segunda-feira, 29 de outubro de 2018

auto-conhecimento

   Não dormi, mas comecei o dia gargalhando. Seis horas da manhã e minha risada alta preenchia meu quarto, provavelmente se fazendo ouvir fora dele. Ri tanto, que a minha barriga começou a doer, enquanto as lágrimas escorriam pelas minhas bochechas e embaçavam meus óculos. Eu tentava não rir, porque o motivo do riso desenfreado era a desgraça de algumas pessoas que caíram com a freada violenta de um ônibus. Parava por alguns minutos, segurando o riso com a consciência pesada, mas depois não aguentava, e o ritual descontrolado recomeçava.
   Ouvi os passos em frente à janela do meu quarto. Ouvi minha avó na cozinha, senti o cheiro do café. Eu não tomo café, mas devo admitir que o cheiro de café, especialmente pela manhã, aguça alguma coisa boa dentro de mim.
   Entre o riso e o silêncio culpado, ouvi o barulho das xícaras na cozinha, e o som de pessoas cochichando. Tentei ouvir o que diziam, mas não deu.
   Eu ainda estava indecisa se deveria ir à consulta com a psiquiatra ou não, mas pensei: "ainda tenho bastante tempo", e depois me ocorreu que é justamente quando eu tenho tempo de sobra que me atraso. Eu me conheço, estou sempre certa. Me atrasei, depois de colocar uma roupa qualquer e sair correndo, de cara lavada, na chuva que tornava o chão escorregadio sob o meu all star velho demais para ter algum efeito anti-derrapante. Quase escorreguei algumas vezes. Teria sido um belo castigo, ser filmada escorregando para abastecer o riso de alguém depois, na internet.
   Mas não caí. 
   Cheguei ao posto de saúde, tirei os óculos escuros respingados da chuva, e peguei a senha eletrônica. Agora tem isso lá, e eu me sinto de alguma forma traída por esse avanço tecnológico. Tira o aspecto familiar da coisa. 
   Mais traída ainda me senti quando minha senha foi chamada, e a recepcionista não lembrou meu nome. Ela me olhou, olhou para a tela do computador por uns segundos, e me olhou de novo, soltando um odioso: "esqueci seu nome...". Ela me conhece há dez anos. Eu sei o nome dela e de todas as pessoas no posto de saúde. Aos poucos, eles esquecem o meu. 
   "Cíntia, prontuário 19-119".
   Enquanto esperava, irritadiça pela noite não dormida, observei as pessoas passando. Auxiliares de enfermagem, as moças da limpeza, o pessoal da administração, e as agentes de saúde. Recebi dois abraços genuínos, fortes, e muitos sorrisos amarelos: "você anda sumida!". Eu sempre busco amor nos lugares mais improváveis.
   O posto está cheio de enfeites florais feitos de papel crepom; dois tons de rosa e um branco, para a campanha de prevenção de câncer de mama. Fiquei com vontade de roubar alguns dos enfeites, colar na parede do meu quarto. Eu sou assim. Uns anos atrás roubei um dos enfeites da já precária árvore de natal do posto de saúde, porque eu preciso ter esses souvenirs para me lembrar dos momentos. Para tornar as minhas memórias tangíveis. Ou para manter a ilusão ativa.
   Pensei em todos os anos esperando por aqueles corredores, vendo as pessoas passando e preocupando-se comigo. Pensei nos meus professores do ensino fundamental. O meu sentimento era o mesmo por ambos os ambientes e seus habitantes. O mesmo amor por pessoas que são pagas para notar a minha existência, e que esquecem do meu nome assim que o meu caso deixa de ser prioridade em suas mesas.
   Comecei a andar de um lado para o outro, inquieta com a demora. Apertei o aparelho de álcool gel, mas não saiu nada, como sempre. Tem uma mesa no corredor, ao alcance dos pacientes, e eu sempre me perguntei o que tinha naquelas gavetas, sem coragem de abrir para ver. Olhei para os dois lados do corredor cheio de pacientes cuidando de suas próprias dores. Abri a primeira gaveta, e, adivinha só, não tinha merda nenhuma. Foi o suficiente para acabar com qualquer traço de tesão detetivesco.
   Me pus a ler os cartazes de prevenção de câncer de mama, e depois o mural cheio de post-its com mensagens "motivacionais". Cuide-se!, dizia um dos post-its. Ame-se! A vida importa! AUTO-CONHECIMENTO! Eu nunca fiz o auto-exame. Pensei em roubar um ou dois, quem sabe três post-its rosa choque. Mas talvez a mensagem fizesse falta para outras pessoas. Eu sou hipocondríaca. Quando eu penso em fazer o auto-exame, penso na possibilidade de encontrar um nódulo, e começo a surtar. A bem da verdade, se eu procurasse eu provavelmente encontraria mil nódulos, a minha ansiedade os colocaria ali.
   Eu me conheço, mas às vezes não quero conhecer demais. Pensei nas minhas seguidoras.
   A psiquiatra me chamou. Ela não lembrava exatamente sobre o meu caso, ficou lendo por cima as páginas do meu prontuário, me fazendo as mesmas perguntas mil vezes, e eu as respondia, sentindo a exasperação crescer. É como se ela não ficasse contente com as minhas respostas, então continuasse perguntando para ver se eu as mudava. Você está pensando em suicídio, ou está planejando suicídio? Qual é a merda da diferença? Perdi a calma com ela, e me arrependi em seguida, porque apenas parte da minha exasperação era pela condescendência dela, a outra parte era pela noite não dormida. Eu sou como uma criança que vai ficando rabugenta à medida que o sono chega, e que precisa deitar e pegar no sono assim que esses momentos batem.
   Ela continuou fazendo as mesmas perguntas e as mesmas propostas. Eu parei de responder, adotando a tática de simplesmente encará-la. Ela continuou na expectativa de uma resposta, e eu continuei oferecendo silêncio, sabendo que meus olhos estavam tão vazios quanto às vezes me acusam.
   Foi uma consulta absurdamente longa, em que nada foi abordado. A minha impaciência crescente, louca para sair dali. Comecei a concordar com ela, era o único passaporte para a saída daquele lugar. Funcionou. Até mais, Cíntia. Obrigada. Tchau.
   Peguei meus remédios, não tinha todos. Estava exausta. Passara horas ali, e a consulta com a psiquiatra no fim me deixou pior do que quando eu cheguei. Com os bolsos da jaqueta jeans molhada cheios de remédios, coloquei os óculos escuros e saí. Eu não suporto claridade, especialmente quando não durmo.
   Ia chegar em casa, tirar toda a roupa e me jogar na cama ao som de Florence + the Machine. Isso não aconteceu. Enrolei o dia inteiro, cansada, sem fazer nada, sem ter noção de como as horas passaram. Dava tempo de ir pro curso ainda, mas eu simplesmente não teria energia física ou intelectual para acompanhar a aula.
   No fim da tarde eu tirei as roupas ainda molhadas, e deitei, cobrindo a cabeça. Meu corpo começou a pesar, minha mente começou a desligar, e o celular apitou. Relutei por alguns momentos, mas descobri a cabeça e estiquei o braço, pegando o aparelho.
   Era ele. Meu coração acelerou. Ele gostou da minha foto de 4. Instigada, minha mente acendeu, voltou a funcionar a todo vapor. Minha buceta a acompanhou. Em alguns minutos ele conseguiu me fazer esquecer da mágoa de situações anteriores, do sono, do cansaço, da exasperação, e tudo isso deu lugar a um tesão violento, que provocava ondas de prazer pelo meu corpo sem que eu ao menos me tocasse. 
   Eu te quero. Você me faz sentir um tesão desmedido. Seu pau está pulsando? Quero me esfregar em você. Imagina, imagina, imagine! Imaginei o coturno dele pressionando meu corpo, me imobilizando contra a parede, deixando as marcas da sola na minha pele. Estava molhada novamente, mas dessa vez não era culpa da chuva, que ainda batia  contra a minha janela.
   E as mensagens começaram a ficar mais espaçadas... 
   Ocupado.
   Ok...
   Abri as pernas, coloquei os dedos para trabalhar, imaginando. AUTO-CONHECIMENTO!
    Os dedos deslizando com facilidade. AUTO-CONHECIMENTO!
   Me esparramei na cama, me desfazendo entre os lençóis e cobertas. AUTO-CONHECIMENTO!
   Soltei gemidos e suspiros... AUTO-CONHECIMENTO!
   A atenção dele nunca é só minha. Eu sempre tenho que dividi-la com outras pessoas, com outras coisas.... AME-SE!
   É só sobre ele. O prazer dele, o sentimento dele, o momento dele, a vida dele. Ame-se ame-se ame-se ame-se ame-se ame-se ame-se, AME-SE, porra!
   Tomada pelo tesão e pela tristeza de uma só vez, comecei a chorar enquanto me tocava, enquanto os dedos entravam em saíam, e o tesão começava a ser vencido pela tristeza. O som do meu choro preencheu meu quarto, talvez se fizesse ouvir lá fora. Chorei tanto, que a minha garganta começou a doer, as lágrimas escorrendo em abundância pelas laterais do meu rosto. Parava por alguns segundos, mas depois não aguentava, e os soluços convulsos recomeçavam. No escuro, no silêncio.
   Os dedos desistiram. Fechei as pernas, deitei em posição fetal e cobri a cabeçaEu sempre busco amor nos lugares mais improváveis. Chorei tanto, que dormi. Por dois dias.

sábado, 27 de outubro de 2018

apocalipse

Eu estava aqui lembrando que em 2002, quando eu tinha 12 anos, estava assistindo TV com alguns membros da minha família, esperando os resultados das eleições. Eu não estava dando a mínima pr'aquilo, até que começaram a dizer coisas tipo: "O Lula não pode ganhar! Vai ser o fim do Brasil! O real vai perder o valor, nosso dinheiro não vai valer nada!"
O dia em si vem como um sonho, mas eu consigo lembrar do pânico que senti diante daquelas afirmações.
Eu não tinha consciência política alguma para além das brigas e recriminações entre a minha família materna (pobre, nordestina, negra, de direita) e o meu pai (petista)... então comecei a imaginar algo como o apocalipse acontecendo se o Lula ganhasse. Gritaria, fome, saqueamentos...
Eu senti medo, e comecei a torcer para ele não ganhar.
Ele ganhou, nada disso aconteceu. Bem pelo contrário.
Eu era inocente, acreditava em qualquer coisa que me dissessem.
Quem colocou o pânico na minha cabeça também era... Minha avó paterna, filha de militar, mas uma pessoa sem estudo e sem pensamento crítico, que apesar da muita idade acreditava e ainda acredita em tudo que ouve na TV e nas rodinhas familiares (especialmente se o discurso conservador vier da boca de um homem).
Ela estava errada. Lula ganhou e o apocalipse não aconteceu.
Ainda assim, todos esses anos passaram, e o discurso continua o mesmo. Ela ainda acredita nesse discurso.
Não acho que todos são inocentes. Muitas pessoas são guiadas por puro ódio! Quem gera a notícia falsa que alimenta minha avó sabe muito bem o que está fazendo. Traça a mentira de forma muito consciente, usando das inseguranças do povo para gerar pânico em troca de resultados específicos. Mas tem os que como minha avó acreditam na mentira, os que não têm base para discernir as más intenções.
Me perguntaram se eu já chorei pelo resultado das eleições até agora, ou pelo que o futuro nos reserva.
Eu não estou surpresa com as coisas que estão acontecendo. E acredito que o conservadorismo e a censura já estão estabelecidas de muitas formas na nossa sociedade, o que facilitou a chegada desse momento. Mas é claro que eu tenho medo de uma censura completa, escancarada, e da intensificação do ódio.
Eu chorei. Chorei quando vi os planos para "educação" do Voldemort.
Tenho, atualmente, inúmeras críticas ao sistema de educação brasileiro, mas as coisas podem ficar ainda piores, e isso é terrível, porque o descaso com a educação é justamente o que mantém as amarras do povo. É o que mantém o Brasil nessa prisão moral e cheia de ódio. É o que faz com que as pessoas tenham na mente a imagem de um apocalipse brasileiro, com gritaria, fome e saqueamento, caso Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado não ganhe.

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

você... ou eu

Comprei um maço de cigarro
Fazia sentido...

tirei o lacre

Talvez um dia alguém sinta conforto em mim
no cheiro 
das minhas roupas
dos meus cabelos

Talvez algum dia eu encontre conforto.

Ontem pouco me bastou
Enquanto garoava na minha cabeça
E as gotas, junto à fumaça, embaçavam meus óculos.

Hoje, nada.

Mas
Eu vou te encontrar
Na ponta de cada cigarro que eu fumar
Vou sentir seu beijo
Em cada tragada que eu der
Vou ver seu rosto
Em cada massa abstrata de fumaça que eu soltar

Minha voz ficará menos suave
E em cada verso que eu declamar
Eu vou lembrar da sua rouquidão...

"If I never see you again..."

Quando eu me tocar
Os meus dedos terão o cheiro dos seus dedos
Vai se misturar ao aroma do meu sexo

Levarei meus-seus dedos aos lábios
Vou fechar meus olhos...
Fingir que são suas, as digitais adocicadamente ásperas na minha língua

Sua existência vai resistir

Nos meus pulmões

Eu vou ficar sem ar
Toda vez que o seu nome vier à tona

E quando eu estiver quase morta
Será você o meu câncer
De alma

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

urbana

Vagando por essa cidade caótica
Eu vejo você

Nos olhares infantis
No vento cheio de poluição que espanca minha pele
No cheiro dos cigarros acesos
No meu próprio caminhar,
Refletido nas portas espelhadas de edifícios instáveis

Parada no ponto de ônibus 
Eu
Sinto você
Quando toco as pérolas pendendo do meu pescoço
E te imagino, me puxando
Para muito perto

Violência, necessidade

O colar partindo
As bolinhas marfim rolando
... Para dentro do esgoto.

Eu não ligo.

-- 

Sentada à janela
Eu ouço você

Enquanto aproveito o balanço
Para...
...

Meu corpo arqueia
Um gemido rebelde se faz ouvir
Me olham
Minhas bochechas não coram

A dor é iminente

Mas eu acho que todo mundo deveria acordar atordoado
Às quatro horas de uma tarde
Ao som de um poema recitado

Todo mundo deveria se perder,
Uma vez ou outra

Eu me perco na constelação do seu corpo.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

fumaça

   As coisas invariavelmente começam como se nada estivesse acontecendo. É simples assim. Você não é ninguém pra mim, e eu não sou ninguém para você. Bate até um desconforto, de tanta mensagem chegando, e do impulso de respondê-las. Te vejo como um todo — um amontoado de características. Um homem como qualquer outro. 
    Mas aos poucos... O papo passa do morno para o muito quente — a sensação é, ao mesmo tempo, sufocante e deliciosa, como são as melhores coisas. Palavras bem aplicadas, surge a identificação. Você entra na minha cabeça. Forjamos a conexão... 
   ... Talvez seja por hábito, que nós fazemos essas coisas. Continuamos, porque a opção é o vazio. O nada perde espaço, se torna alguma coisa... Dez minutos já não são o suficiente. Eu quero mais, quero todos os seus minutos e todos os seus pensamentos. 
   Vou isolando suas características, passa a me agradar o que sinto e o que vejo. Pintas, olhos, dedos. Desejo. O jeito que os seus lábios soltam a fumaça... 
   Sozinha na minha cama, fantasio, ao som de Portishead, sobre o seu cheiro. Sobre sua voz, a textura da sua pele... a temperatura do seu abraço. Fico imaginando o tom do seu gemido. Tudo em você é meio encenado...
   Quando noto, você está sob a minha pele. Meu ser anseia por você. A mais inocente lembrança da sua existência eriça todos os meus pelos. O meu coração descompassa, o meu cérebro fica dormente. O seu nome encharca a minha calcinha...
   É tudo muito breve, as coisas são intensas. Mas eu descobri, ao longo da vida, que intensidade é algo que não dura...
    É brutal, a porrada que atinge o meu estômago. O sentimento é um raio atravessando o meu corpo repetidamente. Meu coração ganha mais um remendo. O buraco no qual venho caindo fica mais profundo.
   E de repente, são cinco horas da manhã. Eu fumo meu primeiro cigarro em muitos meses, para me sentir mais perto de você. Olho suas fotos, revivendo as palavras, e penso no absurdo das coisas. Há pouco tempo você nem existia. 
   O fluido transparente escorre pelas minhas coxas, enquanto você dorme com ela.
   Solto a fumaça.