes eu fantasio com alguém me abraçando e me tocando com gentileza para amenizar as dores do meu corpo. Outras vezes, pela impossibilidade do afeto,  eu fantasio com alguém me cortando com uma gilete para me fazer sentir esse alívio que eu sozinha não consigo provocar, porque meu corpo está completamente paralisado numa cama.

sábado, 29 de julho de 2023

a não-monogamia para corpos marginalizados

 

O tweet acima pode ser uma piada para muitas pessoas, inclusive para quem o escreveu, mas eu levo essa lógica bem a sério. Não é por isso que EU sou monogâmica, mas as coisas são por aí quando falamos em não-monogamia para corpos dissidentes. Enquanto a galera não-monogâmica luta pelo direito sagrado de ter vários parceiros (afetivos e/ou sexuais), pessoas como eu, que vivem na sarjeta afetiva gerada pela desumanização de determinados corpos, queriam a possibilidade de ter ao menos UMA pessoa.
Apesar de eu entender e validar a luta pela não-monogamia enquanto um direito civil (com todas as suas repercussões morais e legais), no que diz respeito ao acesso à afetividade e liberdade sexual, não-monogâmicos e eu não falamos nem a mesma língua. Tenho completa aversão à imposição desse formato de relação como algo moralmente e espiritualmente "elevado", "evoluído", "superior", "moderno", e por fim, a solução para sentimentos e comportamentos que levam à violência de gênero e "crimes passionais", como ciúmes e possessividade. Na prática, a não-monogamia pode ser uma ferramenta de manutenção do patriarcado e da violência contra a mulher (especialmente violência psicológica) tanto quanto a monogamia. Muitas são as pessoas não-monogâmicas, especialmente homens cis (mas não apenas eles!), que usam a "filosofia" da não-monogamia para seduzir, manipular e prender emocionalmente pessoas fragilizadas, especialmente mulheres fora do padrão, usando ainda um discurso pró-feminista e liberal. Como se a não-monogamia fosse a evolução natural do ser humano. Como se só mudar o formato de relacionamento, sem conscientizar e curar pessoas, fosse eliminar todo um conjunto de pensamentos coletivos e opressões que se arrastam ao longo da história da humanidade. O maior problema disso é que por se acharem "evoluídos" e "puros de sentimentos", pessoas não-monogâmicas colocam a culpa de todos os problemas das relações humanas na monogamia, se isentando dos processos de opressões que eles também praticam (especialmente contra membros de minorias).
Quando aponto a manipulação, mau-caratismo e a falta de responsabilidade afetiva costumeira de pessoas não-monogâmicas que se julgam tão superiores e desapegadas, muitas pessoas não-monogâmicas alegam: "mas essas pessoas (com comportamentos questionáveis) não são não-monogâmicas de verdade". O que isso significa? Se uma pessoa se rotula como não-monogâmica, usa discursos não-monogâmicos e vive uma vida não-monogâmica, se relacionando abertamente com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, então ela é não-monogâmica, mesmo que ainda carregue traços da monogamia em suas relações. Não é possível validar apenas não-monogâmicos com comportamento "ético" e dizer que os não-monogâmicos tóxicos (que na minha experiência são uma grande maioria) "não são não-monogâmicos de verdade". Sim, essas pessoas fazem parte da mesma comunidade que "você"! A comunidade não-monogâmica não é um paraíso relacional!
Sendo bem sincera, eu não acredito que exista um só não-monogâmico completamente ético e que haja de acordo com seus discursos o tempo todo, porque não é possível se relacionar em cima de racionalidade e códigos sociais o tempo todo. Nós somos humanos e temos sentimentos que falam mais alto do que nossas intenções, do que a nossa razão e às vezes até mais alto do que nossos princípios teóricos. Novamente, fica fácil se esquivar de responsabilidade quando a pessoa acha que já pratica o máximo de ética, empatia e que está acima do bem e do mal! Acima não apenas de monogâmicos, mas também de outros não-monogâmicos que são "a vergonha do rolê".
Voltando ao foco desse texto: ser totalmente fora do padrão, sem nenhuma passabilidade, e experimentar uma não-monogamia real e que não destroça a mente, é bem raro. Diria que são coisas incompatíveis. A maioria das pessoas gordas maiores, travestis, negras retintas e/ou com deficiência (grupos que são as "as minorias das minorias", que têm menos visibilidade até dentro das militâncias), passam A VIDA sem conseguir acessar o afeto. Quanto maior o número de características rejeitadas pela sociedade uma pessoa possuir, menor o acesso ao afeto, ao amor e até ao sexo COM DIGNIDADE. Uma pessoa gorda branca e cisgênero vai sofrer opressão e ter afeto negado, mas uma travesti gorda e negra vai sofrer muito mais (e assim por diante).
Como já expus muitas vezes ao longo dos anos, muitas pessoas gordas (que sempre foram gordas) chegam à vida adulta sem nunca ter beijado na boca. Muitas de nós entram na terceira idade sozinhas, no vazio afetivo de nunca ter vivido um amor correspondido, sem nunca ter namorado, ou sequer transado.
Outras tiveram e têm seus corpos usados para sexo das formas mais estereotipadas e animalizadas possíveis, mas nunca receberam afeto. Quando muito, foram alimentadas com migalhas de afeto. Com ilusões de afetividade. Podem ter recebido um pouco de carinho entre um ato sexual e outro, mas nunca experimentaram isso de forma plena. Nunca foram levadas a um lugar legal, para um encontro de verdade. Sempre ficaram confinadas em quartos de motéis, ouvindo que são "maravilhosas" entre 4 paredes. Nunca foram assumidas, apresentadas para amigos e família. Nunca receberam flores, uma declaração. Nunca tiveram ninguém para dividir as dores e as delícias da vida. Nunca puderam fazer planos conjuntos e pensar em construir uma família.
A não-monogamia me soa como estar faminta e colocarem um prato vazio na minha frente. Quando eu olho pra mesa ao lado, vejo uma pessoa diante de um banquete, berrando: TRAGAM MAIS!
Eu evito abordar esse assunto, porque confesso que sinto um amargo na minha boca e na minha alma, e sei que depois de expor minhas feridas (que são na verdade feridas coletivas), eu vou ser silenciada.
Uma vez, tempos atrás, falei sobre as MINHAS experiências com a não-monogamia e sobre o quanto ela pode ser prejudicial e impraticável para corpos marginalizados (focando no corpo gordo) e uma pessoa gorda e trans soltou os cachorros em mim para defender a não-monogamia. Atacou e maltratou uma pessoa gorda, com feridas reais, para proteger um SISTEMA (relacional). Não fica muito longe do fanatismo religioso. Até então, essa pessoa dizia me adorar e que eu era necessária, mas quando fiz essa crítica, me tornei a inimiga dos não-monogâmicos que se acham o suprassumo da evolução e desconstrução humana. Diante do meu desabafo, o qual fiz logo após sair de uma relação não-monogâmica que acabou com a minha vida (e da qual ainda não me curei, após um ano e meio), essa pessoa disse que eu estava falando um monte de bosta, que não tenho empatia por pessoas não-monogâmicas (risos), que só tenho empatia pelo que me convém (pessoas gordas) e que eu deveria "estudar". A carteirada academicista foi o que mais me incomodou! É muito elitista querer invalidar discursos sobre sentimentos HUMANOS só porque eles não foram publicados por uma editora e nem aprovados pelo meio acadêmico. Quando se trata de vivências, as reflexões de quem sofre com uma questão são muito mais relevantes do que teorias academicistas. Tudo que eu falo sobre gordofobia, tem por base minhas experiências pessoais e a forma como eu observo o mundo (conversando com outras pessoas gordas em diferentes contextos e analisando situações que compartilhamos e assim sendo, são coletivas). Não são teorias acadêmicas, são reflexões minhas, desabafos meus! Eu falo porque preciso falar, e na esperança de que as pessoas magras absorvam vivências gordas e nos tratem com mais empatia e humanidade. Sendo vivências e opiniões minhas, as pessoas podem concordar ou não com a forma que eu vejo e exponho as coisas, mas não podem me invalidar. EU QUE VIVI E VIVO ISSO. Discordarem de mim e me atacarem não vai mudar os fatos (o que eu vivi e vivo). Da mesma forma que eu não vou em perfis que lutam pela normalização ou que até ROMANTIZAM a não-monogamia para forçar minha visão. Quando eu vejo um perfil desses ou pessoas que sigo começam a falar da não-monogamia como uma evolução da alma, sem fazer recorte algum, eu silencio ou até bloqueio para que não fique aparecendo para mim, pois é algo que me faz mal. Eu falo sobre a MINHA visão da não-monogamia aqui no MEU espaço!
E acima de qualquer coisa, MINHA identidade é gorda! O que mais ME atravessa é a gordofobia! Mesmo que eu fosse não-monogâmica, primeiro eu seria GORDA, primeiro eu seria atravessada pela gordofobia e primeiro viria a luta anti-gordofobia. Meu corpo é a primeira coisa que enxergam em mim e é o que determina como vou ser tratada na sociedade! Determinou como fui tratada dentro de experiências não-monogâmicas também. Se você se acha uma pessoa gorda, mas não é atravessada pela gordofobia em todos os aspectos da sua vida, ou você não é uma pessoa gorda de verdade, ou goza de fortes privilégios (estéticos, de status ou financeiros). Você ser uma pessoa gorda e não passar por uma questão que outras pessoas gordas estão apontando, não vai significar que nenhuma pessoa gorda passa por isso, e sim que você é uma exceção à regra.
As pessoas podem odiar, inclusive membros de outras militâncias, mas minhas vivências e minha luta sempre vão ter um recorte sobre corpos gordos. Tudo que eu for falar, eu vou trazer a diferença de como é passar por isso sendo uma pessoa magra e sendo uma pessoa gorda. E nesse contexto, assim como no meio LGBT+, a gordofobia é presente na comunidade não-monogâmica.
Muitas vezes falo de mim, mas com a certeza de que não sou a única vivendo essas coisas, porque recebo relatos diários de pessoas gordas e membros de outras minorias que se identificam com as minhas vivências e minha fala. Sobre a não-monogamia, posso dizer que além das minhas próprias experiências, já conheci muitas pessoas gordas (inclusive maiores) que viveram e vivem a não-monogamia, seja porque se sentiram forçadas a isso, seja porque acreditavam nesse modelo de relação e queriam viver isso. E mais vezes sim do que não, eu acompanhei o sofrimento de muitas dessas pessoas. Sofreram em silêncio, aguentando coisas que nenhuma pessoa padrão aguentaria, para manterem a pose de DESAPEGADAS.
O que se tornou muito evidente para mim, tanto nas experiências dessas pessoas quanto nas minhas próprias experiências, é que uma coisa é viver a não-monogamia na teoria - estar aberto para amores "livres" e à possibilidade de se envolver com mais de uma pessoa ao mesmo tempo; e outra coisa bem diferente é viver isso na prática: ter a possibilidade de ser amado por mais de uma pessoa ou ser possibilidade sexual para múltiplas pessoas.
Explico: conheci várias pessoas gordas maiores (homens, mulheres e não-binárias, tanto hetero quanto não-hetero) que tinham relacionamentos não-monogâmicos com pessoas magras ou mais próximas do padrão do que elas e TINHAM a LIBERDADE para se envolver com outras pessoas, mas não tinham outras pessoas interessadas nelas. Enquanto seus parceiros ou parceiras com maior passabilidade e aceitação estética tinham pessoas interessadas por eles e se relacionavam com múltiplas pessoas, vivendo a não-monogamia de fato, essas pessoas gordas maiores ficavam chupando o dedo. Elas só carregavam o rótulo e as responsabilidades de ter que lidar com essas relações, sem poder viver isso. Assistiam seus pares sendo cortejados, se envolvendo com outras pessoas, e lidavam com ciúmes, insegurança e a sensação de estarem sendo deixadas de lado. Com o plus da sensação crescente de rejeição e a frustração, porque não eram possibilidade para ninguém, mesmo estando abertas para isso. Logo, uma coisa é ter a LIBERDADE, outra é ter a POSSIBILIDADE.
Acompanhei (em off) uma mina gorda maior que era casada, o relacionamento era não-monogâmico. Ela e o marido iniciaram um trisal com uma mulher magra e com o tempo ela começou a se sentir colocada de lado por ambos. Eles transavam na cama dela, ao lado dela, enquanto ela chorava sem que eles percebessem.
Outra mulher gorda entrou em um relacionamento a três com seu parceiro e no fim foi TROCADA. Terminaram com ela e ficaram juntos. Ela foi "expulsa" da relação na qual entrou com seu parceiro.
Foram muitas as pessoas gordas (maiores) que vieram debafar suas dores comigo. Elas não estavam felizes, mas em 100% dos casos, mantinham a imagem pública de desapego e satisfação com esse tipo de relação. Estavam enganando a si mesmas e aos outros, reforçando um imaginário de não-monogamia perfeita e inclusiva para todos os corpos. A não-monogamia não é automaticamente inclusiva a todos os corpos. Pessoas não-monogâmicas não são automaticamente não-gordofóbicas. Na monogamia ou na não-monogamia, as pessoas escolhem quais corpos elas vão amar, quais corpos elas vão comer, e quais corpos elas vão rejeitar. O que muda entre a monogamia e a não-monogamia, é a cobrança de aguentar ou aprender a lidar com situações que a grande maioria das pessoas gordas não têm condições de bancar, depois de uma vida de rejeição e preterimento.
Eu (monogâmica convicta) já aceitei o formato não-monogâmico de relação para não perder a pessoa (não-monogâmica), e só eu sei o que eu passei. Eu "poderia" ter me negado a embarcar nessa e abrir mão da pessoa, mas além de estar apaixonada, como eu poderia fazer isso, quando esperei pelo AMOR a minha vida toda? Sabendo que poderia passar muito tempo até surgir outra pessoa que tivesse interesse em se relacionar comigo? Sabendo que posso nunca mais ter isso? Diferente de pessoas padrão, ao terminar uma relação, eu não vivo com a certeza e com o consolo de que "vai surgir outra pessoa" futuramente. Ao fim de uma relação, eu tenho em mente que pode levar anos até me tocarem novamente. Que pode nunca mais acontecer. Abrir mão de um amor que você sonhou a vida inteira é muito mais difícil quando você ouviu desde criança que "ninguém iria te querer", fala sustentada pela rejeição crônica ao longo de toda uma vida. Eu aceitei essa relação num formato no qual eu não acredito e que não faz bem para mim, pensando que eu conseguiria lidar, e que aquilo seria "menos pior" do que não ter a pessoa. Depois de anos e anos de solidão e expectativa, ter uma pessoa pela metade soou "menos pior" do que não ter pessoa nenhuma.  Eu pensei que pudesse conviver com as repercussões de um relação não-exclusiva. E eu descobri que a agonia de ter alguém pela metade é igual ou até pior do que a agonia de não ter ninguém. Só eu sei o quanto essa experiência minou minha autoestima e criou novas camadas de insegurança e infelicidade na minha vida. Me deixou de fato traumatizada. Não sei se eu vou poder confiar em mim mesma ou em alguém novamente. Eu tenho a parcela de culpa de ter aceitado isso. Mas a pessoa não-monogâmica não ligou para os meus gatilhos, para a minha história, para o recorte ao qual estou inserida. Pelo contrário, alimentou minhas inseguranças, ativou meus gatilhos. Não teve cuidado e nem conseguiu me fazer sentir importante em sua vida "apesar" de não ser a única. Pessoas monogâmicas também brincaram com os meus sentimentos e agiram sem cuidado ao se relacionar comigo, mas soa muito mais hipócrita quando esse tipo de comportamento parte de não-monogâmicos que se colocam como espiritualmente superiores e que falam tanto sobre "amor livre", "sagrado feminino", ética e empatia.
O que eu sei, é que eu nunca mais quero ASSISTIR alguém que eu amo, amando outra pessoa. Nunca mais quero compartilhar alguém que eu amo com ninguém. Eu não quero ver quem eu amo se declarando para outra pessoa e depois passar a madrugada inteira stalkeando uma outra mulher, olhando suas fotos, chorando e me comparando, pensando em todas as formas que eu sou INSUFICIENTE e menos do que ela.
Isso me faz menos evoluída? Me faz antiquada? Me faz possessiva?
Todos os dias eu lembro dessa experiência e sinto novamente a dor e a vergonha que senti naquela madrugada, desejando ardentemente ser outra pessoa e receber o amor que ela recebia. Foi o fim de uma relação, mas acima de tudo, foi o fim do meu senso de dignidade e da autoestima que construí a duras penas.
Como eu posso ter segurança para viver um relacionamento não-exclusivo, quando passei a vida inteira ouvindo que não sou suficiente? Que ninguém vai me querer e me amar de verdade? Quando passei a vida sendo comparada a outras mulheres, sendo colocada como menos do que elas e sendo trocada pelo que é mais "socialmente aceito"? Como eu vou dividir o tempo e a atenção de quem eu amo com outra pessoa, quando nunca fui prioridade de ninguém? Como não vou sentir ciúmes vendo quem eu amo beijando outra pessoa, fazendo declarações, construindo intimidade? Construindo uma vida! Quando eu nunca atingi o nível de intimidade de verdade com ninguém, porque nunca tive oportunidade! Nunca me deram oportunidade.
Depois de uma vida de afeto negado, de rejeição, de solidão e preterimento, não tem como eu ter segurança para bancar isso sem me esfolar inteira. Pessoas padrão (ou com passabilidade) querem "desconstruir o amor romântico", mas quem vive à margem da sociedade não conseguiu nem construir o amor tradicional em suas vidas ainda!
Ser não-monogâmico não é sobre maturidade ou evolução, é sobre privilégio. Pessoas que passaram a vida inteira sendo rejeitadas e maltratadas, dificilmente vão ter as ferramentas para desconstruir as inseguranças e o ciúmes que esse formato de relação gera. Pessoas padrão, de forma geral, têm a certeza de si. Certeza proporcionada por uma vida de abundância afetiva.
Ter a possibilidade de ser desejado e amado, ainda mais por mais de uma pessoa simultaneamente, é privilégio de gente padrão.